Monday, September 24, 2018

Carne de lata


(Para o José Eustáquio Ferreira, o Tacão)

São Raimundo é um bairro distante do centro de Governador Valadares. No início dos anos 1970, ainda conservava algumas características das fazendas, que foram dando lugar aos loteamentos que tomaram conta de tudo. Não era mais um latifúndio, mas os moradores mantiveram alguns costumes rurais, como o da criação de galinhas, porcos e cabritos em seus quintais. 
Dona Joana, que morava no fim da rua em que vivi, tinha cerca de 50 caprinos, que ela levava em chibarrada para pastar na vegetação que se formava à beira da estrada que nos ligava à Vila dos Montes. Escutávamos os cincerros e berros dos animais em seu tropel rua abaixo, tangidos por aboios tristes. Havia um oboé na voz de Dona Joana dos Cabritos.
O ritual de criação dos capados - suínos castrados para efeito de engorda - durava o ano inteiro e se encerrava no dia da grande recompensa: o sacrifício do animal, seguido da sua coção. 
Era tudo feito em algumas horas, em mutirão, e o delicioso resultado do trabalho era armazenado em sua própria gordura, dentro de latas de vinte litros. A antológica 'carne de lata' ficava ainda mais saborosa após alguns dias mergulhada em sua banha.
Guardo na memória cada detalhe daqueles dias festivos. 
Tudo começava ainda às escuras, a boca da noite mordendo a saia do dia.
O aroma do café - coado em saco de flanela - tomava conta da casa e se misturava ao cheiro do pão de queijo e da broinha de fubá, que saíam fumegando do forno como se fossem pepitas e tijololinhos dourados. 
O precioso líquido negro era transplantado para um bule esmaltado e servido em canecas feitas do mesmo material, algumas já descascadas e amassadas pelo tempo. Para adoçar, rapadura do engenho de um sítio da redondeza.
Os vizinhos que ajudaram na engorda do marrão - cedendo restos de comida e pontas de hortaliças não aproveitadas nas refeições cotidianas - iam chegando aos poucos. Cada um deles ganharia uma gratificação, pedaços de carne ainda morninha e a oportunidade de participar do ritual.
Iam aportando mansamente, conversando baixo para não acordar as crianças dormindo nos quartos.  
Primeiro, ouvia-se a amolação das facas numa pedra lisa, o vai-e-vem frenético das mãos afiando o aço, até achar o fio.
Um pouco depois, o guinchar do animal ferido em seu derradeiro discurso. 
Na sequência, o farfalhar do arrastamento das folhas secas de bananeira e cana, que seriam usadas para crestar, sapecar a pele, eliminando os pelos que resistiram à raspagem da faca  
Sangue fora do corpo arde e é preciso ter estômago forte. Eu só saía do quarto após o fato consumado.
Uma vizinha pilava a pimenta do reino, enquanto outras picavam cebola, alho e cheiro verde. Num outro lugar, os homens iam desmanchando o animal sobre uma bancada improvisada na varanda.
As entranhas eram levadas a um tanque de cimento, os intestinos minuciosamente revirados e higienizados com suco de limão e bicarbonato de sódio, produzindo as tripas que seriam recheadas de carne picada e sangue temperado. É assim que se fazia linguiças e chouriços, como nunca mais se viu.
Os pedaços eram cortados, temperados e armazenados obedecendo uma ordem pré-estabelecida. 
Carne com osso tem a data de validade mais curta e é fritada no óleo da banha, pois rança mais cedo. As sem osso, no óleo do toucinho, que vem do torresmo da barriga.
A gordura cortada em pedacinhos ia se liquefazendo nas trempes de um velho fogão de lenha. Uma vez fria, cristalizava, formando a banha que dispensaria a refrigeração industrial. 
Lá pelas 11 horas, minhã mãe ia para a cozinha fazer um arroz de suã, que alimentaria os trabalhadores do mutirão enqunto labutavam. 
Papai servia uma cachacinha da roça. 
E o dia ia escorrendo, o cheiro da carne frigindo lentamente, o amor da amizade celebrado em volta de um animal recém-sacrificado.
Eu voltaria a São Raimundo depois de muitos anos, ovelha desgarrada que me tornei, e senti uma enorme diferença em tudo o que vi. As ruas parecem ter encolhido, a arquitetura mudou e mesmo as pessoas já não são aquelas que povoaram a minha infância.
Parei com o carro em frente ao número 149 da Rua Topázio, e o barraco humilde - que me abrigou durante mais de 20 anos -, ainda estava lá, intacto, com suas paredes amarelas, o trio de oitizeiros que meu pai plantou - agora adultos -, frondosos, produzindo três grandes sombras.
Lá no fundo do lote, o velho coqueiro espetava a lona do céu.  Por detrás dele, o Pico do Ibituruna, incólume, como da última vez que o vi, em 1984, no dia que eu fui embora.
Fiquei cerca de meia hora dentro do carro, os olhos fixos naquela morada, e um turbilhão de lembranças fez brotar algumas lágrimas de saudade do menino que eu fui ali. 
Dentro da casa, alguém começava a fazer o almoço e o cheiro de alho dourando para o arroz chegou rapidamente à rua. 
Durante alguns breves instantes, foi como se minha mãe estivesse lá dentro, rodeada de amigos, fritando o porco que meu pai cevou. 

Monday, September 10, 2018

Cachecóis


A pele que me acolhe
É cheia de becos escuros
e salas vazias;

O coração em que moro
Tem duas janelas fechadas
E um labirinto de culpas

A veia que jorra
Sangue e gasolina 
Esguicha frustrações
Compradas em feira livre
Desilusões 'veraneiras'
Levadas em banho-maria 
Pecados lavados com cuspe
Desejos molhados de urina
Uma profusão de embustes 
E virtudes de perfumaria 


O espelho agora reflete 
O mapa das ruas na pele
Deserto de tantas miragens
A fonte da qual nada brota
Um cemitério de árvores
e crianças sem voz;
O medo que aniquila
Os poros entupidos
A cabeça dormente
De solidão e morfina
A febre em que ardo
A implacável insônia
O breu estranho das noites
E sua indecente companhia


A fome agora é de nada
E tem a velocidade
De um velho relógio parado
No cadafalso dos dias
A lágrima de água benta 
É ouro que reluz, intruso,
No colar de bijuteria.


Tenho a sede 
dos que sabem nada 
A fortuna dos que nada tem
A hora dos que mais tardam
Danço boleros sozinho,  
Rodopio desajeitado
O corpo disforme que gira
O rosto colado a ninguém 


Coleciono ausências de viço
Profusão de vícios, hábitos ruins
Às vezes sinto que prescrevi;


A alma que visto hoje
Não é um traje de festa
Ficou um silêncio tóxico
Restou a bandeira pirata
E a habilidade inata
De tecer cachecóis de lata
Com a linha invisível da dor.