tag:blogger.com,1999:blog-26063018979074091992024-03-13T07:17:43.497-04:00Primeira PessoaCrônicas do jornalista e escritor mineiro Roberto LimaPrimeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.comBlogger556125tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-85747211928863216792022-12-20T17:29:00.001-05:002022-12-20T17:32:47.514-05:00 O profeta do ontem<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhU3nNQfi2iA9Hlr7TvalJ6g0Ju6TutWQaaZHguHC1E-XW8OBrhVCt0Atr9L4IB5cutqdqG0insCMphYC5wq3QwKi72S-q25nUS_DuBRLxUevpqXtPs7WIU99_Frd9STPfMfJI66Tnwzs-ZFc2EPdEr0vT_uc6soFsnOoh0YVNj2_F0499iOf95xXe5Qg/s1079/reco.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1078" data-original-width="1079" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhU3nNQfi2iA9Hlr7TvalJ6g0Ju6TutWQaaZHguHC1E-XW8OBrhVCt0Atr9L4IB5cutqdqG0insCMphYC5wq3QwKi72S-q25nUS_DuBRLxUevpqXtPs7WIU99_Frd9STPfMfJI66Tnwzs-ZFc2EPdEr0vT_uc6soFsnOoh0YVNj2_F0499iOf95xXe5Qg/s320/reco.jpg" width="320" /></a></div><br /><p><span style="font-size: large;">Passaram-se 37 anos.</span></p><p><span style="font-size: large;">Minha mãe sorri e entrega-me um pedaço de papel bastante gasto. </span></p><p><span style="font-size: large;">Amarelou, tem as arestas puídas, visivelmente arranhadas pelas unhas de Kronos.</span></p><p><span style="font-size: large;">O documento está dobrado em dois, desfazendo um retângulo, como se tivesse sido dividido ao meio para caber no bolso da camisa.</span></p><p><span style="font-size: large;">O papel é de gramatura pesada, quatro folhas em tamanho ofício amalgamadas numa só. Um cartão que revela a origem do departamento que o emitiu.</span></p><p><span style="font-size: large;">Estou diante de uma cédula de identidade com o carimbo das Forças Armadas do Brasil:</span></p><p><span style="font-size: large;">10º Batalhão de Infantaria – Juiz de Fora, MG – 2º Companhia de Fuzileiros.</span></p><p><span style="font-size: large;">Graduação: soldado.</span></p><p><span style="font-size: large;">Nº: 0522.</span></p><p><span style="font-size: large;">Nome: Carlos Roberto Lima.</span></p><p><span style="font-size: large;">Data e local de nascimento: 04-12-1962; Pedra Corrida-MG.</span></p><p><span style="font-size: large;">Lá em baixo, em azul, naquele anil das canetas Bic, o jamegão de José Cândido Lopes, coronel infante.</span></p><p><span style="font-size: large;">Olho para o retrato 3X4 e ali fenece um menino bonito.</span></p><p><span style="font-size: large;">Que olha firme para a lente da Kodak apontada para ele como um revólver pronto para disparar.</span></p><p><span style="font-size: large;">A imagem do frescor dos 18 anos denuncia um adolescente ocupado em seus rituais de passagem.</span></p><p><span style="font-size: large;">A foto revela ao mundo um homem em formação.</span></p><p><span style="font-size: large;">A vida exige voluntários.</span></p><p><span style="font-size: large;">O exército brasileiro, não.</span></p><p><span style="font-size: large;">Assim como o voto, o serviço militar é obrigatório para os rapazes do Brasil.</span></p><p><span style="font-size: large;">E está tudo lá, na fotografia, a obrigação que rouba o que restou da inocência e o impossibilita do livre arbítrio.</span></p><p><span style="font-size: large;">Patriotismo coercitivo. </span></p><p><span style="font-size: large;">Pele verde-oliva. </span></p><p><span style="font-size: large;">Ufanismo. </span></p><p><span style="font-size: large;">João Baptista Figueiredo. </span></p><p><span style="font-size: large;">Dom e Ravel.</span></p><p><span style="font-size: large;">Ali jaz um menino.</span></p><p><span style="font-size: large;">Um menino que pagou a conta em 18 prestações e saiu num ônibus da Viação Gontijo, perambulou durante dois dias pelas ruas de BH, antes de se perder nas páginas de um passaporte, embarcando numa viagem sem volta para Nova York.</span></p><p><span style="font-size: large;">As olheiras - cinzas diluídas - estão expostas para quem as fitar no marrom desbotado dos anos.</span></p><p><span style="font-size: large;">E é tão fundo o poço das incertezas para essa legião de garotos; é inverossímil a previsão de um final feliz. </span></p><p><span style="font-size: large;">Aos 18 anos é tudo tão turvo...</span></p><p><span style="font-size: large;">E turvas são as águas do futuro.</span></p><p><span style="font-size: large;">Mas há tanto de confiança naquele olhar que fuzila a câmera e por ela é fuzilado</span></p><p><span style="font-size: large;">Mal sabe ele. </span></p><p><span style="font-size: large;">Mal saberá.</span></p><p><span style="font-size: large;">Que conselhos eu poderia dar para aquele rapaz mais de três décadas depois?</span></p><p><span style="font-size: large;">Profeta do ontem, que me tornei, é tão fácil dizer que foi correta a decisão de deixar tudo para trás e tentar a sorte em outro país.</span></p><p><span style="font-size: large;">A saída pelo aeroporto é sempre uma eficaz válvula de escape para os que nasceram precários e com pouco a perder.</span></p><p><span style="font-size: large;">Eu poderia falar-lhe de outras escolhas, apontar a areia movediça de algumas companhias e poupá-lo de desgostos e decepções.</span></p><p><span style="font-size: large;">Rabiscaria-lhe atalhos para evitar descaminhos.</span></p><p><span style="font-size: large;">Rascunharia cenários caóticos e eventuais oásis com suas brisas e regatos. </span></p><p><span style="font-size: large;">E o deixaria escolher.</span></p><p><span style="font-size: large;">Falaria do amor de juventude que não daria em nada, além dos porres de praxe e subsequentes noites de insônia.</span></p><p><span style="font-size: large;">Eu o consolaria e lhe enxugaria as lágrimas, poupando-o da indiferença fria do travesseiro.</span></p><p><span style="font-size: large;">Sugeriria livros e filmes como antídoto, munição e lastro. </span></p><p><span style="font-size: large;">Eu o ensinaria a gostar de Woody Allen, que ele não compreende, mas tem receio de confessar sua incompreensão nas rodas de bar.</span></p><p><span style="font-size: large;">Eu o convenceria a terminar a leitura de A Montanha Mágica, de Thomas Mann.</span></p><p><span style="font-size: large;">Falaria da beleza das ruas de Praga e do silêncio de algumas catedrais de Berlim.</span></p><p><span style="font-size: large;">Reproduziria o som de flauta que faz o vento quando preenche e arrepia as paredes de pedra das vielas antigas de Belfast.</span></p><p><span style="font-size: large;">Eu o ensinaria a conversar com Deus.</span></p><p><span style="font-size: large;">Talvez...</span></p><p><span style="font-size: large;">Talvez...</span></p><p><span style="font-size: large;">Pensando bem, eu não lhe diria nada.</span></p><p><span style="font-size: large;">Deixaria que vivesse tudo outra vez, cometesse erros e acertos seguindo seus instintos e caráter trazidos na marmita.</span></p><p><span style="font-size: large;">E que se concedesse a oportunidade de reinterpretar tudo o que viveria.</span></p><p><span style="font-size: large;">E que se moldasse e se reinventasse ao ritmo do tambor do tempo sem nenhuma interferência externa.</span></p><p><span style="font-size: large;">É bem provável que esse homem - que agora se revê num documento caducado e carcomido pelas traças - se tornasse mais liberto, mais leve, quase pleno.</span></p><p><span style="font-size: large;">Um homem que representasse melhor o jovem da fotografia.</span></p>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-33456364508034880072022-06-17T11:24:00.004-04:002022-06-17T12:28:17.236-04:00 Presente de turco<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEirgRd5JRe9WELhQvw_tSNj6YtukdAqEkcvdlGgtqFCuo1ozlO5lDyZwrlq27MVWtisUsE9FuKTem-0kS_ZJZi19_apitBk04SQFyN8xnB-Hi93migHEU6E5-Rrpw_YBdTNr7z2aiqJtPKMJ5Zqt1FiS5v7Aqj05ka-7rnvq3HH75KIXmZz2cRnhbjhig/s259/yogurt.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="194" data-original-width="259" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEirgRd5JRe9WELhQvw_tSNj6YtukdAqEkcvdlGgtqFCuo1ozlO5lDyZwrlq27MVWtisUsE9FuKTem-0kS_ZJZi19_apitBk04SQFyN8xnB-Hi93migHEU6E5-Rrpw_YBdTNr7z2aiqJtPKMJ5Zqt1FiS5v7Aqj05ka-7rnvq3HH75KIXmZz2cRnhbjhig/w400-h300/yogurt.jpg" width="400" /></a></div><br /><p>(Para o Jailton, que partiu)</p><p><br /></p><p><br /><span style="font-size: large;">O que é o Orkut?</span></p><p><span style="font-size: large;">Ou, melhor, o que foi o Orkut?</span></p><p><span style="font-size: large;">Explico para a filha adolescente, que tenta me educar sobre o TikTok.</span></p><p><span style="font-size: large;">Ela franze as sobrancelhas com a minha rasa explicação.</span></p><p><span style="font-size: large;">- Invenção turca? Pai do Facebook? Como assim?</span></p><p><span style="font-size: large;">Conto que fui arrastado para lá. </span></p><p><span style="font-size: large;">E de lá para o Facebook, onde agonizo nos dias de hoje.</span></p><p><span style="font-size: large;">Para as minhas filhas, o Facebook é coisa de um passado distante, ambiente frequentado por pessoas defasadas e decadentes como eu.</span></p><p><span style="font-size: large;">- Tem coisa muito melhor, pai!</span></p><p><span style="font-size: large;">Elas tentam me atrair para uma nova cilada, mas aviso que, para o TikTok, eu não vou nem amarrado. Estou muito velho para mostrar o ‘corpitcho’ e não sei fazer dancinhas.</span></p><p><span style="font-size: large;">E fim de papo.</span></p><p><span style="font-size: large;">Redes sociais: terá existido vida antes delas?</span></p><p><span style="font-size: large;">Um pouco antes dessa conversa com Clarice, eu tentava achar uma explicação para o fato de ter aberto obscuros perfis no Twitter e no Instagram.</span></p><p><span style="font-size: large;">Não decolaram. Tenho menos seguidores do que dedos.</span></p><p><span style="font-size: large;">Para que servem essas redes invisíveis e seus seguidores? – pergunto ao que me resta de discernimento.</span></p><p><span style="font-size: large;">E os influencers?</span></p><p><span style="font-size: large;">Para que servem esses ‘profissionais’? </span></p><p><span style="font-size: large;">Onde estudaram para exercer esse ofício tão importante e lucrativo dos dias de hoje?</span></p><p><span style="font-size: large;">Influenciadores... Quem diria?!</span></p><p><span style="font-size: large;">Naquilo que eu crescia - na segunda metade do século passado -, Papai orientava para eu tomar cuidado com as influências.</span></p><p><span style="font-size: large;">Foi tudo em vão.</span></p><p><span style="font-size: large;">Li em algum lugar que amigo de Facebook é como dinheiro de Banco Imobiliário: não serve para nada.</span></p><p><span style="font-size: large;">Não é bem assim. Mas que o Facebook é uma espécie de xangrilá, isso é. </span></p><p><span style="font-size: large;">A plataforma de Mark Zuckerberg é um aquário transparente, onde a gente vê – como um menino que romantiza o doce do outro lado da vitrine da padaria – uma legião de pessoas felizes participando de um comercial de margarina.</span></p><p><span style="font-size: large;">Mas como toda regra tem exceção, já saí desesperado, tentando socorrer - via telefonia - algum náufrago pedindo socorro. </span></p><p><span style="font-size: large;">Num destes episódios, quase me afoguei junto. C’est la vie!</span></p><p><span style="font-size: large;">Inflamado pela lembrança da frase, abro o Facebook e vou direto à lista de amigos. Vou disposto a fazer uma faxina e jogar na lata de lixo todas as pessoas com quem jamais troquei uma palavra.</span></p><p><span style="font-size: large;">Observo que dezenas de moças com a idade das minhas filhas me pediram em “amizade” e eu aceitei.</span></p><p><span style="font-size: large;">Ôxi! </span></p><p><span style="font-size: large;">Apago uma por uma.</span></p><p><span style="font-size: large;">“É cilada, Pedro”, diria o Bino de Carga Pesada.</span></p><p><span style="font-size: large;">Apago o perfil de uma moça que posa ao lado de um carro importado.</span></p><p><span style="font-size: large;">E outra mais, em trajes menores.</span></p><p><span style="font-size: large;">- Como essa morena veio parar aqui, meu Deus? Está quase nua...</span></p><p><span style="font-size: large;">Mais de uma dúzia de indianos e tailandeses vão para o saco.</span></p><p><span style="font-size: large;">- E esse russo aqui? O cara está com um fuzil Kalashnikov!</span></p><p><span style="font-size: large;">Eu e a minha mania de aceitar a todos, indiscriminadamente. Mas algo parece ter mudado em mim nesse exato momento.</span></p><p><span style="font-size: large;">Deleto pelo menos cinco dúzias de perfis de sujeitos fazendo “arminha”. </span></p><p><span style="font-size: large;">- “Deus acima de todos e fazendo arminha?” - Haja paciência!</span></p><p><span style="font-size: large;">Pow!</span></p><p><span style="font-size: large;">Ao todo, apaguei mais de 900 perfis, baseado em critérios que não sei dizer. Parei com a faxina, porque notei que mais de 30 pessoas, com quem realmente interagi ou conheci pessoalmente, já não estão mais aqui.</span></p><p><span style="font-size: large;">E não me refiro ao Facebook.</span></p><p><span style="font-size: large;">O último a sair da linha do tempo foi o Jailton Pereira, um flamenguista que adorava Pat Metheny e estava desgostoso com a situação do Brasil, e que vi pela última vez numa livraria no Rio de Janeiro em 2019.</span></p><p><span style="font-size: large;">Foi levado por um infarto fulminante. O coração se cansou de bater em vão.</span></p><p><span style="font-size: large;">Ele se foi, mas persiste aqui, em meu peito, como o querido Marcus Mourão Pontes, outro que não atualizou mais a sua Timeline. </span></p><p><span style="font-size: large;">Marquinho foi mais que um amigo. </span></p><p><span style="font-size: large;">Fomos juntos ao show de celebração dos 25 anos da Atlantic Records, no Madison Square Garden. Vimos, naquela noite, a reunião do Led Zeppelin e, noutras noites e dias, tantas outras noites e dias, compartilhamos coisas bonitas que ficaram e ficarão. </span></p><p><span style="font-size: large;">Sinto muita falta dele.</span></p><p><span style="font-size: large;">Assim como sinto do Roniton, o eterno Neném, um conterrâneo com quem dividi um porão na Hensler Street, e de quem ainda carrego na orelha esquerda, o par do brinco com que ele foi enterrado.</span></p><p><span style="font-size: large;">Tem gente que não morre nunca.</span></p><p><span style="font-size: large;">Aqui, dentro desta carcaça carcomida pelo tempo, corre o Geraldo Corredor da Paz, de quem joguei as cinzas em sete praias de New Jersey no mês passado.</span></p><p><span style="font-size: large;">Nesse minifúndio de lembranças e saudades, Vander Lee ainda dedilha os primeiros acordes de Esperando Aviões.</span></p><p><span style="font-size: large;">Moraes Moreira canta Preta Pretinha.</span></p><p><span style="font-size: large;">É onde eu escuto a respiração do poeta Wander Porto, um cara muito boa praça que não cheguei a ver e para quem fiquei devendo um abraço.</span></p><p><span style="font-size: large;">A lista é grande e decidi que não apago mais o nome de ninguém. Vão ficar aqui para sempre.</span></p><p><span style="font-size: large;">Se Deus quiser, ele que me ‘hackeie’. </span></p><p><span style="font-size: large;">Ou aperte a tecla delete.</span></p><div><br /></div>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-67841103260796816402022-05-17T15:57:00.002-04:002022-05-17T15:57:41.240-04:00O bebê de Brasília<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjdqFXjVUnXNIJ8fjxXTqo4xmf5JU_WIe3G2SBd0_uerBNnXuZkl3F-vInQLnWP6VAH7uJxyxTkV4LrkEn8nSgEdmU2iciU8euSjnA9DzT0oWzm55kkrkLEyXISTjFBa-bE3eLctNgt7WRNbVvtWwGcbrjGhF0wHckFYqgx7QGPzjrhMZNEiNMgJb7MLQ/s300/papelao.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="300" data-original-width="300" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjdqFXjVUnXNIJ8fjxXTqo4xmf5JU_WIe3G2SBd0_uerBNnXuZkl3F-vInQLnWP6VAH7uJxyxTkV4LrkEn8nSgEdmU2iciU8euSjnA9DzT0oWzm55kkrkLEyXISTjFBa-bE3eLctNgt7WRNbVvtWwGcbrjGhF0wHckFYqgx7QGPzjrhMZNEiNMgJb7MLQ/w400-h400/papelao.jpg" width="400" /></a></div><br /><span style="background-color: white; color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic", sans-serif; font-size: 11.5pt;"><br /></span><p></p><p><span style="background-color: white; color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic", sans-serif; font-size: 11.5pt;">Deve
ter passado muito frio, o recém-nascido.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Deve
ter sentido falta da água morna do aquário da barriga de sua mãe. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Consigo
imaginá-lo naquela posição em que ficam os bebês antes de nascer, dormindo de
conchinha, inocente, sem imaginar que lá fora existem países em guerra e homens
vendendo a alma. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Dormiu
para sempre, sonhando com anjos tocando harpa e lírios derramando ouro. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Dormiu
como se escutasse um minueto e seus olhinhos fechados enxergassem Jesus. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Naquela
rua, naquele momento, passaram táxis vazios e ônibus à procura de uma
plataforma na estação rodoviária. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Passaram
sujeitos apressados buscando trabalho ou descanso. Circularam junkies sob o
efeito de álcool e drogas, transeuntes olhando para trás como se fugissem da
escuridão da noite - e seus ardis -. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Como
se fugissem das próprias sombras. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Por
ali passou o medo em passos de ganso. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Passou
a desesperança com a sirene ligada. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Passou
uma nação em transe, delirante, ensandecida sob o efeito da ganância e da
falência de caráter daqueles que a conduzem. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Transitou
um Brasil dormente. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Um
Brasil doente, canibal de si mesmo, soprando um samba de Adoniram numa flauta
feita a partir de um fêmur desovado. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Passaram
ambulâncias carregando doentes e automóveis importados levando novos ricos e
playboys desajustados. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Passou
uma mulher pedindo esmola, levando ao colo uma menina que não teve a mesma sina
que ele, apesar da sorte tão parecida. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Passaram,
também, a fome, a miséria e a injusta distribuição. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Passou
a violência aniquiladora, escancarada no olhar das pessoas. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Passaram
522 anos de uma história cheia de nódoas e metas não atingidas. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Passou
um país que não se cumpriu. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">O
bebê desta crônica não conhecerá as letras do alfabeto ou um poema de Cora
Coralina. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Não
aprenderá a falar ou caminhar em direção ao futuro. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Não
sentirá a falta de um abraço de mãe ou escutará um conselho de avó. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Não
verá os flamboyants sangrando no coração das primaveras, nem distinguirá o roxo
dos ipês e o vermelho das rosas no canteiro das praças. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Não
nadará em um riacho, nem sentirá o orvalho da grama molhada sob os pés
descalços. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Não
testemunhará a mudança das luas ou das estações; nem jogará futebol com outras
crianças. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Mas
também não se entristecerá com a classe dominante, aquela que aniquila fria e
impunemente o amanhã de gerações inteiras. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Ele
não ouvirá falar de negociatas escusas e nem terá o coração quebrado por algum
amor de juventude. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Foi
abandonado em um ponto de ônibus, como se fizesse parte de uma indesejada
ninhada de gatos. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Ficou
ali, tremendo de frio, na desesperança de que alguém passasse e se enchesse de
compaixão, dando a essa tragédia urbana um final feliz. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Ah,
menino de Brasília, a visão de seu corpinho dentro de uma caixa de papelão
deveria aguçar o sentimento de culpa e fracasso de toda a humanidade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Mas
estamos preocupados demais com o vencimento de nossas promissórias e com a
escolha do próximo colégio de nossos filhos nem sempre atentos. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Falhamos!
<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">E
você sucumbiu, desamparado, desnutrido e sozinho, conhecendo em suas primeiras
e derradeiras horas, o quanto é bruto o coração dos homens. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="background: white; line-height: normal; margin-bottom: 0in;"><span lang="PT-BR" style="color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic",sans-serif; font-size: 11.5pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Ao
final desta crônica, é até provável que apareça alguém dizendo que 'foi melhor
assim'.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span lang="PT-BR" style="mso-ansi-language: PT-BR;"><o:p> </o:p></span></p>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-77994763061632528622022-04-04T12:48:00.007-04:002022-04-12T14:16:56.851-04:00A última corrida de Geraldo Corredor<p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjvVtRqltD54s0YhOMyifiPF_QwYQV_XLDIDX4rD6bTeeT-I0wCJRJ3oNYVhiryiOfDHpdz68ooHDtJeOYeeZCdYzs_awqSiv0xqFXE-sCKU0RgGs6Daty08PRfa765JVna0x2EZOvaPseydTYleuKbso4rtUhze1Q5uUuDBLfNgKL_DHiWGkuG_D6urA/s2048/geraaldo.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="2048" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjvVtRqltD54s0YhOMyifiPF_QwYQV_XLDIDX4rD6bTeeT-I0wCJRJ3oNYVhiryiOfDHpdz68ooHDtJeOYeeZCdYzs_awqSiv0xqFXE-sCKU0RgGs6Daty08PRfa765JVna0x2EZOvaPseydTYleuKbso4rtUhze1Q5uUuDBLfNgKL_DHiWGkuG_D6urA/w400-h400/geraaldo.jpg" width="400" /></a></div><br /><b><i><br /></i></b><p></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><b><i>(Para o Geraldo, que dividiu comigo estradas e maçãs)</i></b></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;"><br /><br /></span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;"> Conheci o Geraldo Carlos pessoalmente em 1989. Não me recordo exatamente em que
situação.<br />
Eu já sabia dele, atleta respeitado em Governador Valadares, vencedor de
corridas importantes no interior de Minas Gerais.<br />
Dono de sete fôlegos, Geraldo tinha asas nos pés.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Como
Mercúrio,<br />
Veio para os Estados Unidos na década de 1980 atrás do sonho de ganhar a
Maratona de Nova York, mas foi desistindo do esporte, aos pouquinhos.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Parou para
tomar um fôlego às margens do rio Passaic e fez dali a sua
morada itinerante.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Nenhum lugar
foi tão dele quanto Newark.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">De vez em
quando pegava uma carona para a Flórida e ficava uma temporada por lá.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Massachusetts
também foi, muitas vezes, a sua casa. </span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Connecticut
não teve a mesma sorte.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Disse-me, um
dia, ter tido um amor na Califórnia, onde ele desejava voltar.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Infelizmente,
porém, alguns sonhos não se concretizam. A vida dá e tira de nós desejos e
vontades.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Geraldo era marinheiro, índio americano, Abraham Lincoln, judeu com uma estrela loura de Davi esculpida no topo do cocuruto e, como tais, ele se vestia.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Geraldo era
muitos. Tantos Geraldos.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Todos eles
muito condecorados, com medalhas e bottons balançando presos ao peito.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Frequentou
ruas e palácios, apertou a mão de presidentes, autoridades religiosas, estrelas da música e da
televisão. E foi mais popular do que muitos deles,</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Do Brasil ele não falava muito, como se quisesse esquecer alguma coisa acontecida por lá.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Distante das
pistas de atletismo, nunca parou de correr.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Correu para
fazer favores.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Correu
entregando jornais.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Correu pelas
crianças do mundo.<br />
Pelos mortos de fome do planeta.<br />
Pelos injustiçados sociais, como ele.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Pelos velhos
no inverno de suas vidas.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Pela vida
cada vez mais mirrada, encolhendo na história pessoal de cada um de nós.<br />
Correu por aqueles que não nasceram em berço de ouro e tiveram que se arrastar
pelas ruas deste mundo, como se fossem répteis em corpo de gente.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Correu pelos
bichos e criaturas que sempre estiveram à sombra dos homens e do dinheiro.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Correu pelas
almas mais puras.<br />
Pelo fim da violência, da qual foi tantas vezes vitimado.<br />
Correu pela paz, que ele incorporou ao nome com aquele inglês de imigrante que
não teve acesso à escola, bem ao pé da letra:<br />
"Geraldo, The Peace Runner".</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">A vida foi
dura com ele, não deixemos que o inapagável sorriso nos engane. </span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">Escrevo este
texto enquanto Geraldo repousa num quarto de hospital, respirando com a ajuda
de aparelhos, preparando-se para aquela que será a sua última corrida.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span style="font-size: large;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;">Os respiradores serão desligados amanhã, dia 5 de abril de 2022. </span><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">Como não
poderia deixar de ser, seus órgãos serão doados para pessoas necessitadas de um
transplante. Geraldo Corredor continuará vivo no corpo de outras pessoas,
num derradeiro gesto de generosidade e compaixão.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">A faixa da
chegada se aproxima para ele e, onde muitos de nós leriam a palavra
"Fim", pode-se ler, finalmente, Paz.</span></span></p><p>
</p><p class="MsoNormal" style="font-family: Calibri, sans-serif; line-height: normal; margin: 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;"> </span></span></p>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-48429886922470765732022-03-08T15:49:00.007-05:002022-03-15T16:30:40.474-04:00O velho olhando o mar<p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span style="color: black; font-size: large;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="color: black; font-size: large;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjjYhOyXxowIdDEokBfv5i050MFVI0daDIGTwFK3A_D8g1qSwmGh4eJor-Qve4zgR5qY_cn5kRzLTvMECXQwYCK_xeIxvmloL3Jpo2l4plxrv_sI5yjGnsmNO3_1dpyD1bjBYO7pNPTdFgFzjEPRE8ItCWn_wARqlBwq1W3ynEt0i8UMRuYMnNgrk8dTg=s1599" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="899" data-original-width="1599" height="225" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEjjYhOyXxowIdDEokBfv5i050MFVI0daDIGTwFK3A_D8g1qSwmGh4eJor-Qve4zgR5qY_cn5kRzLTvMECXQwYCK_xeIxvmloL3Jpo2l4plxrv_sI5yjGnsmNO3_1dpyD1bjBYO7pNPTdFgFzjEPRE8ItCWn_wARqlBwq1W3ynEt0i8UMRuYMnNgrk8dTg=w400-h225" width="400" /></a></span></div><span style="color: black; font-family: "Times New Roman", serif;"><br />(Para o Libinha)</span><p></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span style="color: black;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: large;"><br /></span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span style="color: black; font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="font-size: large;">É duro conviver com a degradação do corpo.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span style="color: black; font-size: large;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">A lentidão dos movimentos.<br /></span><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">A dor nas articulações.<br /></span><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">A erosão da pele refletida no espelho quando vai fazer a barba.<br /></span><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">A urina no chão.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">A exacerbada dificuldade de amarrar os sapatos, que fez com que ele começasse a usar mocassins, que sempre detestou.<br />"É só enfiar o pé, como na vida", recita para uma plateia vazia.<br />Os filhos se foram e agora são só ele e ela, mais de sessenta anos depois. </span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">De vez em quando recebe a visita dos descendentes e é como se começasse o carnaval de Olinda num lugar muito distante de Pernambuco. </span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Ele, que gosta de Mozart, Verdi e Puccini, e que murmura as cantilenas que entoava o seu pai, no tempo em que era menino. </span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">O pai - que o deixou cedo demais -, fez com que ele fosse viver com um tio e costurasse um vazio ao bolso da camisa. </span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Quando não se recorda de trechos das 'cantigas de não ninar' do seu pai, improvisa e preenche com palavras sem sentido.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">E ri da falta de graça.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">A varanda de frente para o Atlântico foi uma conquista que comprou a prestação, na planta, quando a cidade ainda era um segredo bem guardado.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Vai arrastando lembranças e culpas pelo apartamento como um prisioneiro que carrega uma bola de ferro atada ao tornozelo.<br /><br /></span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">“A vida pesa.”</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;"><br />Atravessa o enorme corredor - que fica cada vez mais comprido - e sente a carga do acúmulo dos dias<br />Leva a sombra cambaleante para ver o mar que lambe as areias, onde a vizinha do prédio ao lado escreve com um ancinho, todas as manhãs, a saudação "bom dia". </span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Protegido pela vidraça blindex, ele se senta na cadeira de cana-da-Índia e olha para a linha do horizonte tentando enxergar o portal de xangrilá, que nunca existiu, nem existirá...</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">E reafirma para si mesmo que a terra em que pisamos - onde ele jura ter visto um casal de refugiados haitianos copulando por volta do meio dia, no terraço do edifício adjacente, refletindo a pele cromada no absurdo do sol - é Sodoma e Gomorra.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">"Sempre será."</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;"><br />Funcionário aposentado do Banco Brasil, ele faz todos os dias uma conta que não fecha.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Acompanha com o olhar o cargueiro levando petróleo em estado bruto, talvez, para o Uruguai.<br />Testemunha o transatlântico apinhado de turistas italianos, presumidamente bebendo champanhe no convés.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">"La vita è bella! Prosecco para as massas.", decreta.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Sente súbita solidariedade com os garis que retiram algas e garrafas de matéria plástica com seus uniformes alaranjados, preparando a praia para os banhistas de amanhã.<br /><br /></span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">"A vida é bruta."<br /><br /></span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">E a dor é éter.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Emociona-se com a visão de uma estrela cadente se apagando no horizonte, feito uma brasa encarnada que se dilui numa bacia de água suja.<br /><br />"A vida é tão rara", Lenine canta no rádio.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;"><br /></span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Passa por ele a lembrança do inverno na serra catarinense.<br />A alegria do nascimento do primeiro filho, uma menina.<br />A pancada do primeiro infarto dentro do box enfumaçado do banheiro, o zunido que ficou, como acontece quando o avião descende da altura de cruzeiro e a pressão tapa momentaneamente o buraco dos ouvidos.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Pensa na coleção de discos de ópera e na filha que mora no estrangeiro.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Acompanha a passagem de uma gaivota levando no bico a imagem de um gol de Mengálvio, que ele viu no Maracanã durante os doze meses que morou no Rio.<br />Pensa no choque que sentia, moço do interior, quando via as putas e travestis da Lapa em seu trattoir aos finais da tarde.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">E no batuque que vinha do terreiro de umbanda a caminho do quartel.<br />A memória junta resíduos e acácias, que ele encosta em um canto do cérebro, na esperança de que algum vento os leve dali, deixando para trás somente o que lhe for perfume.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Começa a adormecer, a cabeça pesando, o queixo tocando a base do peito, como se o sono aliviasse as dores e dissipasse a certeza da morte, que um dia chegará.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Sonha momentaneamente com ilhas paradisíacas e chora com a imagem de policiais de coturnos pesados, pisando raivosos nas areias do balneário.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">No instante seguinte, sorri de olhos fechados com a imagem do rosto de Pelé aos dezessete anos.<br />Franze a testa com uma lembrança inconclusa de sua mãe, que partiu ainda mais cedo que o pai.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Sente frio. O frio que sentem os órfãos.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">E tudo vira breu.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Acorda escutando a voz do bisneto pedindo paçoca para a empregada na cozinha.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Sente-se liberto.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">De súbito.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">Um frevo de Capiba começa a tocar no seu coração.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="background-color: white; color: #222222; line-height: normal; margin: 0px 0px 0in;"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman", serif;"><span style="color: black; font-size: large;">É carnaval no sul do Brasil.</span></span></p>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-50604904862552228562022-01-04T18:52:00.002-05:002022-01-04T18:52:37.821-05:00Patolino<p><span style="font-size: x-large;">(Para a Bebel)</span></p><p><br /></p><p><span style="font-size: large;">Minha filha Bebel tem uma coisa com o número 11. Ela nasceu às 11:11 da noite do dia 27 de outubro de 2001. Tão logo descobriu o significado da palavra numerologia, encafifou-se.</span></p><p><span style="font-size: large;">Recentemente, ela fez uma tatuagem com esse número. Trata-se de um discreto desenho em seu braço direito, a uns cinco centímetros do punho.</span></p><p><span style="font-size: large;">Onze, dois pontos, onze.</span></p><p><span style="font-size: large;">No teto do seu quarto, bem na direção do travesseiro em que ela repousa a cabeça, tem uma frase escrita com caneta azul. Quando abre os olhos, todas as manhãs, ela pode ler:</span></p><p><span style="font-size: large;">11:11: The Hour of Power.</span></p><p><span style="font-size: large;">Se é o momento da força, eu não sei. </span></p><p><span style="font-size: large;">Todas as vezes que eu olho o relógio e os ponteiros indicam que são onze e onze, eu me lembro dela.</span></p><p><span style="font-size: large;">E me lembro, também, de mim, e da estranha relação que tenho com o número 22.</span></p><p><span style="font-size: large;">- "22 é o dobro do número do seu 'número de estimação', digo sempre para minha filha.</span></p><p><span style="font-size: large;">Ela ri.</span></p><p><span style="font-size: large;">O que isso quer dizer?</span></p><p><span style="font-size: large;">Talvez nada, mas foi o meu número de soldado do exército brasileiro e na chamada da sala de aula nas escolas de Governador Valadares, ainda menino.</span></p><p><span style="font-size: large;">Vira e mexe, o nome e o número se reencontram.</span></p><p><span style="font-size: large;">E nada acontece.</span></p><p><span style="font-size: large;">Estiveram no passaporte e em mais de um cartão de crédito. E em outras situações.</span></p><p><span style="font-size: large;">No bingo, eu nunca ganhei com o 22. Aliás, nunca ganhei.</span></p><p><span style="font-size: large;">Na loteria, sempre jogo o 22 e não ganhei absolutamente nada, além da certeza de que a loteria é uma arapuca de pegar bobo.</span></p><p><span style="font-size: large;"><br /></span></p><p><span style="font-size: large;">De superstição em superstição eu e minha filha vamos levando a vida. Tenho certeza de que não estamos sozinhos nesse barco furado, mas algo parece ter mudado. </span></p><p><span style="font-size: large;">Eu, que há mais de 40 anos só uso cueca amarela na passagem do ano - sem receber o benefício do dinheiro abundante no novo ciclo -, resolvi chutar o pau da barraca e acabar com a tradição.</span></p><p><span style="font-size: large;">Aliás, prometi me libertar de vez de todas as mandingas.</span></p><p><span style="font-size: large;">Superstições?</span></p><p><span style="font-size: large;">Nunca mais!</span></p><p><span style="font-size: large;">No último dia 31 eu não comi 12 uvas, nem lentilhas. </span></p><p><span style="font-size: large;">A roupa não era branca e a cueca - uma brincadeira de minhas filhas -, era mais colorida que um tambor do Olodum, com a estampa do Patolino bem no meio da bunda. </span></p><p><span style="font-size: large;">Não saí por aí caçando uma praia para dar sete pulinhos.</span></p><p><span style="font-size: large;">Dispensei as três sementes de romã,</span></p><p><span style="font-size: large;">Nem fiz pedidos desoriginais em bilhetinhos de punho próprio para jogar ao vento.</span></p><p><span style="font-size: large;">Não que eu não queira emagrecer 5 quilos e não deseje que o Cruzeiro volte à primeira divisão, é claro que não.</span></p><p><span style="font-size: large;">Que não deseje o fim da pandemia.</span></p><p><span style="font-size: large;">Da carestia.</span></p><p><span style="font-size: large;">Da necessidade das pessoas entrarem na fila do osso, para escapar da fome.</span></p><p><span style="font-size: large;">E de muito mais.</span></p><p><span style="font-size: large;">Para completar o pacote anti-reveillon, fui dormir cedinho, após me empanturrar de ceviche num restaurante de Newark.</span></p><p><span style="font-size: large;">Não vi, nem ouvi, a queima dos fogos. Nem desejei feliz ano novo a ninguém. </span></p><p><span style="font-size: large;">Morfeu não apareceu nos meus sonhos para brindar com champanhe e ainda tive um pesadelo com um imbecil andando de jet ski.</span></p><p><span style="font-size: large;">Normal.</span></p><p><span style="font-size: large;">Aterrissei em 2022 na mesma hora de sempre, tomei meu café-com leite e torrada e fiquei olhando os cachorros correndo no frio do quintal.</span></p><p><span style="font-size: large;">E aí o número 22 atravessou a paisagem, num galope.</span></p><p><span style="font-size: large;">Será que esse é o ano em que eu ganharei, finalmente, no bingo e na loteria?</span></p><p><span style="font-size: large;">Ou será que é o ano da minha morte?</span></p><p><span style="font-size: large;">Bati três vezes na madeira da mesa.</span></p><p><span style="font-size: large;">Sai pra lá, assombração.</span></p><p><span style="font-size: large;">Vem 'nimim', 2022!</span></p>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-61952777652673415742021-10-01T16:07:00.000-04:002021-10-01T16:07:26.136-04:00 Um fado para Isabella<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhc4lZReBQXCSjbXjog53scjoxxNionZUrqAipuxiDO8mrEM9BdiMtUq8m5SVXs-wXQD_EWWMNo6rvCPJKUnX0jWEjONzlsD3zT30K_J7TVriIQcfZBYq2eGSgrVlFfyK9FqvgACQ9KoMtk/s585/bebelita.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="585" data-original-width="526" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhc4lZReBQXCSjbXjog53scjoxxNionZUrqAipuxiDO8mrEM9BdiMtUq8m5SVXs-wXQD_EWWMNo6rvCPJKUnX0jWEjONzlsD3zT30K_J7TVriIQcfZBYq2eGSgrVlFfyK9FqvgACQ9KoMtk/w360-h400/bebelita.jpg" width="360" /></a></div><span style="background-color: white; color: #050505; font-family: inherit; font-size: x-large; white-space: pre-wrap;">
(Para a Bebel, que alçou voo)</span><p></p><div class="kvgmc6g5 cxmmr5t8 oygrvhab hcukyx3x c1et5uql ii04i59q" style="background-color: white; color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic", "Segoe UI", Helvetica, Arial, sans-serif; margin: 0px; overflow-wrap: break-word; white-space: pre-wrap;"><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;"><br /></span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Hoje eu entendo as lágrimas daquele abraço que deixou a minha camisa molhada. Era 8 de abril de 1984 e nos despedíamos na plataforma de número 8 da estação rodoviária de Governador Valadares.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Seu Antônio soluçava agarrado a mim como se não quisesse me soltar. Eu tinha 21 anos e foi a primeira vez o que vi chorar.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">O ônibus da Gontijo me levou a Belo Horizonte, onde eu embarcaria no aeroporto da Pampulha para o Galeão. O destino final seria Nova York, de onde eu nunca mais voltei de vez.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">E esse era o medo de papai. Que eu ficasse, para sempre, longe dos seus braços.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Que não estivesse mais ao alcance dos seus olhos vigilantes.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">De debaixo de suas asas.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Naquele momento eu não me dei conta do seu sentir. </span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Ele sempre foi um pai muito presente, e eu via nele uma espécie de super-herói, anjo da guarda, fortaleza intransponível em cujos braços eu me tornava protegido das mazelas e maldades deste mundo.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Mas era chegada a hora de alçar o voo solo e tentar achar o meu lugar no mundo. </span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Quase 40 anos depois - e já não o tendo por perto para abraçar e fazer essa confissão -, emociono-me com a lembrança do calor do seu corpo naquele dia de abril.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Somente na semana passada eu pude entender a dor que ele sentiu.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Era madrugada de quarta para quinta-feira quando liguei o carro sob um céu absurdamente azul, como se nada de relevante tivesse acontecido na véspera.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Algumas horas antes, o devastador furacão Ida deixou um rastro de destruição e tristeza por toda Nova Jersey, uma tragédia que também nos afetou.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Mas precisávamos sair. O voo solo de Isabella urgia.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Pegamos a estrada e fui dirigindo até Chicago, a 1333 quilômetros de casa.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">No banco de trás ela viajava, levando na mudança os sonhos de juventude. Ela, que começará a cursar o segundo ano de cinema na DePaul University a partir da próxima semana. </span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">A cada quilômetro viajado ia passando um filme diante dos meus olhos, uma película que começou a ser rodada no dia do seu nascimento e culminou ali, dentro de um Toyota, onde ela agora dormia serenamente, confiando a vida nas mãos daquele motorista.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Apesar de muitos falhanços, eu sei que me esforcei.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Se formos levar em conta que todo filho tem na figura paterna a de um herói, eu me encho de empáfia para me assumir – vá lá! - quase um Batman (já que estamos indo para Chicago).</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Se meu pai foi um super-homem, eu terei sido um homem-morcego decadente, fora do peso e desprovido de superpoderes.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Um não-herói sem capa ou espada, que passa as tardes de domingo bebendo cerveja e assistindo futebol na televisão.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Um homem que sabe que, em muitos momentos, deu até mais do que podia dar, mas certamente muito menos do que Isabella merecia.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Um sujeito que distribuiu charutos quando ela nasceu.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Que a levou e buscou tantas vezes na escola.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Que sentiu orgulho quando a viu pela primeira vez num balé.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Que a levava aos treinos e jogos de futebol.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Que tentou fazer com que nada lhe faltasse.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Que cozinhou para ela todos os dias.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Que sempre a olhou com o mesmo olhar de zelo e contemplação daquele 27 de outubro de 2001, quando nasceu.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">E que jamais tentou interferir nas suas escolhas, mesmo quando não as aprovou.</span></div></div><div class="o9v6fnle cxmmr5t8 oygrvhab hcukyx3x c1et5uql ii04i59q" style="background-color: white; color: #050505; font-family: "Segoe UI Historic", "Segoe UI", Helvetica, Arial, sans-serif; margin: 0.5em 0px 0px; overflow-wrap: break-word; white-space: pre-wrap;"><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Tomado por tantas lembranças, chegamos à Cidade dos Ventos.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Levamos as suas coisas para o quarto no moderno prédio de Lincoln Park, um dos bairros mais seguros da cidade.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Ela ficou com a mãe arrumando as coisas em seus devidos lugares, enquanto eu fui para o hotel contabilizar as dores e rascunhar a vida depois daquele momento.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">No dia seguinte fizemos as compras de supermercado, o suficiente para uma família de quatro pessoas durante dois meses. Depois seguimos para Pilsen, bairro latino conhecido por seus murais de grafite.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Após o jantar, levei-a ao alojamento onde ela iria viver a partir daquela noite. Fazia-se tarde e eu tinha que pegar a estrada de volta às cinco da manhã.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Eu vi pelo retrovisor quando ela entrou pela porta de vidro do alojamento da universidade. Por um breve instante desejei que a grande vidraça fosse da espessura da parede de um abrigo nuclear.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">E que protegesse a minha filha dos ventos cortantes de Chicago e do frio dos invernos que ainda hão de vir.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">E afastasse dela todas as pessoas e pensamentos ruins. Todos os medos do fracasso.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Dentro do carro, ainda parado em fila dupla, eu vi quando ela retirou momentaneamente a máscara anticovid e abriu aquele sorriso que iluminou a rua.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Acenou com as mãos que eu lhe dei, num adeus que desejei que fosse um até breve.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">De volta pro hotel eu solucei a noite inteira e acordei com uma inexplicável sensação de orfandade invertida.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">A viagem de volta a New Jersey foi a mais longa de toda a vida.</span></div><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;">Dentro do peito floresceu a lembrança de meu pai no dia que eu vim embora.</span></div></div>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-42900534038400270562021-04-19T14:44:00.008-04:002021-04-20T13:05:47.326-04:00 Duas estórias sobre Clarice<p><br /></p><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEisxdvUa2BpaAAV6uPfIxZquJ51alYa3xTdgY_nyYsCbAKIrKj4zPiRPbOOBeBDO4vt_p-VoBjcvPhs1Qbfi90euefXdi75aizr_8zkLjXYxXMBbCWK20zqm7rNjUthRZJnctc8JF-wxOVj/s938/ciss.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="810" data-original-width="938" height="345" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEisxdvUa2BpaAAV6uPfIxZquJ51alYa3xTdgY_nyYsCbAKIrKj4zPiRPbOOBeBDO4vt_p-VoBjcvPhs1Qbfi90euefXdi75aizr_8zkLjXYxXMBbCWK20zqm7rNjUthRZJnctc8JF-wxOVj/w400-h345/ciss.jpg" width="400" /></a></div><br /><div><span style="font-size: large;"><i><b>UM VULTO NA PENUMBRA</b></i><br /><br />Clarice assistiu um filme impróprio no cinema.<br />Ela tem 11 anos e a película estava regulamentada para pessoas acima de 13. Entrou com a irmã mais velha e as primas.<br />O filme tinha cenas violentas, o que deve tê-la deixado bastante impressionada.<br />Duas da manhã, durmo pesadamente e sinto uma mão me tocar o rosto.<br />Abro os olhos e vejo aquela figura conhecida dissolvida na penumbra do quarto.<br />- Pai, estou tendo um sonho ruim.<br />Chego-me para o lado, puxo o edredom e ofereço o canto.<br />- Deita aqui, que papai te protege, digo flexionando o bíceps deficiente de musculatura.<br />Ela ri, deita ao meu lado, abraça-me e dorme quase que imediatamente.<br />Passo a noite em claro.<br />Fico ali, guardando o sono de Clarice, de olho na janela, de olho em Liam Neeson.<br /><b><br />BIOGRAFIA</b><br /><br />Estou terminando de ler a biografia do músico paraibano Zé Ramalho. Clarice, a caçula, entra no quarto e se deita ao meu lado:<br /><br /> - Pai, que livro é este?<br /> Respondo, sem tirar o olho da página 236.<br /> - É bom?<br /> Aceno afirmativamente com a cabeça.<br /> Ela olha na capa e vê a foto do compositor em tronco nu, braços abertos.<br /> - Livro de terror, né?<br /> Sorrio. Zé Ramalho não é lá dos mais belos. E respondo tratar-se de uma obra biográfica.<br /><br />Clarice coça a cabeça, olha para mim e pergunta:<br /> - O senhor não acha que já passou da hora de escreverem a minha biografia?<br /> Concordei.<br /> Já passou da hora.<br /> Adormeceu aqui, a cabeça jogada em meu ombro, a mãozinha direita segurando o livro.</span></div><div><span style="font-size: large;"><br /></span></div><div><i><b><br /></b></i></div><div><i><b>* Clarice tem, hoje, 17 anos. No próximo mês de setembro ela iniciará sua trajetória acadêmica na Temple University, em Filadélfia. Está chegando a hora, eu sei. Vou ter que guardá-la de longe. Bem longe.</b></i></div>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-40816265815337360622021-04-04T22:04:00.002-04:002021-04-05T16:29:32.580-04:00 O diploma<p><span style="font-size: x-large;"> </span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg1yg-SMiHD2kRWsouE7ugQ3tAfpS1wXvQ9ZbmkzATD2UdLQ_2PyXBEPRfaDOhfhdrlRq9hZGGZD4DrhHmTP7ERAcA1H_n1mRMIHnD_9q3-0sJTn-QNAz75m7jgXWTaIJ1MwRRNQaiFMSNa/s1024/golpeia.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="538" data-original-width="1024" height="210" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg1yg-SMiHD2kRWsouE7ugQ3tAfpS1wXvQ9ZbmkzATD2UdLQ_2PyXBEPRfaDOhfhdrlRq9hZGGZD4DrhHmTP7ERAcA1H_n1mRMIHnD_9q3-0sJTn-QNAz75m7jgXWTaIJ1MwRRNQaiFMSNa/w400-h210/golpeia.jpg" width="400" /></a></div><p></p><p><span style="font-size: large;"><br />Meu pai nasceu em Mutum, cidadezinha com fama de violenta, da microrregião de Aimorés, Minas Gerais. </span></p><p><span style="font-size: large;">Nasceu em casa, cresceu na roça, com sete irmãos. </span></p><p><span style="font-size: large;">Antônio Ferreira Lima era o seu nome.</span></p><p><span style="font-size: large;">Brotou em casa, dentro dos limites de um sítio, e ali existiu entre os pés de café.</span></p><p><span style="font-size: large;">Aos oito anos foi matriculado numa escola rural. </span></p><p><span style="font-size: large;">Adorava. </span></p><p><span style="font-size: large;">Mas sabia que alegria de pobre dura pouco. Sempre foi assim, desde o princípio dos tempos.</span></p><p><span style="font-size: large;">Ao fim de 30 dias de alfabetização viu a figura austera do meu avô adentrar a sala de aula, improvisada num barraco que antes fora um paiol. </span></p><p><span style="font-size: large;">Tentou decifrar o que a professora visivelmente não conseguia entender.</span></p><p><span style="font-size: large;">E saiu dali levado pela mão firme do pai. </span></p><p><span style="font-size: large;">Mão calejada, dura, curtida na labuta da lavoura mais bruta.</span></p><p><span style="font-size: large;">E nunca mais voltou.</span></p><p><span style="font-size: large;">- Eu não precisei e você também não vai precisar, disse-lhe vovô.</span></p><p><span style="font-size: large;">O menino baixou a cabeça para nunca mais levantá-la, de fato.</span></p><p><span style="font-size: large;">Na caminhada entre o paiol e a casa saquearam violentamente a sua infância.</span></p><p><span style="font-size: large;">Não deixaram quase nada de inocência e de sonho. </span></p><p><span style="font-size: large;">E isso explicaria certos comportamentos, algumas incompreensões e reações registradas ao longo dos seus 84 anos.</span></p><p><span style="font-size: large;">Noves fora nada, papai superou as expectativas.</span></p><p><span style="font-size: large;">Em vez de um lápis, aquela criança ganhou uma enxada, instrumento que a acompanharia dos oito aos 21 anos.</span></p><p><span style="font-size: large;">Calçaria os pés pela primeira vez aos 17. </span></p><p><span style="font-size: large;">Com o dinheiro economizado depois de uma colheita de milho, foi ao sapateiro do vilarejo, profissional cujo estoque se resumia, naquele momento, a um par de chuteiras de jogar futebol.</span></p><p><span style="font-size: large;">E tudo o que ele queria era sair dali calçado.</span></p><p><span style="font-size: large;">Sonhara com um par de botinas, mas contentou-se com o que o comerciante tinha, dois números menores que os seus pés.</span></p><p><span style="font-size: large;">Humilhado no primeiro baile a que compareceu paramentado, voltaria descalço para casa. </span></p><p><span style="font-size: large;">E assim permaneceria.</span></p><p><span style="font-size: large;">Conseguiu trocar as chuteiras por uma velha garrucha e só se realizou dois anos depois, quando finalmente adquiriu um par de botas.</span></p><p><span style="font-size: large;">Aos 21 anos foi tentar a sorte em Governador Valadares. </span></p><p><span style="font-size: large;">Perambulou pelas ruas da cidade até encontrar abrigo em um bar, onde se ofereceu para fazer qualquer serviço. </span></p><p><span style="font-size: large;">Generoso, o dono do estabelecimento - um homem chamado Carlos - ofereceu-lhe um salário mínimo e um quartinho nos fundos do quintal. </span></p><p><span style="font-size: large;">A gratidão ao senhor Carlos foi tão grande que todos os filhos de meu pai se chamariam Carlos.</span></p><p><span style="font-size: large;">Como este Carlos Roberto que vos escreve.</span></p><p><span style="font-size: large;">Ao saber que a polícia militar estava precisando de soldados, vislumbrou ali uma forma de adquirir estabilidade profissional. </span></p><p><span style="font-size: large;">A prova de admissão consistia em o candidato se apresentar ao batalhão, sentar-se numa carteira rodeado de outros candidatos e escrever uma carta pedindo emprego.</span></p><p><span style="font-size: large;">Os poucos dias vividos no banco da escola rural, no entanto, não lhe davam lastro necessário para escrever a missiva. Precisaria ser criativo.</span></p><p><span style="font-size: large;">Foi aí que teve a ideia de pedir a um contabilista - cliente do bar - que escrevesse a tal carta em um pedaço de papel de embrulhar pão.</span></p><p><span style="font-size: large;">Depois de uma semana praticando, aprendeu a desenhá-la.</span></p><p><span style="font-size: large;">Foi assim que ele foi admitido na PM de Minas Gerais.</span></p><p><span style="font-size: large;">Praça novo rodou por todo o Vale do Rio Doce até conhecer, em Galileia, uma moça com quem se casaria.</span></p><p><span style="font-size: large;">Construíram um barraco. Tiveram filhos.</span></p><p><span style="font-size: large;">Antes de mim nasceu um menino, que morreria de meningite</span></p><p><span style="font-size: large;">Nasci eu. </span></p><p><span style="font-size: large;">Depois viriam outro menino e uma menina. </span></p><p><span style="font-size: large;">Nunca ficamos sem ter o que comer. </span></p><p><span style="font-size: large;">Vestíamo-nos com pedaços de farda que minha mãe desconstruía para nos cobrir. A vida era boa.</span></p><p><span style="font-size: large;">Eu tinha pouco mais de um ano quando estourou o golpe de 1964. Papai ficou de prontidão no 6º Batalhão, esperando por um combate que não aconteceu. </span></p><p><span style="font-size: large;">Seu "prêmio" foi um diploma de "honra ao mérito", que amarelou dentro de uma moldura na sala da casa onde cresci. </span></p><p><span style="font-size: large;">Aquele foi o único diploma que meu pai recebeu na vida.</span></p><p><span style="font-size: large;">Emigrei para os Estados Unidos em 1984 e, um pouco antes da partida, sentei-me com ele na amurada da pequena varanda.</span></p><p><span style="font-size: large;">Disse-lhe que aquele pedaço de papel me incomodava, por se tratar de uma nódoa na história do Brasil. </span></p><p><span style="font-size: large;">Ele perguntou o porquê e lhe expliquei que a tal revolução, na verdade, não passara de um abominável golpe militar.</span></p><p><span style="font-size: large;">Papai não disse uma única palavra. </span></p><p><span style="font-size: large;">O país vivia uma transição, e os ares da Nova República já se faziam sentir. Saí para comprar cigarros e, quando voltei, o diploma já não estava mais lá.</span></p><p><span style="font-size: large;">Dirigi-me a ele, que respondeu, serenamente:</span></p><p><span style="font-size: large;">- Eu tinha uma mentira pendurada na parede, meu filho. Deixa estar...</span></p><p><span style="font-size: large;">Nunca mais tocamos no assunto, como se o episódio fosse um daqueles segredos de família guardados no fundo de um baú.</span></p><div><br /></div>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-9091475469584709512021-02-04T11:56:00.016-05:002021-04-04T21:37:16.719-04:00Dueto<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj3xMk7IMQUJ_hjF-W4MntSHcKC4qlP40-vH5jVFI71QHV5Zov1pmLqS9n78lCWXc0q4r33YsfG40m9Co-HSreN4q94J0AzNezJiab2La3A-7mZ-1uVRaWH0haQsP4KrG1S76kwODasv0aM/s2048/GIRA.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1536" data-original-width="2048" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj3xMk7IMQUJ_hjF-W4MntSHcKC4qlP40-vH5jVFI71QHV5Zov1pmLqS9n78lCWXc0q4r33YsfG40m9Co-HSreN4q94J0AzNezJiab2La3A-7mZ-1uVRaWH0haQsP4KrG1S76kwODasv0aM/w400-h300/GIRA.jpg" width="400" /></a></div><br /><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;"><br /></span><p></p><p><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Ricas, lá em São Raimundo, eram as famílias que tinham geladeira, televisão e radiola (ou vitrola). Quem possuía um automóvel era considerado milionário. </span></p><p><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Os poucos mais afortunados ostentavam dentro de suas casas, além de liquidificadores e chuveiros elétricos Lorenzetti, os possantes três em um.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">E o que era o três em um?<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Tratava-se de uma maravilha híbrida da tecnologia, que poderia funcionar como rádio, toca-discos ou toca-fitas (cassete).<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Dia desses me atrapalhei todo tentando explicar para a minha filha Clarice o que era um toca-fitas.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Nas manhãs de sábado, dia do faxinão, era comum as donas dessas casas ligarem o som no volume mais alto, perfumando o ar com os sucessos de Roberto Carlos, Jerry Adriani e Ronnie Von.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">As ruas tinham nomes de pedras preciosas que jamais brilharam, empoeiradas por falta de calçamento. <br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Na Topázio, onde cresci, eu não me recordo de um único vizinho que tivesse carro até a metade dos anos 1970.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Na Esmeralda havia alguns abastados, como o seu Edson Souto, sócio de um curtume, e que possuía uma caminhonete C-10. <br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Na Granada, o pai de Cléber e Róbson Carequinha ostentava uma Brasília amarela. E o dono da mercearia da avenida Esmeralda tinha um Corcel II meio baleado.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Em 1976, papai comprou-nos um Volkswagen do ano 1966. Foi uma grande festa. <br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Nós, que já tínhamos uma geladeira - que dava choque quando abríamos a porta - e uma tv que chuviscava e tinha uma daquelas telas de plástico em degradê, entramos para o seleto clube dos milionários são-raimundenses.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">O fusca marcou o apogeu de uma era de grande prosperidade para a família. Eu e meu irmão passamos a calçar ki-chutes, ganhei uma calça UsTop e tive a promessa de uma monareta no Natal, o que - infelizmente - não se materializou. <br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Seu Antônio juntava o salário de soldado da polícia militar ao dinheiro das vendas de roupas, que minha mãe comprava na rua 25 de março, em São Paulo, e ele vendia para as moças trabalhadoras na zona boêmia de Governador Valadares.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">"Ninguém é melhor de paga do que as putas. Poucos são tão honestos quanto elas", filosofava, sob os olhares desconfiados de minha mãe, receosa de alguma permuta entre mascate e clientela.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Não chegamos a ter o tão cobiçado três em um do início da crônica, mas uma vitrola da marca Sonata - com direito a zumbido de caixa de marimbondo quando o disco rodava - daria um colorido muito especial aos nossos dias.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Logo de manhã, papai tomava banho e ligava a vitrola para se barbear. </span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Ligava no limite, o que não era grande coisa, mas dava para se ouvir no portão.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Cascatinha e Inhana, Jararaca e Ratinho e Tonico e Tinoco só não eram maiores do que Agnaldo Timóteo, com quem meu velho formava uma dupla fazendo segunda voz. Ficava melhor do que Zezé de Camargo e Luciano. <br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Seu Antônio morreria em janeiro de 2017, vítima de uma fibrose pulmonar. Apesar de ter nascido em Mutum, pediu para ser enterrado no cemitério Bosque da Esperança, que fica entre o aeroporto de Confins e a capital mineira.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Todas as vezes que vou a Belo Horizonte visito o túmulo de meu pai, o que acontece três, quatro vezes por ano. Chego, faço uma prece e vou embora. <br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Na última visita, no entanto, algo curioso, quase sobrenatural, aconteceu.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">Eu tenho o costume de ir de carro até o setor das Oliveiras, lugar que ele escolheu para descansar. A fileira de jazigos coincide com a presença de um frondoso pé de sibipiruna, o que facilita a localização.<br /></span><span style="background-color: white; color: #500050; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;">O local fica no alto de um morro, um pouco depois do setor dos flamboyants e é possível avistá-lo logo no começo da subida. O rádio do carro estava sintonizado na Rádio Inconfidência e, tão logo curvei para acessar aquele quadrado habitado pela saudade, uma voz muito conhecida começou a entrar por meus ouvidos.</span></p><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 11pt;"><span style="line-height: normal;"><span face="Calibri, sans-serif"><i><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">"Se algum dia</span></span></i></span></span></span><br style="background-color: white; color: #500050; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 11pt;"><span style="line-height: normal;"><span face="Calibri, sans-serif"><i><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;"> À minha terra eu voltar</span></span></i></span></span></span><br style="background-color: white; color: #500050; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 11pt;"><span style="line-height: normal;"><span face="Calibri, sans-serif"><i><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">Quero encontrar</span></span></i></span></span></span><br style="background-color: white; color: #500050; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 11pt;"><span style="line-height: normal;"><span face="Calibri, sans-serif"><i><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">As mesmas coisas que deixei</span></span></i></span></span></span><br style="background-color: white; color: #500050; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 11pt;"><span style="line-height: normal;"><span face="Calibri, sans-serif"><i><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">Quando o trem parar na estação</span></span></i></span></span></span><br style="background-color: white; color: #500050; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 11pt;"><span style="line-height: normal;"><span face="Calibri, sans-serif"><i><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">Eu sentirei no coração</span></span></i></span></span></span><br style="background-color: white; color: #500050; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 11pt;"><span style="line-height: normal;"><span face="Calibri, sans-serif"><i><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">A alegria de chegar"</span></span></i></span></span></span><br style="background-color: white; color: #500050; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><br style="background-color: white; color: #500050; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 11pt;"><span style="line-height: normal;"><span face="Calibri, sans-serif"><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">Foi muito para o meu coração. </span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #500050; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 11pt;"><span style="line-height: normal;"><span face="Calibri, sans-serif"><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">Não creio que Agnaldo Timóteo ainda toque no rádio, no meio das tardes de um novo milênio. Algo diferente conspirava ali.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #500050; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 11pt;"><span style="line-height: normal;"><span face="Calibri, sans-serif"><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">Parei em frente ao pé de sibipiruna, que floria. </span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #500050; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 11pt;"><span style="line-height: normal;"><span face="Calibri, sans-serif"><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">Abri a porta do carro e aumentei o volume no máximo.</span></span></span></span></span><div><span style="font-family: Times New Roman, serif;"><span style="font-size: 18.6667px;">A música preencheu o ar.</span></span></div><div><span style="font-family: Times New Roman, serif;"><span style="font-size: 18.6667px;">Desabei.<br style="background-color: white;" /></span></span><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 11pt;"><span style="line-height: normal;"><span face="Calibri, sans-serif"><span style="font-size: 14pt;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">E chorei feito o menino que um dia eu fui, enquanto Agnaldo Timóteo cantava para o meu pai se barbear e cantar junto.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #500050; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span face="Arial, Helvetica, sans-serif" style="background-color: white; color: #500050; font-size: 14pt;"><span style="line-height: 19.9733px;"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">Bem perto dali - eu sei -, sentado numa nuvem, o meu velho sorria e fazia a segunda voz.</span></span></span></div>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-24530850600650047852020-12-28T15:48:00.018-05:002020-12-28T19:19:29.337-05:00Flor de pedra<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgcXexrhM8CEll1ybCLSzx_J9hIWZtybKmyAw9bhWcECXK05CKyBGhr0IXao7l4wnT1ShjSEGpK9cVQOnn5ZdG7KgiZ7XkGmwfpiyU8kyCySlJgWDCo4b8_MjU1oqsVgB_Q4CrXLvMAXcOz/s1082/pedraflor.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1082" data-original-width="1079" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgcXexrhM8CEll1ybCLSzx_J9hIWZtybKmyAw9bhWcECXK05CKyBGhr0IXao7l4wnT1ShjSEGpK9cVQOnn5ZdG7KgiZ7XkGmwfpiyU8kyCySlJgWDCo4b8_MjU1oqsVgB_Q4CrXLvMAXcOz/w399-h400/pedraflor.jpg" width="399" /></a></div><span style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 14pt;"><br />A
pandemia me tirou pessoas e coisas.</span><p></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Perdi
o convívio de gente que amo, cancelei uma viagem de duas semanas à Toscana e
não trabalhei mais.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Fui
morar debaixo da cama, fazendo companhia aos empoeirados sapatos, que chegaram
a pensar que eu morri por nunca mais termos saído de casa.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Eles
têm medo de desaprender a caminhar. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Dançar,
nunca souberam. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Voar
não se atreveriam. Meus pés têm medo de altura.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">A
lista de perdas é grande, contabilizei. Algumas são irreparáveis. </span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Mas
trago também notícias amenas e salutares, sacramentando a repetição da parábola
do limão que a vida dá.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">É
azeda e doce a limonada do viver.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Às
vezes consigo dormir, mistério que jamais havia decifrado. </span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Parei
de fumar um dia antes de anunciarem as medidas de prevenção ao coronavírus aqui
nos EUA. </span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Esqueci
os cigarros na casa de minha mãe em Betim, aonde eu havia chegado um dia antes.
Seguíamos para São João del Rei e não fumei mais, desde então. </span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Parei
parando, sem alardear nem fazer promessas a São Judas Tadeu, a quem sempre
recorro nas causas impossíveis.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Sinto
muita falta do tabaco, confesso. </span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Às
vezes sonho que estou fumando, suado e nu ao lado de Rachel Welsh - também nua
-, deitado numa cama de hotel, fazendo círculos de fumaça que nunca chegam ao
teto.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">O
cigarro era um amigo de todas as horas.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Ele
foi fiel e nocivo companheiro, sempre que algum pensamento de aflição me
acometia.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Nos
momentos de prazer também esteve presente, principalmente após um café ou uma
Stella Artois.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Falando
em Stella, outra notícia urge.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Entrei
na pandemia bebendo muito.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">O
que é muito?</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Duas
garrafas de cabernet sauvignon, todos os dias, para aliviar a dor da incerteza.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Ou
a certeza da dor. </span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Para
'variar', uma vez por semana bebia o inocente isotônico de cevada.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Há
cerca de três semanas, porém, o fígado mandou um recado inequívoco e eu o
escutei, desconfiado.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Parei
geral.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Ao
contrário do cigarro, não sinto a menor falta da bebida.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Aconteceu.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">De
vez em quando bebo uma taça de vinho ou uma long neck. Eu não sinto mais aquela urgência. </span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">É
como se o interruptor tivesse saído do On e entrado em Off.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Outra
mudança positiva foi o retorno de uma velha parceira.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Recomecei
a escutar música o tempo inteiro, como sempre fiz, mas não andava fazendo.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Descobri
canções incríveis e voltou aquele arrepio na nuca e braço, uma indizível sensação.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Comprei
um violão pela internet e estou aprendendo a tocar umas coisinhas com a ajuda
do Youtube.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Li
menos livros do que deveria até aqui, é verdade, mas estou devorando "Essa
Gente", o mais recente de Chico Buarque. E não vou parar por aqui, posso
garantir. </span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Vi
mais filmes durante os últimos quarenta dias do que nos últimos quarenta anos.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Investi
boa parte do tempo que abunda numa horta com cenouras de quatro cores, quinze
pés de jiló, tomates de nove tipos diferentes, pimentões, sálvia, salsinha,
cebolinha, tomilho, manjericão, alecrim, physalis, morangos, framboesas e
mirtilos.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Fui
a um bosque perto de casa e recolhi dezenas de pedras. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Eu,
que tinha interrompido a mania de recolher pedrinhas de lugares que visitava
pelo mundo para presentear quem amo, fiz um canteiro de seixos dedicados a
ninguém. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Não
tenho pendor artístico, mas as pintei, pétala por pétala, num exercício
que antes pensaria ser desnecessário e fútil.</span><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 12pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">A
pandemia, que me tirou tantas coisas, barganhou, dando-me agora essa estranha
mania de transformar futilidade em necessidade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">E
pedra em flor.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">‘Ruim
de cama’, desde menino, há noites em que consigo dormir.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Quando
isto acontece, sonho com um planeta em que as pessoas transitam pelas ruas sem usar
máscaras. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="color: #1c1e21; font-family: "Times New Roman",serif; font-size: 14pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-fareast-font-family: "Times New Roman";">Um
lugar imperfeito em que abraços são permitidos e os beijos não representam uma sentença
de morte.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0in; mso-margin-top-alt: auto;"><span lang="PT-BR" style="mso-ansi-language: PT-BR;"><o:p> </o:p></span></p>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-55644798743482717022020-12-21T11:01:00.003-05:002020-12-21T11:01:54.521-05:00 O tio Sukita<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjSMZdwnteYDpl67bR6XHa7O-VtEaFXUMfEY2XlBEIETVh0UrPTjjaY-TQgM-Rmi5TO0Uz2fc9Mjp_frpdanD81N2yODug87js_Q9DQf7Ebu6KNLNoSFbh4N0qY813kYIf6pj6B2YX7ZfRP/s733/sukita.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="433" data-original-width="733" height="236" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjSMZdwnteYDpl67bR6XHa7O-VtEaFXUMfEY2XlBEIETVh0UrPTjjaY-TQgM-Rmi5TO0Uz2fc9Mjp_frpdanD81N2yODug87js_Q9DQf7Ebu6KNLNoSFbh4N0qY813kYIf6pj6B2YX7ZfRP/w400-h236/sukita.jpg" width="400" /></a></div><br /><p><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 16pt;">(Ao Carlos Borges)</span></p><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">O tempo passa, e a gente, às vezes, não se dá conta. Não é o meu caso, quero crer.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Os ossos não mentem.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">A agilidade sumiu.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">A flexibilidade do corpo, também. Há cerca de dois meses empenei o ciático tentando amarrar os sapatos, e mesmo os cadarços pareciam itens de museu.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Passei duas semanas na fisioterapia. Mal dormia. Mas já estou quase bom.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">A rotina muda com o passar dos anos sem que a gente perceba. É como se a pessoa fosse anoitecendo por dentro e tudo o que era claro e diurno ganhasse tons de penumbra até o entrevamento absoluto.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Breu.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">E o espelho é cruel.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">A barriga se expande para quase todos, principalmente os sedentários, como eu.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Mas a flacidez não é facultativa. Ela é institucional, e não há botox milagroso que resolva.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Ao redor dos olhos rascunha-se uma espécie de mapa rodoviário do estado onde a pessoa nasceu. Para o meu desgosto, Minas Gerais é rabiscado de estradas, algumas em péssimo estado de conservação.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">E o despertar para o definhamento é rude, já que o tempo não leva prisioneiros.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Há coisa de dois anos, em Nova York, dentro de um desses modernos elevadores, todo metálico e com espelho no teto, fiz uma triste descoberta.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Apertei o número do andar desejado e, sabe lá Deus o porquê, caí no desatino de olhar para cima.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Foi grande o susto.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Ela estava lá, olhando para mim.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Ela!</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Aquela coroa sem rei.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Bem no cocuruto, o quipá de não judeu.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">A coroinha do frade, uma auréola sem anjo.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Aquele latifúndio amazônico devastado de mim.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Eu não me dera conta do avançado ‘desmatamento’, sem quem nenhuma ONG internacional intercedesse e interpelasse Jair Bolsonaro, senhor de todos os desmatamentos e queimadas deste mundo.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Encarequei carecando, sem a permissão do Houaiss.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">A partir daí passei a prestar mais atenção nas pessoas me chamando de senhor. Constatei que não vem de agora a nova regra.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Daqui a não muito tempo terei prioridade para entrar no avião. Vivesse no Brasil, teria passagem gratuita nos ônibus coletivos.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">No entanto, tenho alguns amigos que se recusam a aceitar que o tempo passou, e eles já não são os garanhões dos anos 1970.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Vestem-se como rapazolas do novo milênio, andam de óculos escuros da Oakley, fazem tatuagens, frequentam academias de ginástica para impressionar as moças e ganhar músculos.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">É preciso ser muito forte para deter o giro do velho ponteiro do relógio. E eles pensam que são.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Tenho um amigo que foi muito boa-pinta na juventude. E não há nada mais antigo do que a expressão ‘boa-pinta’.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Ele era daqueles moços bem-apessoados, outro termo que fui buscar no meu velho baú de ‘velheiras’.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">No tempo da Aqua Velva e das calças bocas de sino, Valdir fazia muito sucesso com os seus cabelos longos e a coleção de LPs do Black Sabbath.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Moço da alta classe média valadarense, ele desfilava pela cidade com o seu Passat cor de vinho, pneus tala larga e rodas de magnésio. Aquele carro era uma espécie de motel ambulante e ele se vangloriava disto.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">“Eu tenho um ímã de mulheres”, gabava-se.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Três casamentos depois, esse Tio Sukita (da propaganda de um antigo refrigerante) continua na ativa, com sua metralhadora de galanteios defasados, muitos deles se encaixando na categoria assédio sexual, e dignos de interpelações severas aos olhos da lei.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Mas, se o Valdir é agressivo, as ‘gatinhas’ de agora não deixam barato. Como se mostrariam um pouco antes da pandemia, num bar da Savassi, em BH.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Refestelados na inocência da tarde, oito pré-anciões bebiam cerveja esmiuçando o tempo em que eram a última novidade de Deus.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Foi quando um grupo de quatro moças muito bonitas passou por nós em direção ao banheiro do bar.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Valdir viajou no tempo, remoçou, ‘garanhou-se’ e disparou uma deselegante cantada.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">As moças pararam, não riram do parnasianismo do galanteio e uma delas voltou até nós.</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Dedo em riste, meio-sorriso de Lolita de Nabokov (a outra metade era de Margareth Thatcher), ela foi direto ao Valdir:</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;"> - Meu senhor, quem gosta de pau velho é orquídea. Se enxergue!</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">Valdir fingiu que não era com ele, chamou o garçom e tentou consertar:</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 11pt;"><span style="line-height: 15.6933px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><span style="font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;">A rodada é por minha conta!</span></span></span></span></span><br style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: small;" /><span style="background-color: white; color: #222222; font-family: Arial, Helvetica, sans-serif; font-size: 16pt;"><span style="line-height: 22.8267px;"><span style="font-family: Calibri, sans-serif;">Todos dissemos amém.</span></span></span>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-13539142384661201532020-08-25T20:32:00.007-04:002020-09-14T17:28:48.483-04:00 O ardina<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgyy9QtPIDn6_-krdIJQBc8jH-nv_iOXyXtm3v1O0ou7z8OHcsIjWJ9ggHCI48olYwYeh8-xFaaWlKkusI6qSJ4Cq3FrMN7IsuULt3cMxn15pi2r1F-TqMe7dCSgqZmDRiJcpvSqA66XE9j/s374/houston.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="345" data-original-width="374" height="431" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgyy9QtPIDn6_-krdIJQBc8jH-nv_iOXyXtm3v1O0ou7z8OHcsIjWJ9ggHCI48olYwYeh8-xFaaWlKkusI6qSJ4Cq3FrMN7IsuULt3cMxn15pi2r1F-TqMe7dCSgqZmDRiJcpvSqA66XE9j/w468-h431/houston.jpg" width="468" /></a></div><span style="color: #222222; font-size: x-large;"><br /></span><p></p><p><span style="color: #222222; font-size: large;">Quando cheguei a Newark, em 1984, meu primeiro emprego foi em uma padaria da Ferry Street. </span></p><div><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">O salário era de 140 dólares semanais para fazer pastéis de nata, aquela maravilha lusitana que no Brasil é chamada de pastéis de Belém.</span><br /><span style="color: #222222;">Aprendi rapidinho, graças à boa vontade de um senhor madeirense, que escreveu em um pedaço de papel de pão </span><span style="color: #222222;">as medidas exatas de açúcar, leite e gema de ovos</span><span style="color: #222222;">.</span></span></div><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">Como eu não tinha lugar para morar, dormi algumas noites em cima dos sacos de trigo, escondido no porão do estabelecimento. </span><br /><span style="color: #222222;">Quando fui descoberto, recebi um ultimato do proprietário, que me deu três dias para arrumar um pouso ou perderia o emprego.</span><br /><span style="color: #222222;">Nos horários de almoço, eu costumava buscar abrigo em uma livraria das Cinco Esquinas.</span></span></div><div><span style="color: #222222; font-size: large;">Lá eu passava os momentos de folga folheando Fernando Pessoa e Florbela Espanca sem comprar absolutamente nada. </span><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">Foi lá que conheci Sebastião Bento, dono de uma rádio que funcionava por cabo telefônico - tente explicar isto a um adolescente de hoje - diretamente de Portugal. Ele era o rei do futebol por aqui.</span><br /><span style="color: #222222;">Em dias de jogos do campeonato lusitano, uma pequena multidão de patrícios se acotovelava em vários pontos da Ferry Street, escutando sair dos alto-falantes instalados nas marquises aquilo que chamavam de "relato da bola". </span><br /><span style="color: #222222;">A boa e velha transmissão radiofônica de uma partida de futebol ganhava para mim uma nova conotação.</span><br /><span style="color: #222222;">Sebastião Bento se apiedou da minha história - contada pela dona da livraria - e me levou ao Campino's, um restaurante de comida ibérica na Jabez Street. Eles estavam precisando de um lava-pratos.</span><br /><span style="color: #222222;">Não consegui um quarto para dormir, mas arranjei outro emprego. </span></span></div><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">Lá eu ganharia 220 dólares semanais, trabalharia uma média de 13 horas por dia, folgaria às quintas-feiras e</span><span style="color: #222222;"> comeria de graça.</span></span></div><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">Já no primeiro dia fiz amizade com Franklin Ferreira, um aveirense que vivera por 17 anos no Brasil e tinha até carteirinha de sócio da Portuguesa de Desportos.</span><br /><span style="color: #222222;">Franklyn me tomou pelo braço após o horário de movimento e levou a uma senhora que alugava quartos na Wilson Avenue.</span><br /><span style="color: #222222;">Por 17 dólares semanais eu havia, finalmente, achado um lugar para descansar os ossos e me lavar. </span></span></div><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">Visivelmente 'prescrito', fazia uma semana que aquele aprendiz de lava-prato não tomava um banho.</span><br /><span style="color: #222222;">O Campino's tinha um salão de festas com capacidade para 600 pessoas e teria, já na minha "estreia", um jantar-show com Roberto Leal, cantor transmontano que vivia em São Paulo e ganhava fortunas se apresentando nas comunidades lusas espalhadas pelo mundo.</span><br /><span style="color: #222222;">Nunca vi tanta louça na vida, mas o esforço foi amenizado pelo som abafado que vinha do salão. </span></span></div><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">A voz do cantor que eu tanto detestava quando o ouvia nas rádios - ou via nos programas do Silvio Santos - me arrepiara por inteiro.</span><br /><span style="color: #222222;">Com saudade de casa, derramei lágrimas legítimas, principalmente durante a introdução de "Bate o Pé", um de seus maiores sucessos. </span></span></div><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">Admirador de Chico Buarque e Tom Jobim, confesso que os traí.</span><br /><span style="color: #222222;"><br />Nunca vou me esquecer da generosidade do Franklin, nem dos enormes desafios que tive que superar pela promessa de um green card. </span><br /><span style="color: #222222;">Foram quatro anos de muita entrega e preconceito, tendo que ouvir todos os dias que o brasileiro é preguiçoso e que eu era uma (rara!) exceção. </span><span style="color: #222222;">Tive que trabalhar dobrado para não perder a deferência.</span></span></div><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">Um dos episódios que mais deixaram marcas aconteceu no dia - bem no início - em que contei que escrevia crônicas para um jornal de minha cidade. Um dos cozinheiros sorriu maliciosamente e disse:</span><br /><span style="color: #222222;">- Então, no Brasil, tu eras um ardina, não?</span><br /><span style="color: #222222;">Baixei a cabeça sem conhecer o significado da palavra inédita, uma das tantas que no Brasil falamos de outra maneira.</span><br /><span style="color: #222222;">Todos riram e começaram a me chamar de ardina, a partir de então. O nome Roberto, com que fui registrado e batizado por meus pais, havia sido substituído sem o meu consentimento por uma palavra desconhecida, utilizada de forma maldosa para me diminuir.</span><br /><span style="color: #222222;">Naquela época não havia internet e, consequentemente, o Google com sua abundância de dicionários. Tive que esperar até o dia da folga para desfazer o mistério.</span><br /><span style="color: #222222;">Na livraria eu descobri que ardina é aquele que, no Brasil, chamamos de jornaleiro. </span></span></div><div><span style="color: #222222; font-size: large;">E uma tristeza enorme tomou conta de mim. </span></div><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">Quando apetecem, as pessoas conseguem ser cruéis com seus semelhantes. Humilham por puro prazer. </span><br /><span style="color: #222222;">Em 1988 eu fundaria o Brazilian Voice, o primeiro jornal brasileiro de New Jersey.</span><br /><span style="color: #222222;">Em um primeiro momento, eu escrevia todas as matérias, ajudava na montagem e ralava na venda de espaços publicitários. </span><span style="color: #222222;">Após o jornal ser impresso, saía numa van distribuindo o periódico pelas comunidades de quatro estados da Costa Leste. </span></span></div><div><span style="color: #222222; font-size: large;">Livre da prisão da cozinha, eu era, finalmente, um jornalista.</span></div><div><span style="color: #222222; font-size: large;">E jornaleiro! </span></div><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">Só que, agora, a pecha me enchia de orgulho.</span><br /><span style="color: #222222;">O veículo se firmaria, ganhando importância para os brasileiros e respeito dos próprios portugueses. </span></span></div><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">Fazendo um rápido balanço mais de três décadas depois, tenho a absoluta certeza de que minha história de imigrante teve um final feliz.</span><br /><span style="color: #222222;">De vez em quando, esbarro pelas ruas com ex-colegas dos tempos de cozinha. </span></span></div><div><span style="font-size: large;"><span style="color: #222222;">Alguns já se aposentaram e outros continuam trabalhando em restaurantes, um dos ofícios mais duros que existem. </span><br /><span style="color: #222222;">Agora me chamam pelo nome, devidamente acrescido do sobrenome. </span><br /><span style="color: #222222;">Mas já não </span><span style="color: #222222;">faz a menor diferença.</span></span></div></div></div>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-61416936202975297692020-08-09T09:31:00.005-04:002020-12-29T13:59:39.768-05:00 Layla, a gorda<p></p><div class="separator" style="clear: both;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2aQL3dTwvRIHL6xVqU3Loqjo9kiRLqmSv_Bvdmz1wU95FjCUne_M5436rSHXkn9BFgwDct4gJqpOYZOJ6oXfc2VbtFx6UOQp-_NZC9CLN8fisGxZPa1Im3-dBLmCPgslHT1Bi7_E5uzvf/s1599/gorda.jpg" style="display: block; padding: 1em 0px;"><img border="0" data-original-height="1599" data-original-width="899" height="640" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2aQL3dTwvRIHL6xVqU3Loqjo9kiRLqmSv_Bvdmz1wU95FjCUne_M5436rSHXkn9BFgwDct4gJqpOYZOJ6oXfc2VbtFx6UOQp-_NZC9CLN8fisGxZPa1Im3-dBLmCPgslHT1Bi7_E5uzvf/w360-h640/gorda.jpg" width="360" /></a></div><p></p><p><span style="font-size: x-large;">Totó, Til e Rex eram </span><span style="font-size: x-large;">nomes populares de cachorro naquele início da década de 1970.</span></p>
<div>
<div><span style="font-size: x-large;">Toda criança merece ter um bichinho de estimação para chamar de seu. Mas cresci sem ter tido um, o que não deixou traumas ou mágoa. Papai não gostava, talvez por ter outras quatro bocas para alimentar.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Cresci, mudei, casei, levei o coador e tive três filhas, trafegando quase sempre na contramão do meu velho.</span></div>
<div>
<div><span style="font-size: x-large;">Nesta humilde residência em um país distante do Brasil já habitaram - ou habitam - cães, coelhos, peixes, calopsitas, uma iguana e até um papagaio australiano que tem parte com satanás.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Cacatua, essa ave neozelandesa de plumagem branca e topete do Supla, destruiu metade da minha biblioteca, devorou portais, escrivaninhas e uma mesa de centro com a competência de um exército de cupins.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Cansado de suas estripolias, convoquei uma reunião familiar emergencial e anunciei:</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;"> - Ou ele ou eu.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Clarice, a caçula - na altura com oito anos -, tomou a palavra e decidiu por todos:</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;"> - Pai, telefona pelo menos uma vez por mês para ver se estamos precisando de alguma coisa.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Cacatua ficou na casa, claro.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">E eu também. </span><span style="font-size: xx-large;">Só que, agora, desmoralizado e reduzido a uma incômoda desimportância.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Felizmente tive o consolo e solidariedade de uma adorável criatura.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Layla foi a terceira das três sharpeis que aportaram por aqui.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Veio depois de Jade e Nina. </span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Ao contrário de suas predecessoras, nunca nos deu trabalho.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Morávamos em Kearny quando Jade se livrou da coleira e atropelou um Ford Taurus a 45 milhas por hora. </span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">A lataria ficou bastante amassada e tive que pagar o funileiro. </span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Fora o susto.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">E a danada da Nina fugia semana sim semana não, movimentando os vizinhos em solidária missão de busca e captura.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Quando Layla chegou por aqui em 2013, aos três meses de idade, trouxe na bagagem uma indescritível alegria.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Gorducha, felpuda, fofa, parecia um daqueles bichos de pelúcia que moravam no quarto das meninas. </span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Cheia de vida, o rabo sempre abanando de canina felicidade, era perfeita.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Escrevi inúmeros textos com ela encostada aos meus pés. </span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Vimos muitos filmes juntos, quando todos na casa dormiam. </span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Assistimos calados à derrocada do meu Cruzeiro em sua queda para a Série B do campeonato brasileiro.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">De vez em quando saíamos para passear, ela me arrastando pelas ruas do bairro, dando uma força ao lento companheiro.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Há cerca de três meses começou a perder peso. Logo ela, a quem chamávamos carinhosamente de 'gorda'. </span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Levamos ao veterinário, mas os remédios não surtiram efeito.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Mudamos de profissional e, mesmo com exames de raio x, nada de anormal foi constatado.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Feliz, brincalhona, solidária, mantinha o comportamento de sempre, apesar de estar cada vez mais magra.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">A solucão foi encaminhá-la a uma renomada veterinária de Nova York, uma das grandes especialistas da raça sharpei no país.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Somente na terceira visita e novos exames, foi detectado o pior: o câncer já havia se alastrado por várias partes do corpo. Tinha pouquíssmo tempo de vida.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Ficamos arrasados.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Nas últimas semanas comecei a cozinhar para ela, que já não tinha mais apetite. E a alimentava como um pai que alimenta um filho doente. Tentei espichar ao máximo o nosso tempo juntos. </span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Nos fins de tarde, um de nós a colocava no assento do carona do carro e saíamos para dar uma volta. </span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Ela sempre adorou a sensação do vento balançando as pelancas da bochecha e a papada, fazendo um barulhinho bom.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Ontem ela amanheceu com imensa dificuldade de respirar. Sofria tanto.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Mordia o ar, como se quisesse mastigá-lo, fazendo o som de um fole furado, naquilo que tentava dele se alimentar.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Andava de um lado para o outro com aquele 'gato' ronronando dentro do peito, o olhar pedindo socorro, mas o rabo abanando, como que se desculpando por estar assim.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">A agonia extenuante não nos deu outra alternativa a não ser ligar para uma veterinária especializada em eutanásia animal a domicílio.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">O relógio apontava 22 horas quando escutei o carro estacionando na frente da casa.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Ajoelhei-me no chão da sala, abracei-a e beijei-a com o rosto molhado de tanto chorar.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Agradeci muito. Agradeci demais.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Ato contínuo, subi as escadas, deitei-me na cama, coloquei os fones de ouvido no último volume e fiquei escutando Egberto Gismonti cantar o Hino do Carmo.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Meu coração parecia querer explodir de tanta dor.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Ela sairia da casa dentro de uma sacola de plástico transparente alguns minutos depois.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Mas eu não escutei.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;">Nem vi.</span></div><div><span style="font-size: x-large;"><br /></span></div><div><span style="font-size: x-large;"><br /></span></div><div><span style="font-size: x-large;">* Foto do passeio com Layla na tarde deste fatídico 6 de agosto, algumas horas antes do fim.</span></div>
<div><span style="font-size: x-large;"> </span></div></div></div>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-17333899178746605442020-02-18T15:47:00.001-05:002020-02-18T16:47:10.736-05:00A fundura da queda<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjiETmi_A-ArBZk7TKYbNXkcr0TNJrr71Q1O6sXa3azZoQ-54ajMDkya07jyHRvc3HEWxmUew0bT9xXWKXRdMZ2fn3VBLU7oMq0WHefYjBvgxhvTmFg99PZ6W_Kfsqlu4-T9e9_OVIVuOag/s1600/fria.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="971" data-original-width="777" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjiETmi_A-ArBZk7TKYbNXkcr0TNJrr71Q1O6sXa3azZoQ-54ajMDkya07jyHRvc3HEWxmUew0bT9xXWKXRdMZ2fn3VBLU7oMq0WHefYjBvgxhvTmFg99PZ6W_Kfsqlu4-T9e9_OVIVuOag/s400/fria.jpg" width="320" /></a></div>
<div dir="ltr" style="line-height: 1.3800000000000001; margin-bottom: 10pt; margin-top: 0pt;">
<span style="color: #333333; font-family: "arial"; font-size: large; white-space: pre-wrap;">
Não tem ninguém em casa.
A família foi passar o carnaval no Brasil e você fica em New Jersey. Fica por compromissos de trabalho, mas fica também por opção. Com um pouquinho de esforço teria ido junto.</span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Fica só nesta casa grande, na companhia de duas cadelas e três passarinhos, que você tem obrigação de alimentar e cuidar todos os dias, apesar de não gostar de animais dentro da residência.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Trocar o frio do inverno americano por uns dias de calor no litoral de Santa Catarina não esteve nas cartas, nos búzios ou na palma de sua mão.
Você ficou de fora. Tudo bem.
Conforme-se.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Você se levanta tarde, depois de ter bebido um Rio Hudson de cerveja na véspera, está meio ressaqueado, o corpo pede um banho quente.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Você fica nu, liga o chuveiro ainda meio dormindo e nada acontece. As baixas temperaturas deste inverno congelaram o encanamento e a água não chega ao segundo andar. Congelou tudo. Nada feito. O jeito é voltar para a cama.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Foi o que fiz.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Mas mesmo a cama quentinha fica um ninho de espinhos após um certo tempo. </span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Apesar do frio e da neve lá fora existe uma vida para viver. </span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">É sábado, eu sei, e hoje não trabalho. </span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Lembro-me de um bacalhau que comprei para estrear o novíssimo forno elétrico. Nem tudo está perdido. </span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Na geladeira ainda tem umas cervejas tchecas, maravilhosas, que sobraram da visita de Fábio Portugal.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Não, nada está perdido.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Conformo-me com a ausência do banho, mesmo sendo uma daquelas pessoas que não se são sem um banho bem demorado pela manhã. </span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Levanto a persiana, bisbilhoto a rua e vejo que volta a nevar forte.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">A neve promove um silêncio ensurdecedor quando cai.
Trata-se de um fenômeno belíssimo em um cartão postal ou numa cena de filme.
Na vida real é gás paralisante. </span></span><br />
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-size: large; white-space: pre-wrap;">Tudo fica em câmera lenta. </span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Ela constrói um momento de rara beleza, é verdade, mas também de aniquilamento e sofrer.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Resolvi cuidar da vida e d</span></span><span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-size: large; white-space: pre-wrap;">esci de cueca - a boa e velha samba canção -, uma camiseta de mangas-compridas com uma estampa de Adoniran Barbosa e uma pantufa, presente de natal de minha filha do meio.</span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Desço ao porão da casa e percebo que Layla, a cachorrinha mais nova, havia transformado o ambiente em banheiro. Fiquei aborrecido, peguei um balde com água, detergente, e joguei por todo o chão. </span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Eu que já havia colocado o bacalhau no forno elétrico, lá em cima, temi que ele queimasse enquanto higienizava o porão. Resolvi interromper a limpeza e ir diminuir a temperatura do forno antes de executar a tarefa.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">No que girei o corpo no sentido da escada, a perna direita foi em direção ao destino num escorregão. O resto do corpo não.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Pensem numa bailarina com as pernas em compasso aberto. </span></span><br />
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Uma bailarina bem acima do peso, que se ressalte.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Sentindo que o joelho iria se partir em dois, arremessei o corpo - reflexo de enferrujado goleiro de futebol de salão - e encontrei uma inconveniente pilastra. </span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Bati com o quadril em sua quina pontiaguda e vi estrelas. Constelações. </span></span><br />
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">A boca amargou.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Eu ainda me contorcia de dor, o corpo embebido naquela mistura de detergente, água e urina de animal, quando vi tudo escurecer. </span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">A luz apagara naquele exato momento. </span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Em 31 anos vivendo em Livingston, com exceção à catástrofe do furacão Sandy, a eletricidade jamais falhou na Hazelwood Avenue.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Mas ali ela me abandonara e eu me contorcia de dor, sozinho, em plena nevasca. </span></span><br />
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Pensei em pedir socorro, mas o telefone celular se encontrava do lado de minha cama no segundo andar e eu não tinha como me comunicar.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Fiquei mais de seis horas no escuro, sozinho, acometido por fortes dores, sentindo uma fragilidade que desconhecia até então. </span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Acabei encontrando forças e me arrastei até o quarto, numa maratona que jamais esquecerei.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">A luz voltaria. </span></span><br />
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">A água quente, também.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Tomei um percocet, dois dorflex e me entreguei.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Foi sinistro, admito. Tive medo.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">Aprendi a entender um tanto bom de coisas da nossa condição humana. E a acreditar em milagres.</span></span></div>
<div dir="ltr" style="background-color: white; line-height: 1.2; margin-bottom: 0pt; margin-top: 0pt;">
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre-wrap;"><span style="font-size: large;">O forno em que eu assava o bacalhau era elétrico e estava ligado a 350 graus Fahrenheit, quando a luz apagou.</span></span></div>
<span style="color: #333333; font-family: "arial"; font-size: large; white-space: pre-wrap;">A casa certamente arderia comigo dentro.</span><br />
<div>
<span style="background-color: transparent; color: #333333; font-family: "arial"; font-size: 10pt; font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: 400; text-decoration: none; vertical-align: baseline; white-space: pre;"><br /></span></div>
Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-56138358732088619612019-11-19T14:43:00.003-05:002021-10-01T16:49:11.776-04:00As tigresas de Livingston<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigmP7N6c_C_drJ6xPZwZHHPHzkx_zf3GlQOHKh8LHEsgfUrzg2I1b6fjs1w_INtfKDF4goLiJUGSgJnDa7B3SFJH7vT7qM0iUbEwvI4PLAwxXH6W2uHTaFqW2N8bzSvZZNZ3Xniy76bn0A/s1600/liminhas.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="768" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigmP7N6c_C_drJ6xPZwZHHPHzkx_zf3GlQOHKh8LHEsgfUrzg2I1b6fjs1w_INtfKDF4goLiJUGSgJnDa7B3SFJH7vT7qM0iUbEwvI4PLAwxXH6W2uHTaFqW2N8bzSvZZNZ3Xniy76bn0A/s400/liminhas.jpg" width="320" /></a></div>
<br />
<div>
<br /></div>
<div>
<span style="font-size: large;">Lá em São Raimundo, onde vivi a mais feliz das infâncias, futebol era coisa de menino.</span><br />
<span style="font-size: large;">Menina brincava de casinha, boneca e outras coisas. </span><span style="font-size: large;">A elas não era concedida a alegria de correr atrás de uma bola em um campinho de terra batida e viver a experiência de jogar uma pelada.</span><br />
<span style="font-size: large;">Eu não sabia que havia uma lei federal promulgada em 1941, que proibia as brasileiras de praticar o parnasiano bretão.</span><br />
<span style="font-size: large;">A lei enfatizava que as mulheres estavam proibidas de praticar qualquer esporte 'incompatível' com a natureza feminina. </span><span style="font-size: large;">Machismo e atraso que, felizmente, ficaram para trás.</span><br />
<span style="font-size: large;">Em 1979, a aberração foi banida da legislação e o país pôde dar ao mundo uma atleta genial chamada Marta, aclamada e coroada como a rainha dos gramados, a versão feminina de Pelé.</span><br />
<span style="font-size: large;">O resto é história.</span><br />
<span style="font-size: large;">Quando cheguei aos Estados Unidos, em 1984, estranhei que o "soccer" era mais popular entre as mulheres.</span><br />
<span style="font-size: large;">Achava esquisito ver na televisão aquelas moças correndo atrás de uma bola. Com o passar do tempo, passei a assisti-las e admirá-las. Michelle Akers, Mia Hamm, Abby Wambach, Carli Lloyd, Alex Morgan e tantas outras me fizeram virar fã.</span><br />
<span style="font-size: large;">Minha filha Isabella nasceria em 2001 e Clarice em 2003. Ambas jogariam bola.</span><br />
<span style="font-size: large;">Livingston, a cidade que escolhemos para elas crescerem, possui um dos melhores sistemas de ensino público de New Jersey e participa das competições estaduais em todas as modalidades.</span><br />
<span style="font-size: large;">São conhecidas como as Tigresas, numa liga que tem também as Gatas, as Leoas, as Panteras e outras felinas.</span><br />
<span style="font-size: large;">Tudo é extremente organizado, dos uniformes de grife aos gramados bem cuidados, com a participação de árbitros remunerados pela liga.</span><br />
<span style="font-size: large;">Durante vários anos, os meus domingos eram feitos de levá-las para disputar jogos em toda a região. Eu adorava. </span><br />
<span style="font-size: large;">Acordávamos por volta das seis da manhã, elas se vestiam, tomavam café e iam dormindo dentro do carro até o local da partida.</span><br />
<span style="font-size: large;">Com a proximidade do inverno, era um sacrifício tentar driblar o frio, tantas vezes abaixo de zero. Mas valia a pena.</span><br />
<span style="font-size: large;">De início, tímido, acabei me tornando uma espécie de "cheerleader" das "tigresas", o que muito as envergonhava, admito sem me constranger.</span><br />
<span style="font-size: large;">Em uma partida disputada em Montclair, por exemplo, fui expulso por cobrar do árbitro - visivelmente ressaqueado naquela manhã de domingo, ele! -, proteção para as meninas de Livingston.</span><br />
<span style="font-size: large;">Elas estavam levando botinadas de adversárias muito maiores e ele parecia ter engolido o apito.</span><br />
<span style="font-size: large;">Outros pais aderiram. </span></div><div><span style="font-size: large;">Ele quase apanhou. </span></div><div><span style="font-size: large;">A partida foi interrompida sob ameaça de presença da polícia.</span><br />
<span style="font-size: large;">No dia seguinte eu receberia um email oficial da liga, informando que estava "suspenso" por duas rodadas e ainda levei uma bronca antológica das meninas. Fiquei muito envergonhado.</span><br />
<span style="font-size: large;">Levar Bebel e Cissa aos jogos de futebol foi um grande (e indizível) prazer. </span><span style="font-size: large;">Mas elas agora cresceram e estão prestes a alçar voo em direção ao futuro, no processo de escolha da cidade e universidade onde irão viver e estudar, já a partir do ano que vem.</span><br />
<span style="font-size: large;">É assim que descubro que já não vivo a minha vida.</span><br />
<span style="font-size: large;">É como se eu tivesse desistido de mim e passado a caminhar dentro dos sapatos delas.</span><br />
<span style="font-size: large;">Abre-se um novo capítulo, e, daqueles dias felizes, ficaram apenas algumas coisas.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ficaram as lembranças dos domingos espremidos entre abril e novembro.</span><br />
<span style="font-size: large;">Os uniformes alviverdes - em que já não cabem - com o sobrenome que eu lhes dei, às costas.</span><br />
<span style="font-size: large;">Dois pares de chuteiras amarelas e uma surrada bola de futebol, esquecidas no fundo da garagem.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ficou também a implacável certeza de que a vida está passando depressa demais.</span></div>
Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-66141881513245322942019-11-11T18:54:00.000-05:002019-11-13T16:36:57.976-05:00O Passageiro do silêncio<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhNgzU6-pPfX0hRAdkqMQhCXFqY1AcBwZXSTxFx3_b31zi5fa5cDECu8VJlBPFKC3NtqiN4BnCTpYhBKq5ARdTLfrLo_v53Ncvw-JXasjiher1lt3DCkYkBKP3KYC4qM2vwmyRzds6xMHlu/s1600/pontos.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="338" data-original-width="700" height="192" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhNgzU6-pPfX0hRAdkqMQhCXFqY1AcBwZXSTxFx3_b31zi5fa5cDECu8VJlBPFKC3NtqiN4BnCTpYhBKq5ARdTLfrLo_v53Ncvw-JXasjiher1lt3DCkYkBKP3KYC4qM2vwmyRzds6xMHlu/s400/pontos.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<i>(Para José e Ana Camargos, em Havana)</i><br />
<br />
<span style="font-size: large;">Tudo se torna um desassossego. A comida fica ruim, o apetite some. Os ponteiros do relógios viram inimigos. Os dias não têm fim.</span><br />
<span style="font-size: large;">O local de trabalho se transforma num campo de concentração. A casa fica do tamanho do Maracanã. As coisas perdem o sentido. E reina a desordem. </span><br />
<span style="font-size: large;">Não há lugar no mundo para quem se desacerta, para quem se perde no caminho por miudezas vãs.</span><br />
<span style="font-size: large;">A vida lhe ensinará a dura lição do que é a tristeza.</span><br />
<span style="font-size: large;">E apontará o canto sombrio em que você abraçará a solidão.</span><br />
<span style="font-size: large;">Mesmo que esteja rodeado por uma multidão, você se sentirá só. Miseravelmente só.</span><br />
<span style="font-size: large;">O sono evaporará e se mudará para outro código postal. E a cama se tornará imensa e fria, com seus lençóis de arame farpado e travesseiros de espinho.</span><br />
<span style="font-size: large;">Os déjà vus se amontoarão. </span><br />
<span style="font-size: large;">O rosto dela se materializará na fumaça do cigarro ou no fundo de um copo de conhaque. Uma onipresença quase divina.</span><br />
<span style="font-size: large;">Assim como Einstein, que não imaginava uma bomba atômica na outra ponta de sua teoria, Deus - quando inventou o silêncio - também não sabia que o usariam para magoar.</span><br />
<span style="font-size: large;">O silêncio é nuclear.</span><br />
<span style="font-size: large;">E o mundo, 'vasto mundo', vai se comprimindo, as paredes se fechando, tirando-lhe também o ar. Ficará difícil respirar.</span><br />
<span style="font-size: large;">O sol não voltará a brilhar amanhã, dir-lhe-ão os seus botões.</span><br />
<span style="font-size: large;">Nem depois da manhã.</span><br />
<span style="font-size: large;">Nunca mais, nunca mais, nunca mais, concluirá você.</span><br />
<span style="font-size: large;">Como se, de repente, você se tornasse um cego, incapaz de ver a luz. Você vegetará perenemente num túnel sem fim. </span><br />
<span style="font-size: large;">É como se o carro tivesse ficado sem gasolina no meio do nada. </span><br />
<span style="font-size: large;">Faltará combustível para seguir adiante, e você temerá. </span><br />
<span style="font-size: large;">A partir daqui, apenas a inércia, o carro parado e a contagem modorrenta dos dias que ainda lhe restam. E nada mais.</span><br />
<span style="font-size: large;">É como se você estivesse exilado num país estrangeiro e não dominasse a língua.</span><br />
<span style="font-size: large;">E todos à sua volta falassem aramaico.</span><br />
<span style="font-size: large;">E tudo trouxesse a lembrança dela.</span><br />
<span style="font-size: large;">Como o casal que entra no táxi; a moça que bebe um capuccino; o homem que conversa com seu uísque; a noite que cai sobre a cidade enchendo os bares de homens e mulheres no cio.</span><br />
<span style="font-size: large;">Os carros trafegam lentamente e só a lembrança dessa mulher lhe fará companhia. Dirigem-se todos para uma grande festa em homenagem a ela. </span><br />
<span style="font-size: large;">Menos você.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ela estará linda, com o vestido que você já despiu tantas vezes vindo de outras festas.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ela, com o colar de pérolas que você presenteou. E os brincos tão sutis.</span><br />
<span style="font-size: large;">"Mudou o cabelo", você dirá.</span><br />
<span style="font-size: large;">"Remoçou".</span><br />
<span style="font-size: large;">Só você e a sua triste figura permanecerão inalterados.</span><br />
<span style="font-size: large;">O avião cruza o céu em direção a Bruxelas, mas na sua cabeça ele voa para o domicílio aonde suas cartas não chegam e de onde seus telegramas são devolvidos.</span><br />
<span style="font-size: large;">O avião voa para Santiago ou Milão.</span><br />
<span style="font-size: large;">Para a velha Lisboa.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ou para Madri.</span><br />
<span style="font-size: large;">Mas, para você, o destino é Istambul, quando na verdade é outro. Tão outro.</span><br />
<span style="font-size: large;">O avião cruza o céu em direção ao inferno. Com o piloto automático ativado. E você, cá de baixo, é seu único passageiro.</span><br />
<div>
<br /></div>
Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-29503148232459278532019-11-04T12:48:00.007-05:002020-12-21T16:47:59.343-05:00<span style="font-size: x-large;">do outro lado</span><br />
<br />
(para pasquale e juliana)<br />
<br style="font-size: x-large;" />
<br style="font-size: x-large;" />
<span style="font-size: large;">todos os meus vetores</span><br />
<span style="font-size: large;">estão voltados para </span><br />
<span style="font-size: large;">a outra margem do Atlântico</span><br />
<br style="font-size: x-large;" />
<br style="font-size: x-large;" />
<span style="font-size: large;">são treze horas, </span><br />
<span style="font-size: large;">mas em meus poros </span><br />
<span style="font-size: large;">já são dezesseis</span><br />
<br style="font-size: x-large;" />
<br style="font-size: x-large;" />
<span style="font-size: large;">os ponteiros do relógio</span><br />
<span style="font-size: large;">na igreja da Sé</span><br />
<span style="font-size: large;">apontam para a minha saudade</span><br />
<span style="font-size: large;">na torre de Belém</span><br />
<br style="font-size: x-large;" />
<br style="font-size: x-large;" />
<span style="font-size: large;">bate na Mouraria</span><br />
<span style="font-size: large;">um coração</span><br />
<span style="font-size: large;">extraviado em São Paulo</span><br />
<br style="font-size: x-large;" /><br style="font-size: x-large;" />
<span style="font-size: large;">e</span><div><span style="font-size: large;">ela respira em Lisboa</span><br />
<span style="font-size: large;">o ar que me falta</span><br />
<span style="font-size: large;">aqui.</span></div>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-82560369283693505352019-10-28T13:24:00.000-04:002019-10-28T13:24:35.153-04:00Crônica para a Isabella<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXdAXb9T21zx64__QKogM8v8g8Qu7wJax8C_JvcZoFfnaXQpuYZh6wVCmUcNI4AVGw_NeYP_df4X5RtSPln0VM4oRyC0U8zTDkxGzlFhe5hl5t0FmaiBqfsTJzfCPGnc1V1h7RvNJ03-96/s1600/bebeluca.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1156" data-original-width="928" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXdAXb9T21zx64__QKogM8v8g8Qu7wJax8C_JvcZoFfnaXQpuYZh6wVCmUcNI4AVGw_NeYP_df4X5RtSPln0VM4oRyC0U8zTDkxGzlFhe5hl5t0FmaiBqfsTJzfCPGnc1V1h7RvNJ03-96/s400/bebeluca.jpg" width="320" /></a></div>
<br />
<i>(Para a Bebel, que completou 18 anos ontem)</i><br />
<br />
<br />
<span style="font-size: large;">Ela tem poucos minutos de vida, mas já realizou o que quase quatro décadas de experiências, euforias, pequenas conquistas e grandes desastres não conseguiram.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ela ainda aprende a respirar fora da barriga da mãe, mas já mudou a vida de um homem cético, petrificado por casuísmos de uma existência marcada pelas mazelas da luta cotidiana.</span><br />
<span style="font-size: large;">Com apenas alguns minutos de vida ela o faz redescobrir um gosto novo pelo ofício de existir. E resgata nele o desejo da imortalidade.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ela acaba de transformá-lo em pai.</span><br />
<span style="font-size: large;">Durante os nove meses de espera e inquietações este pai a imaginou de tantas maneiras, menos desta com que veio.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ela não tem os lábios dele e nem o contorno do queixo da mãe.</span><br />
<span style="font-size: large;">Não se sabe a cor de seus cabelos – ainda envoltos em líquido amniótico –, e seus olhos permanecem fechados, estranhando a luz artificial do mundo exterior.</span><br />
<span style="font-size: large;">O médico diz que ela tem saúde perfeita. E isto é motivo de júbilo, de despreocupação.</span><br />
<span style="font-size: large;">A enfermeira que testemunhou seu nascimento reafirma o que ele registrou desde o primeiro momento em que a viu: sim, ela é uma menina linda.</span><br />
<span style="font-size: large;">O corpinho franzino, de face rosada e mãos minuciosas, ainda se espreguiça no berço estufa do Hospital Saint Barnabas e ela não sabe do milagre que acaba de operar.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ela chora pela primeira vez e ele preocupa-se imediatamente, sem entender que esse choro foi despertado pela mudança súbita de universos.</span><br />
<span style="font-size: large;">Há menos de cinco minutos, estava protegida pela fortaleza do ventre materno.</span><br />
<span style="font-size: large;">Agora, está nua, fragilizada diante de um mundo simbolizado pela expressão confusa de seu pai.</span><br />
<span style="font-size: large;">E o choro novo que enche o ar da sala de parto é um aviso firme:</span><br />
<span style="font-size: large;"> - Preste bem atenção em mim, papai! Cheguei para te povoar!</span><br />
<span style="font-size: large;">Seus olhos abertos iluminam a encruzilhada existencial deste marinheiro de primeiríssima viagem, com a potência de um farol mostrando rumo a um barco no meio de uma tempestade.</span><br />
<span style="font-size: large;">Numa ordem inversa de coisas é a filha que chega ensinando o pai.</span><br />
<span style="font-size: large;">É ela quem indica a estrada a seguir e sabe-se, de antemão, que já não existirá um atalho para o futuro.</span><br />
<span style="font-size: large;">Mudou tudo num segundo.</span><br />
<span style="font-size: large;">Encantamento, magia, esperança e responsabilidade substituem palavras de um dicionário que jamais será o mesmo.</span><br />
<span style="font-size: large;">E o pai também chora, tentando esconder detrás dos óculos de grau o inocultável.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ele que não chorou na última derrota de seu time numa final de campeonato.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ele que não se emocionou na perda de um tio querido, recentemente.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ele que evita filmes melodramáticos por não lhes reconhecer serventia.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ele que, consumido pela luta do pão de cada dia, às vezes se esquece de ligar regularmente para seus pais e pedir-lhes a necessária benção.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ele, o autossuficiente.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ele, o rei de um reino que gira em torno de seu umbigo.</span><br />
<span style="font-size: large;">Impassível, até aqui, este senhor.</span><br />
<span style="font-size: large;">Diante dos olhos deste homem impenetrável, revolve-se uma trajetória que está prestes a entrar num novo período de sua história.</span><br />
<span style="font-size: large;">E esta metamorfose vai tomando força, acontecendo lentamente, como uma borboleta saindo do intransponível casulo.</span><br />
<span style="font-size: large;">Este homem sou eu. Isabella acaba de me fazer pai.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ainda estou na sala de parto e um turbilhão de indescritíveis emoções vai ganhando - cada vez mais -, terreno em meu coração.</span><br />
<span style="font-size: large;">Não sei se rio ou se choro. E é tudo de alegria.</span><br />
<span style="font-size: large;">Um frenesi diferente de um grito de gol.</span><br />
<span style="font-size: large;">Um eu te amo mais profundo do que todos que eu já disse a qualquer mulher.</span><br />
<span style="font-size: large;">A meu pai ou a minha mãe.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ou a quem quer que seja.</span><br />
<span style="font-size: large;">Na noite de 27 de outubro de 2001, escrevi minha grande crônica até aqui.</span><br />
<span style="font-size: large;">Meu melhor poema.</span><br />
<span style="font-size: large;">Minha grande letra de canção.</span><br />
<span style="font-size: large;">Na expressão serena desta criança que nasceu também de mim, sinto-me renascido, pacificado, a um passo de Deus.</span><br />
<div>
<br /></div>
Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-79380365123365391922019-10-14T14:41:00.003-04:002020-12-22T13:56:26.038-05:00O fio da meada<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzJddtZ8fsjr8pDUt2Rz63NgubP57KAlCeDjOqTB3Oje95no3lHr01jKh2s4zCa5-LfeVeCKujcHbsAPllGwRw-dkmHGgeWEaP6J9CRV-tiL5PqrP2Xkir-4-7lqY0Rud_NLMp_5DCgtWU/s1600/farpado.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="283" data-original-width="500" height="226" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzJddtZ8fsjr8pDUt2Rz63NgubP57KAlCeDjOqTB3Oje95no3lHr01jKh2s4zCa5-LfeVeCKujcHbsAPllGwRw-dkmHGgeWEaP6J9CRV-tiL5PqrP2Xkir-4-7lqY0Rud_NLMp_5DCgtWU/s400/farpado.jpg" width="400" /></a></div>
<div style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; margin-bottom: 6px;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; margin-bottom: 6px;">
<span style="font-size: large;">eu tenho<br />uma gaveta<br />para guardar segredos<br />e um armário inteiro<br />para juntar os medos</span></div>
<div style="background-color: white; color: #1c1e21; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif; margin-bottom: 6px;">
<span style="font-size: large;"><br /></span></div>
<div class="text_exposed_show" style="background-color: white; color: #1c1e21; display: inline; font-family: Helvetica, Arial, sans-serif;">
<span style="font-size: large;"></span><br />
<div style="font-family: inherit; margin-bottom: 6px;">
<span style="font-size: large;">tropeço</span><br />
<span style="font-size: large;">em nuvens</span><br />
<span style="font-size: large;">vazias de chuva</span></div>
<span style="font-size: large;">
<div style="font-family: inherit; margin-bottom: 6px;">
converso<br />
com girassóis<br />
sobre as mudanças<br />
no tempo</div>
<div style="font-family: inherit; margin-bottom: 6px;">
<br /></div>
<div style="font-family: inherit; margin-bottom: 6px; margin-top: 6px;">
entalho o dia-a-dia<br />
com uma faca cega</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div style="font-family: inherit; margin-bottom: 6px; margin-top: 6px;">
<br /></div><div style="font-family: inherit; margin-bottom: 6px; margin-top: 6px;">(firo)</div><div style="font-family: inherit; margin-bottom: 6px; margin-top: 6px;"><br /></div>
<div style="font-family: inherit; margin-bottom: 6px; margin-top: 6px;">
é de arame farpado<br />
o fio<br />
da minha meada<br />
<br />
teço<br />
com chumbo e plutônio<br />
a grande solidão.</div>
<div style="font-family: inherit; margin-bottom: 6px; margin-top: 6px;">
<br /></div>
<div style="font-family: inherit; margin-bottom: 6px; margin-top: 6px;">
<br /></div>
<div style="font-family: inherit; margin-bottom: 6px; margin-top: 6px;">
(Roberto Lima)</div>
</span></div>
Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-15430312659232539832019-09-26T13:36:00.003-04:002021-05-04T19:57:31.202-04:00Os morcegos de Coimbra<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgKruqvH1d-PNdJp2NNlA4Veo0LG5mtRUFgTapxC3sXrvf94YP5qcK7ycccmhHLw8k2Bb_UJnmT1qnF4M_Yfgw42qvdgb_Z3nXna4sCAI1vg03rEjUlt7zu69GUxjwuRg7aEMKGm8dsKi6y/s1600/morceguim.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="634" data-original-width="1024" height="247" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgKruqvH1d-PNdJp2NNlA4Veo0LG5mtRUFgTapxC3sXrvf94YP5qcK7ycccmhHLw8k2Bb_UJnmT1qnF4M_Yfgw42qvdgb_Z3nXna4sCAI1vg03rEjUlt7zu69GUxjwuRg7aEMKGm8dsKi6y/s400/morceguim.jpg" width="400" /></a></div>
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">Sofro de bronquite alérgica. <br />É sempre um calvário quando chega o mês de outubro ou entro em algum lugar antigo.</span><br />
<span style="font-size: large;">Outubro traz o outono nortenho nas Américas e com ele chegam a mudança nos boletins meteorológicos e no meu senso de humor.</span><br />
<span style="font-size: large;">No que a visão se acinzenta e o casaco sai do armário, inicia-se um processo que me remete a invejar a sina de algumas aves mais afortunadas, dessas que voam em bandos barulhentos para paisagens mornas quando o clima começa a virar.</span><br />
<span style="font-size: large;">O cheiro - e a mudança - do tempo me adoece. </span><div><span style="font-size: large;">É fato.</span><br />
<span style="font-size: large;">Toda vez que entro em uma igreja antiga ou numa biblioteca cujo acervo abriga obras centenárias, recorro ao lenço bordado com as iniciais CRL, presente de minha mãe.</span><br />
<span style="font-size: large;">Eu tusso muito ao impacto do ácaro, um de meus tantos algozes na vida.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ácaro, álcool, tabaco, insônia, haicais que nasceram e morreram trocadilhos e música sertaneja estão no topo da lista.</span><br />
<span style="font-size: large;">As igrejas de Ouro Preto sempre mexeram emocionalmente comigo, mas deixam os brônquios impregnados de uma espécie de pó imperceptível aos olhos, além daquele ar de Aleijadinho misturado ao perfume de Marília de Dirceu.</span><br />
<span style="font-size: large;">Em ida recente a Portugal, visitei a deslumbrante biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Pensei que fosse morrer. O oxigênio acabou em questão de minutos.</span><br />
<span style="font-size: large;">Construída em estilo barroco no século 18 pelo rei João V, trata-se de um monumento de inestimável valor histórico e abrigo de obras raríssimas.</span><br />
<span style="font-size: large;">São três pisos, quase 56 mil volumes, com destaque para o acervo de livros antigos, compostos por documentos do Século 16 ao Século 18. Uma das jóias é a primeira edição da “Fábrica do Corpo Humano”, atlas de anatomia do belga Andreas Vesalius, lançado em 1543.</span><br />
<span style="font-size: large;">Assustei-me com a presença de morcegos - um exército -, dependurados de cabeça para baixo no teto da edificação. Acalmei-me, informado de que a presenças deles é necessária no combate às traças, implacável inimiga dos livros.</span><br />
<span style="font-size: large;">Na última última ida a Minas Gerais, abri o guarda-roupa em que minha mãe conserva algumas lembranças do meu pai.</span><br />
<span style="font-size: large;">Uma camisa branca com delicadas listras pretas, outras de vocação discreta, algumas calças de tergal e um uniforme completo dos seus dias de policial militar.</span><br />
<span style="font-size: large;">Retirei a vestimenta e observei que as traças puíram pedaços do tecido, deixando rombos em várias partes.</span><br />
<span style="font-size: large;">Coloquei-a sobre a cama e uma vida inteira passou diante dos meus olhos.</span><br />
<span style="font-size: large;">As traças carcomeram os beijos que meu pai dava na testa quando chegava do trabalho, os bolsos cheios de caramelos, conselhos e reprimendas. </span></div><div><span style="font-size: large;">Roeram um pedaço daquela figura que foi grande influência na pessoa que eu me tornaria.</span><br />
<span style="font-size: large;">Por um breve instante desejei que uma colônia de morcegos tivesse feito morada naquele armário, vindas de Coimbra, talvez, preservando para a posteridade um pedaço da história do grande homem que foi meu pai.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ainda era agosto, mas uma incontrolável crise de tosse - e saudade - tomou conta de mim.</span></div>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-74591982056285843962019-09-17T15:41:00.000-04:002019-09-18T12:55:30.417-04:00Era azul a manhã<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhyqdZ_N1Tnd4_FUCYdsZjiXuVmhW_2SVvEzdSXgOm0gxOY4ku6NHbbXioKmPGiH_6jqfxf0ocmxfkAlzJY6_QAjcEG5m9FkgRp81m0eHCYfx_hh0wpUnPCLrDthWIqNrbpSFgfLH0jNwhT/s1600/azul.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="667" data-original-width="1000" height="266" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhyqdZ_N1Tnd4_FUCYdsZjiXuVmhW_2SVvEzdSXgOm0gxOY4ku6NHbbXioKmPGiH_6jqfxf0ocmxfkAlzJY6_QAjcEG5m9FkgRp81m0eHCYfx_hh0wpUnPCLrDthWIqNrbpSFgfLH0jNwhT/s400/azul.jpg" width="400" /></a></div>
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<br />
<div style="background-color: white;">
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Fui dormir tarde na noite anterior e me dei ao luxo de ficar um pouco mais na cama.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Era um uma linda manhã de final de verão e eu ainda não havia me dado conta de nada. Um sol brilhante e céu muito azul se anunciavam, intrusos, pelas frestas da veneziana.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Eu residia na Belgrove Drive, em Kearny, e havia acabado de acordar, por volta das 8 da manhã. Tomei o café ainda de pijama e segui para o banho.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Tirava o xampu dos olhos quando o telefone tocou. Ninguém liga para mim a essa hora do dia.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Corri nu e ensaboado até o quarto, pois o telefone tocava insistentemente.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Do outro lado da linha, a voz apavorada de Francisco Sampa me intimava a ligar a tv.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">"Liga na CNN", ele disse.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Envolto na toalha, tive dificuldade de achar o bendito controle remoto, espremido que estava nas dobras do sofá da sala.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">A imagem era assustadora.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Um caos absurdo havia se instalado, e uma cena semelhante à dos filmes de Hollywood - em que heróis aparecem do nada para nos salvar - ardia na tela do televisor.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Ambulâncias, viaturas policiais e dos bombeiros, pessoas correndo desesperadas no meio da fumaça e poeira, barulho de sirenes e gritos assustados preenchiam a tela.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Demorei alguns segundos para entender que um avião acabara de se chocar com a torre norte do World Trade Center. Assim como relutei um pouco antes de especular que pudesse ter acontecido um atentado terrorista.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Uma barbeiragem de algum piloto inexperiente, talvez. Ou um defeito mecânico, quem sabe, fez a aeronave despencar do céu para se chocar com o imponente edifício fincado ao sul da Ilha de Manhattan.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Permaneci paralisado, em pé na frente da tv, molhando o chão de madeira, apesar dos protestos da minha minha mulher.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Voltei correndo ao banheiro, enxaguei o corpo e tratei de me vestir. Era urgente chegar à redação.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Desci as escadas como se estivesse atrasado para um casamento. Dei partida no carro e liguei o rádio. Não havia mais dúvida.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Outro avião se chocaria à outra torre do World Trade Center, um pouco depois. O Pentágono também seria atingido. Uma terceira aeronave cairia na Pensilvânia - graças ao empenho dos passageiros -, evitando que atingisse a Casa Branca, seu alvo final.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Eu veria do terraço de um prédio de Newark a queda da primeira torre. Sentiria na pele o fim daquela sensação de impenetrabilidade e segurança que sempre tive, desde que cheguei aqui.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Raciocinei que Bruce Willis não viria nos salvar, como em Duro de Matar.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Stallone e Rambo não chegariam a tempo de evitar a tragédia.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Nem Clint Eastwood.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Nem Chuck Norris.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Nem ninguém.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">O filme da vida é - irreversivelmente - real.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Instalou-se uma dor instantânea - fratura exposta -, uma sensação de fragilidade que o tempo não irá remover.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Voltando do Brasil neste 11 de setembro, tantos anos depois, eu vejo dois fachos de luz gigantes brotando do chão de onde um dia estiveram de pé os edifícios mais altos do mundo.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Dois fachos de luz robustos, imponentes, furam as nuvens pesadas que pairam sobre o céu de Gotham City às 5h35min desta manhã.</span><br />
<span style="color: #222222; font-family: "arial" , "helvetica" , sans-serif; font-size: large;">Uma lágrima de dor escorre, frágil, por debaixo dos óculos de grau.</span></div>
Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-12225448734474590622019-08-20T12:43:00.000-04:002019-08-20T12:43:29.017-04:00Carta para a Marina<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhL09NObszrrRlgQt0I506dzshcSkxnBoCQSgagyHruQpAgH98tHEUkpbTdiZMCmkliOTBhKoJtpMK02BkI0yYCX4lOyImlektQ8Ek6y9674cgs-N74b3Tu575tE1GRn5dO0RtRp8nyCNxH/s1600/marina.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="427" data-original-width="640" height="266" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhL09NObszrrRlgQt0I506dzshcSkxnBoCQSgagyHruQpAgH98tHEUkpbTdiZMCmkliOTBhKoJtpMK02BkI0yYCX4lOyImlektQ8Ek6y9674cgs-N74b3Tu575tE1GRn5dO0RtRp8nyCNxH/s400/marina.jpg" width="400" /></a></div>
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">'Marina, morena, menina, você me pintou.'</span><br />
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">E foi a única pessoa a fazê-lo nestes meus 56 anos de vida.</span><br />
<span style="font-size: large;">Eu conhecia algumas das suas telas, mas só fomos apresentados na casa de Solange e Tadeu Martins, em BH, quase duas décadas atrás.</span><br />
<span style="font-size: large;">Fiquei encantado por um quadro seu que adornava a sala de nossos amigos: três personagens sem olhos, vestidos para uma festa de congado no Vale do Jequitinhonha.</span><br />
<span style="font-size: large;">As cores daquelas fitas encheram meu coração. Achei tudo tão bonito. Principalmente a pessoa especial que você revelaria ser.</span><br />
<span style="font-size: large;">Saí daquela noite levando o quadro debaixo do braço, presente generoso dos donos da casa com seu consentimento e algum constrangimento meu.</span><br />
<span style="font-size: large;">Eu adquiriria mais algumas obras suas.</span><br />
<span style="font-size: large;">Seria presenteado com outras, tão generoso que era o seu coração.</span><br />
<span style="font-size: large;">Nas paredes da casa de meus pais (e também aqui em New Jersey), você reina soberana, ao lado de Poty Lazzarotto, outro artista que tanto admiro.</span><br />
<span style="font-size: large;">Voltaríamos a nos ver muitas vezes, sempre que nos reuníamos para celebrar a amizade, uma das mais belas formas de amor que existem.</span><br />
<span style="font-size: large;">Eu ia para o fogão, alguém cantava e tocava violão.</span><br />
<span style="font-size: large;">Passávamos horas nessa celebração.</span><br />
<span style="font-size: large;">E eu contava nos dedos os dias até que pudesse retornar ao Brasil para nos juntarmos outra vez.</span><br />
<span style="font-size: large;">Você fez a pintura da capa de Meninos de São Raimundo, livro que escrevi em parceria com o poeta Bispo Filho, mas foi preterida quando o livro já estava para ser impresso.</span><br />
<span style="font-size: large;">Na pintura você retratava, ao fundo, os autores quando criança, agarrados aos pais; e, em primeiro plano, já adultos, escancarados em seus rosários de falhanços e dúvidas.</span><br />
<span style="font-size: large;">Tratava-se de uma imagem muito forte e eu não sei explicar o motivo por trás de nossa decisão de não usá-la na capa do livro.</span><br />
<span style="font-size: large;">Havia ali alguma dor, alguma fratura exposta...</span><br />
<span style="font-size: large;">Uma parte de nós - os autores - não queria revelá-las ao mundo, senão pelas entrelinhas dos textos escolhidos para a publicação.</span><br />
<span style="font-size: large;">Diferentemente do que era comum em suas pinturas daquele período - que traziam sempre pessoas sem olhos -, Bispo Filho e eu fomos retratados com absoluta fidelidade.</span><br />
<span style="font-size: large;">Talvez estivesse explicitada em nosso olhar a razão da escolha, no minuto derradeiro, quando tudo já parecia líquido e certo.</span><br />
<span style="font-size: large;">Tentei adquirir a obra, mas você já havia pintado outra coisa por cima da tela.</span><br />
<span style="font-size: large;">Não questionei.</span><br />
<span style="font-size: large;">Não houve - de sua parte - nenhuma animosidade.</span><br />
<span style="font-size: large;">Nenhum senão.</span><br />
<span style="font-size: large;">Entendi que, escondido em seu gesto, a tela trazia algo que ia além do que os olhos viam; segredos e mistérios diluídos nas águas do rio que molhou os pés de nossa infância.</span><br />
<span style="font-size: large;">Algum tempo depois, eu receberia de você um presente que adorna a sala da casa de minha mãe. Aquele retrato de cor amarela está pendurado ao lado do rosto de meu pai, outro presente seu.</span><br />
<span style="font-size: large;">Papai adorava você.</span><br />
<span style="font-size: large;">Minha mãe também.</span><br />
<span style="font-size: large;">Você se tornou uma presença constante e obrigatória em nossa casa, todas as vezes que eu ia a Minas Gerais.</span><br />
<span style="font-size: large;">Acompanhei diferentes fases de sua arte. Dos personagens sem olhos às meninas e meninos envoltos na leveza de um vento ligeiro. Depois, a fase dos retratos, em que vários amigos seus ficaram imortalizados em delicadeza acrílica.</span><br />
<span style="font-size: large;">Recentemente, você começou a pintar pratos e canecas de rara beleza, e eu fiquei de passar por sua casa para adquirir alguns.</span><br />
<span style="font-size: large;">Não tivemos tempo, Marina.</span><br />
<span style="font-size: large;">A notícia de sua morte passou por cima de mim com a violência de um rolo compressor. Saber que, quando for a BH, já não poderei lhe dar um abraço causa-me enorme confusão.</span><br />
<span style="font-size: large;">Vou ter que me contentar com sua lembrança, as cores felizes misturadas em suas obras espalhadas pelas paredes da casa onde já não vive meu pai.</span><br />
<span style="font-size: large;">Você, que eu sempre dizia pintar com as mãos de Deus, está agora pertinho do dono delas.</span><br />
<span style="font-size: large;">Descanse em paz nos braços d'Ele.</span>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-52926562197308600192019-07-16T15:46:00.000-04:002019-07-19T12:07:59.699-04:00Pescoço de peru<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgsRPG_PRHtO0gsxhs_gsNTY0Mz_4Q0_Q-r0U5DhH29afrMgRptjx3Mv1ahS_7JKU15sfM49TunRX2jIUYH-OCxoK5eesG_JOPOs4-xGmsGVwQSTv-eh3WD0EwsYzsqXFa7ul63oaGV8F3Y/s1600/veio.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="960" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgsRPG_PRHtO0gsxhs_gsNTY0Mz_4Q0_Q-r0U5DhH29afrMgRptjx3Mv1ahS_7JKU15sfM49TunRX2jIUYH-OCxoK5eesG_JOPOs4-xGmsGVwQSTv-eh3WD0EwsYzsqXFa7ul63oaGV8F3Y/s400/veio.jpg" width="400" /></a></div>
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;">As redes sociais foram inundadas por fotos de ‘velhinhos e velhinhas’ nos últimos dias. Um aplicativo que ‘envelhece’ as pessoas virou moda entre anônimos e famosos, que se divertiram com as supostas imagens futuristas.</span><br />
<span style="font-size: large;">A minha versão não foi das mais generosas. </span><br />
<span style="font-size: large;">Recusei-me a postá-la, mas o compositor Dalmir Lott fez questão de tornar público aquilo que eu gostaria de manter privado.</span><br />
<span style="font-size: large;">Fiquei com a cara daquele quibe de lanchonete de rodoviária que ninguém quis comprar, lá pelas duas da manhã.</span><br />
<span style="font-size: large;">Orelhas de abano, nariz de borracha porosa, cabelos escassos, o rosto com a aparência do mapa rodoviário da Califórnia, pés de galinha espalhados por toda a face, é o que se vê. </span><br />
<span style="font-size: large;">As pelancas do pescoço, uma vez espichadas, fariam duas vezes o trajeto Rio-São Paulo.</span><br />
<span style="font-size: large;">Minha cara ficou parecida com o cotovelo do Keith Richards, do Rolling Stones.</span><br />
<span style="font-size: large;">Eu, que nunca fui nenhum Richard Gere, fui monstrificado.</span><br />
<span style="font-size: large;">No entanto, se o aplicativo da internet é cruel, a vida é muito mais. Uma existência não se consuma (e consome) em meia dúzia de cliques.</span><br />
<span style="font-size: large;">Sei que ficarei com um aspecto ainda pior, caso consiga superar décadas de abusos e descaso com o presente dado por meus genitores.</span><br />
<span style="font-size: large;">Maracujás enrugados dão mais suco, diria meu falecido pai.</span><br />
<span style="font-size: large;">Não é bem assim.</span><br />
<span style="font-size: large;">Problemas de todas as espécies branqueiam os cabelos, riscam sulcos com o estilete dos dias, dando a mim um aspecto estranho, desenhando uma caricatura do que fui um dia.</span><br />
<span style="font-size: large;">Boletos, ex-'conjes' (como discursaria o Moro), filhos, políticos filhos da puta, times de futebol e suas defesas pífias, uísque de procedência duvidosa, drogas legais e ilegais, religião, turbulências de avião, filas em repartições públicas, cidadãos corruptos e corrompidos no meu entorno, buracos nas estradas, medo da violência urbana, insônia, ignorância e fúria dos extremistas, trânsito caótico, as falas da Damares, a ganância dos poderosos e a ausência de Deus em tantos momentos, farão de mim algo muito pior do que essa calopsita com pescoço de peru, que o Dalmir Lott espalhou pelas redes sociais.</span><br />
<span style="font-size: large;"><br /></span>
<span style="font-size: large;"><br /></span>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-2606301897907409199.post-34219440343246932142019-06-21T15:47:00.000-04:002019-06-22T12:48:36.116-04:00Calipígio<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLX07wpZzsT5S7YzeJdp4JVMjyfUQXO-xRjPU-pfSW6D55bgvNBUjARJlmjk32LwhkL9CZsBDSuG2oGY0UdlyEsenEPp7rZCBr2_PutUUUQC5_lmp_1q1mZTr90cxI6HK34cD2DdwuHTH1/s1600/buzanfan.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="333" data-original-width="637" height="208" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLX07wpZzsT5S7YzeJdp4JVMjyfUQXO-xRjPU-pfSW6D55bgvNBUjARJlmjk32LwhkL9CZsBDSuG2oGY0UdlyEsenEPp7rZCBr2_PutUUUQC5_lmp_1q1mZTr90cxI6HK34cD2DdwuHTH1/s400/buzanfan.jpg" width="400" /></a></div>
<span style="font-size: large;"><br />Ele é portador – segundo suas próprias palavras – de 26 doenças, todas elas mortais.</span><br />
<span style="font-size: large;">Bebe, fuma, se excede, mas as 26 moléstias só o incomodam quando a esposa aparece com algum tipo de restrição:</span><br />
<span style="font-size: large;">– Não posso ser contrariado. Lembre-se: sou um homem valetudinário!</span><br />
<span style="font-size: large;">Valetudinário?</span><br />
<span style="font-size: large;">Ia consultar o dicionário – outra de suas muitas manias -, mas preferi o atalho, já que ele adora descobrir palavras esdrúxulas nos Aurélios e Houaiss desta vida.</span><br />
<span style="font-size: large;">Aprendi que um indivíduo valetudinário é um sujeito de saúde frágil.</span><br />
<span style="font-size: large;">– Olha que moça calipígia, disse ele no outro dia, apontando para a voluptuosa morena que atravessava a rua.</span><br />
<span style="font-size: large;">Nova consulta e descubro que calipígio é aquele ou aquela que possui belas nádegas.</span><br />
<span style="font-size: large;">Todas as manhãs, ele se levanta com seu pijama de aposentado, calça as pantufas e vai ao banheiro. Quem estiver do lado de fora saberá qual dos Argemiros sairá por aquela porta.</span><br />
<span style="font-size: large;">Existem dois Argemiros: o sorumbático e o feliz.</span><br />
<span style="font-size: large;">Se quer saber o que significa sorumbático, pegunte a ele.</span><br />
<span style="font-size: large;">O Argemiro feliz canta trechos de ópera enquanto se barbeia ou lê o jornal do dia, sentado no trono.</span><br />
<span style="font-size: large;">Ele, que sabe tudo de ópera, canta árias inteiras e se alimenta de minuetos e réquiens.</span><br />
<span style="font-size: large;">O segundo Argemiro parece ter grudado chiclete na cruz de Cristo. Ele fica mudo durante o banho e dele nada se escuta, quando sai de lá.</span><br />
<span style="font-size: large;">Nessa versão, os olhos acinzentados o acompanham até a mesa do café.</span><br />
<span style="font-size: large;">Diante das frutas – que exige descascadas e cortadas em tamanhos uniformes – , sentencia:</span><br />
<span style="font-size: large;">“Estou tão plúmbeo que tenho certeza de que minha alma é macambúzia. Ó maldita paúra. Meu banzo é indizível”.</span><br />
<span style="font-size: large;">Qualquer das expressões denota que ele não acordou do lado certo da cama.</span><br />
<span style="font-size: large;">Saudade de algo ou alguém ou a simples sensação de frio podem mudar seu estado de espírito por períodos que podem durar até uma semana.</span><br />
<span style="font-size: large;">Gosta de bons vinhos, champanhe e malte escocês.</span><br />
<span style="font-size: large;">À mesa não possui o mesmo requinte.</span><br />
<span style="font-size: large;">Se pudesse, comeria bife com batatas fritas em todas as refeições.</span><br />
<span style="font-size: large;">Já o vi trocar uma ida ao melhor restaurante francês por um pão com ovo cozido. E não me pareceu arrependido.</span><br />
<span style="font-size: large;">Argemiro é assim, um poço de contradições e manias.</span><br />
<span style="font-size: large;">É tão triste vê-lo agonizar às vésperas de uma viagem. </span><br />
<span style="font-size: large;">Pesa a bagagem duzentas vezes. Trezentas, se achar necessário.</span><br />
<span style="font-size: large;">Tem paranoia com agentes alfandegários e entra em pânico diante da mera menção de que uma de suas malas pode ser inspecionada no aeroporto.</span><br />
<span style="font-size: large;">Não que ele leve nelas algum objeto ou produto proibido, mas a possibilidade de ver espalhadas pela bancada as suas cuecas e meias _que ele enrola e acondiciona artesanalmente_, causa-lhe fobias, profundo mal-estar, uma quase demência.</span><br />
<span style="font-size: large;">Toda vez que sai para comprar roupas, leva para a loja ou boutique uma fita métrica e mede, peça por peça, uma por uma, antes de experimentá-las. Ele conhece suas medidas antes, durante e depois das refeições.</span><br />
<span style="font-size: large;">Outra mania esquisita é a de colecionar caixinhas. Tem milhares delas. Quadradas, ovais, triangulares, brancas, pretas, multicolores, grandes, pequenas, fundas, rasas…</span><br />
<span style="font-size: large;">Argemiro precisaria de um novo cômodo na casa só para guardar as suas coleções. </span><br />
<span style="font-size: large;">Na falta de ter o que armazenar dentro delas, guarda caixinha dentro de caixinha e passa dias inteiros organizando o acervo.</span><br />
<span style="font-size: large;">Usuário de tantos remédios, faz pouco esforço para obedecer aos conselhos médicos.</span><br />
<span style="font-size: large;">Já enfartou duas vezes. Sofre de diabetes. Tem pressão alta.</span><br />
<span style="font-size: large;">E torce para o Coritiba Football Club.</span><br />
<span style="font-size: large;">Informado pelo doutor de que deveria abrir mão de alguns pequenos prazeres, caso quisesse viver mais, retrucou que havia acabado de escolher, naquele instante, a epígrafe que iria mandar bordar na lápide:</span><br />
<span style="font-size: large;">– Argemiro parou de fumar!</span><br />
<span style="font-size: large;">E é isso mesmo.</span><br />
<span style="font-size: large;">Argemiro, nosso incorrigível Argemiro, só vai parar de fumar ou beber (ou de fazer qualquer outra coisa que lhe apeteça ou dê prazer) no dia em que pedir a conta e partir.</span>Primeira Pessoahttp://www.blogger.com/profile/01815373121198938398noreply@blogger.com2