Deve ter passado muito frio, o recém-nascido.
Deve
ter sentido falta da água morna do aquário da barriga de sua mãe.
Consigo
imaginá-lo naquela posição em que ficam os bebês antes de nascer, dormindo de
conchinha, inocente, sem imaginar que lá fora existem países em guerra e homens
vendendo a alma.
Dormiu
para sempre, sonhando com anjos tocando harpa e lírios derramando ouro.
Dormiu
como se escutasse um minueto e seus olhinhos fechados enxergassem Jesus.
Naquela
rua, naquele momento, passaram táxis vazios e ônibus à procura de uma
plataforma na estação rodoviária.
Passaram
sujeitos apressados buscando trabalho ou descanso. Circularam junkies sob o
efeito de álcool e drogas, transeuntes olhando para trás como se fugissem da
escuridão da noite - e seus ardis -.
Como
se fugissem das próprias sombras.
Por
ali passou o medo em passos de ganso.
Passou
a desesperança com a sirene ligada.
Passou
uma nação em transe, delirante, ensandecida sob o efeito da ganância e da
falência de caráter daqueles que a conduzem.
Transitou
um Brasil dormente.
Um
Brasil doente, canibal de si mesmo, soprando um samba de Adoniram numa flauta
feita a partir de um fêmur desovado.
Passaram
ambulâncias carregando doentes e automóveis importados levando novos ricos e
playboys desajustados.
Passou
uma mulher pedindo esmola, levando ao colo uma menina que não teve a mesma sina
que ele, apesar da sorte tão parecida.
Passaram,
também, a fome, a miséria e a injusta distribuição.
Passou
a violência aniquiladora, escancarada no olhar das pessoas.
Passaram
522 anos de uma história cheia de nódoas e metas não atingidas.
Passou
um país que não se cumpriu.
O
bebê desta crônica não conhecerá as letras do alfabeto ou um poema de Cora
Coralina.
Não
aprenderá a falar ou caminhar em direção ao futuro.
Não
sentirá a falta de um abraço de mãe ou escutará um conselho de avó.
Não
verá os flamboyants sangrando no coração das primaveras, nem distinguirá o roxo
dos ipês e o vermelho das rosas no canteiro das praças.
Não
nadará em um riacho, nem sentirá o orvalho da grama molhada sob os pés
descalços.
Não
testemunhará a mudança das luas ou das estações; nem jogará futebol com outras
crianças.
Mas
também não se entristecerá com a classe dominante, aquela que aniquila fria e
impunemente o amanhã de gerações inteiras.
Ele
não ouvirá falar de negociatas escusas e nem terá o coração quebrado por algum
amor de juventude.
Foi
abandonado em um ponto de ônibus, como se fizesse parte de uma indesejada
ninhada de gatos.
Ficou
ali, tremendo de frio, na desesperança de que alguém passasse e se enchesse de
compaixão, dando a essa tragédia urbana um final feliz.
Ah,
menino de Brasília, a visão de seu corpinho dentro de uma caixa de papelão
deveria aguçar o sentimento de culpa e fracasso de toda a humanidade.
Mas
estamos preocupados demais com o vencimento de nossas promissórias e com a
escolha do próximo colégio de nossos filhos nem sempre atentos.
Falhamos!
E
você sucumbiu, desamparado, desnutrido e sozinho, conhecendo em suas primeiras
e derradeiras horas, o quanto é bruto o coração dos homens.
Ao
final desta crônica, é até provável que apareça alguém dizendo que 'foi melhor
assim'.