Passaram-se 37 anos.
Minha mãe sorri e entrega-me um pedaço de papel bastante gasto.
Amarelou, tem as arestas puídas, visivelmente arranhadas pelas unhas de Kronos.
O documento está dobrado em dois, desfazendo um retângulo, como se tivesse sido dividido ao meio para caber no bolso da camisa.
O papel é de gramatura pesada, quatro folhas em tamanho ofício amalgamadas numa só. Um cartão que revela a origem do departamento que o emitiu.
Estou diante de uma cédula de identidade com o carimbo das Forças Armadas do Brasil:
10º Batalhão de Infantaria – Juiz de Fora, MG – 2º Companhia de Fuzileiros.
Graduação: soldado.
Nº: 0522.
Nome: Carlos Roberto Lima.
Data e local de nascimento: 04-12-1962; Pedra Corrida-MG.
Lá em baixo, em azul, naquele anil das canetas Bic, o jamegão de José Cândido Lopes, coronel infante.
Olho para o retrato 3X4 e ali fenece um menino bonito.
Que olha firme para a lente da Kodak apontada para ele como um revólver pronto para disparar.
A imagem do frescor dos 18 anos denuncia um adolescente ocupado em seus rituais de passagem.
A foto revela ao mundo um homem em formação.
A vida exige voluntários.
O exército brasileiro, não.
Assim como o voto, o serviço militar é obrigatório para os rapazes do Brasil.
E está tudo lá, na fotografia, a obrigação que rouba o que restou da inocência e o impossibilita do livre arbítrio.
Patriotismo coercitivo.
Pele verde-oliva.
Ufanismo.
João Baptista Figueiredo.
Dom e Ravel.
Ali jaz um menino.
Um menino que pagou a conta em 18 prestações e saiu num ônibus da Viação Gontijo, perambulou durante dois dias pelas ruas de BH, antes de se perder nas páginas de um passaporte, embarcando numa viagem sem volta para Nova York.
As olheiras - cinzas diluídas - estão expostas para quem as fitar no marrom desbotado dos anos.
E é tão fundo o poço das incertezas para essa legião de garotos; é inverossímil a previsão de um final feliz.
Aos 18 anos é tudo tão turvo...
E turvas são as águas do futuro.
Mas há tanto de confiança naquele olhar que fuzila a câmera e por ela é fuzilado
Mal sabe ele.
Mal saberá.
Que conselhos eu poderia dar para aquele rapaz mais de três décadas depois?
Profeta do ontem, que me tornei, é tão fácil dizer que foi correta a decisão de deixar tudo para trás e tentar a sorte em outro país.
A saída pelo aeroporto é sempre uma eficaz válvula de escape para os que nasceram precários e com pouco a perder.
Eu poderia falar-lhe de outras escolhas, apontar a areia movediça de algumas companhias e poupá-lo de desgostos e decepções.
Rabiscaria-lhe atalhos para evitar descaminhos.
Rascunharia cenários caóticos e eventuais oásis com suas brisas e regatos.
E o deixaria escolher.
Falaria do amor de juventude que não daria em nada, além dos porres de praxe e subsequentes noites de insônia.
Eu o consolaria e lhe enxugaria as lágrimas, poupando-o da indiferença fria do travesseiro.
Sugeriria livros e filmes como antídoto, munição e lastro.
Eu o ensinaria a gostar de Woody Allen, que ele não compreende, mas tem receio de confessar sua incompreensão nas rodas de bar.
Eu o convenceria a terminar a leitura de A Montanha Mágica, de Thomas Mann.
Falaria da beleza das ruas de Praga e do silêncio de algumas catedrais de Berlim.
Reproduziria o som de flauta que faz o vento quando preenche e arrepia as paredes de pedra das vielas antigas de Belfast.
Eu o ensinaria a conversar com Deus.
Talvez...
Talvez...
Pensando bem, eu não lhe diria nada.
Deixaria que vivesse tudo outra vez, cometesse erros e acertos seguindo seus instintos e caráter trazidos na marmita.
E que se concedesse a oportunidade de reinterpretar tudo o que viveria.
E que se moldasse e se reinventasse ao ritmo do tambor do tempo sem nenhuma interferência externa.
É bem provável que esse homem - que agora se revê num documento caducado e carcomido pelas traças - se tornasse mais liberto, mais leve, quase pleno.
Um homem que representasse melhor o jovem da fotografia.