Tuesday, May 17, 2022

O bebê de Brasília



Deve ter passado muito frio, o recém-nascido.

Deve ter sentido falta da água morna do aquário da barriga de sua mãe.

Consigo imaginá-lo naquela posição em que ficam os bebês antes de nascer, dormindo de conchinha, inocente, sem imaginar que lá fora existem países em guerra e homens vendendo a alma.

Dormiu para sempre, sonhando com anjos tocando harpa e lírios derramando ouro.

Dormiu como se escutasse um minueto e seus olhinhos fechados enxergassem Jesus.

Naquela rua, naquele momento, passaram táxis vazios e ônibus à procura de uma plataforma na estação rodoviária.

Passaram sujeitos apressados buscando trabalho ou descanso. Circularam junkies sob o efeito de álcool e drogas, transeuntes olhando para trás como se fugissem da escuridão da noite - e seus ardis -.

Como se fugissem das próprias sombras.

Por ali passou o medo em passos de ganso.

Passou a desesperança com a sirene ligada.

Passou uma nação em transe, delirante, ensandecida sob o efeito da ganância e da falência de caráter daqueles que a conduzem.

Transitou um Brasil dormente.

Um Brasil doente, canibal de si mesmo, soprando um samba de Adoniram numa flauta feita a partir de um fêmur desovado.

Passaram ambulâncias carregando doentes e automóveis importados levando novos ricos e playboys desajustados.

Passou uma mulher pedindo esmola, levando ao colo uma menina que não teve a mesma sina que ele, apesar da sorte tão parecida.

Passaram, também, a fome, a miséria e a injusta distribuição.

Passou a violência aniquiladora, escancarada no olhar das pessoas.

Passaram 522 anos de uma história cheia de nódoas e metas não atingidas.

Passou um país que não se cumpriu.

O bebê desta crônica não conhecerá as letras do alfabeto ou um poema de Cora Coralina.

Não aprenderá a falar ou caminhar em direção ao futuro.

Não sentirá a falta de um abraço de mãe ou escutará um conselho de avó.

Não verá os flamboyants sangrando no coração das primaveras, nem distinguirá o roxo dos ipês e o vermelho das rosas no canteiro das praças.

Não nadará em um riacho, nem sentirá o orvalho da grama molhada sob os pés descalços.

Não testemunhará a mudança das luas ou das estações; nem jogará futebol com outras crianças.

Mas também não se entristecerá com a classe dominante, aquela que aniquila fria e impunemente o amanhã de gerações inteiras.

Ele não ouvirá falar de negociatas escusas e nem terá o coração quebrado por algum amor de juventude.

Foi abandonado em um ponto de ônibus, como se fizesse parte de uma indesejada ninhada de gatos.

Ficou ali, tremendo de frio, na desesperança de que alguém passasse e se enchesse de compaixão, dando a essa tragédia urbana um final feliz.

Ah, menino de Brasília, a visão de seu corpinho dentro de uma caixa de papelão deveria aguçar o sentimento de culpa e fracasso de toda a humanidade.

Mas estamos preocupados demais com o vencimento de nossas promissórias e com a escolha do próximo colégio de nossos filhos nem sempre atentos.

Falhamos!

E você sucumbiu, desamparado, desnutrido e sozinho, conhecendo em suas primeiras e derradeiras horas, o quanto é bruto o coração dos homens.

Ao final desta crônica, é até provável que apareça alguém dizendo que 'foi melhor assim'.