Tuesday, March 8, 2022

O velho olhando o mar


(Para o Libinha)


É duro conviver com a degradação do corpo.

A lentidão dos movimentos.
A dor nas articulações.
A erosão da pele refletida no espelho quando vai fazer a barba.
A urina no chão.

A exacerbada dificuldade de amarrar os sapatos, que fez com que ele começasse a usar mocassins, que sempre detestou.
"É só enfiar o pé, como na vida", recita para uma plateia vazia.
Os filhos se foram e agora são só ele e ela, mais de sessenta anos depois. 

De vez em quando recebe a visita dos descendentes e é como se começasse o carnaval de Olinda num lugar muito distante de Pernambuco. 

Ele, que gosta de Mozart, Verdi e Puccini, e que murmura as cantilenas que entoava o seu pai, no tempo em que era menino. 

O pai -  que o deixou cedo demais -, fez com que ele fosse viver com um tio e costurasse um vazio ao bolso da camisa. 

Quando não se recorda de trechos das 'cantigas de não ninar' do seu pai, improvisa e preenche com palavras sem sentido.

E ri da falta de graça.

A varanda de frente para o Atlântico foi uma conquista que comprou a prestação, na planta, quando a cidade ainda era um segredo bem guardado.

Vai arrastando lembranças e culpas pelo apartamento como um prisioneiro que carrega uma bola de ferro atada ao tornozelo.

“A vida pesa.”


Atravessa o enorme corredor - que fica cada vez mais comprido - e sente a carga do acúmulo dos dias
Leva a sombra cambaleante para ver o mar que lambe as areias, onde a vizinha do prédio ao lado escreve com um ancinho, todas as manhãs, a saudação "bom dia".  

Protegido pela vidraça blindex, ele se senta na cadeira de cana-da-Índia e olha para a linha do horizonte tentando enxergar o portal de xangrilá, que nunca existiu, nem existirá...

E reafirma para si mesmo que a terra em que pisamos - onde ele jura ter visto um casal de refugiados haitianos copulando por volta do meio dia, no terraço do edifício adjacente, refletindo a pele cromada no absurdo do sol - é Sodoma e Gomorra.

"Sempre será."


Funcionário aposentado do Banco Brasil, ele faz todos os dias uma conta que não fecha.

Acompanha com o olhar o cargueiro levando petróleo em estado bruto, talvez, para o Uruguai.
Testemunha o transatlântico apinhado de turistas italianos, presumidamente bebendo champanhe no convés.

"La vita è bella! Prosecco para as massas.", decreta.

Sente súbita solidariedade com os garis que retiram algas e garrafas de matéria plástica com seus uniformes alaranjados, preparando a praia para os banhistas de amanhã.

"A vida é bruta."

E a dor é éter.

Emociona-se com a visão de uma estrela cadente se apagando no horizonte, feito uma brasa encarnada que se dilui numa bacia de água suja.

"A vida é tão rara", Lenine canta no rádio.


Passa por ele a lembrança do inverno na serra catarinense.
A alegria do nascimento do primeiro filho, uma menina.
A pancada do primeiro infarto dentro do box enfumaçado do banheiro, o zunido que ficou, como acontece quando o avião descende da altura de cruzeiro e a pressão tapa momentaneamente o buraco dos ouvidos.

Pensa na coleção de discos de ópera e na filha que mora no estrangeiro.

Acompanha a passagem de uma gaivota levando no bico a imagem de um gol de Mengálvio, que ele viu no Maracanã durante os doze meses que morou no Rio.
Pensa no choque que sentia, moço do interior, quando via as putas e travestis da Lapa em seu trattoir aos finais da tarde.

E no batuque que vinha do terreiro de umbanda a caminho do quartel.
A memória junta resíduos e acácias, que ele encosta em um canto do cérebro, na esperança de que algum vento os leve dali, deixando para trás somente o que lhe for perfume.

Começa a adormecer, a cabeça pesando, o queixo tocando a base do peito, como se o sono aliviasse as dores e dissipasse a certeza da morte, que um dia chegará.

Sonha momentaneamente com ilhas paradisíacas e chora com a imagem de policiais de coturnos pesados, pisando raivosos nas areias do balneário.

No instante seguinte, sorri de olhos fechados com a imagem do rosto de Pelé aos dezessete anos.
Franze a testa com uma lembrança inconclusa de sua mãe, que partiu ainda mais cedo que o pai.

Sente frio. O frio que sentem os órfãos.

E tudo vira breu.

Acorda escutando a voz do bisneto pedindo paçoca para a empregada na cozinha.

Sente-se liberto.

De súbito.

Um frevo de Capiba começa a tocar no seu coração.

É carnaval no sul do Brasil.