Thursday, February 4, 2021

Dueto



Ricas, lá em São Raimundo, eram as famílias que tinham geladeira, televisão e radiola (ou vitrola). Quem possuía um automóvel era considerado milionário. 

Os poucos mais afortunados ostentavam dentro de suas casas, além de liquidificadores e chuveiros elétricos Lorenzetti, os possantes três em um.
E o que era o três em um?
Tratava-se de uma maravilha híbrida da tecnologia, que poderia funcionar como rádio, toca-discos ou toca-fitas (cassete).
Dia desses me atrapalhei todo tentando explicar para a minha filha Clarice o que era um toca-fitas.
Nas manhãs de sábado, dia do faxinão, era comum as donas dessas casas ligarem o som no volume mais alto, perfumando o ar com os sucessos de Roberto Carlos, Jerry Adriani e Ronnie Von.
As ruas tinham nomes de pedras preciosas que jamais brilharam, empoeiradas por falta de calçamento. 
Na Topázio, onde cresci, eu não me recordo de um único vizinho que tivesse carro até a metade dos anos 1970.
Na Esmeralda havia alguns abastados, como o seu Edson Souto, sócio de um curtume, e que possuía uma caminhonete C-10. 
Na Granada, o pai de Cléber e Róbson Carequinha ostentava uma Brasília amarela. E o dono da mercearia da avenida Esmeralda tinha um Corcel II meio baleado.
Em 1976, papai comprou-nos um Volkswagen do ano 1966. Foi uma grande festa. 
Nós, que já tínhamos uma geladeira - que dava choque quando abríamos a porta - e uma tv que chuviscava e tinha uma daquelas telas de plástico em degradê, entramos para o seleto clube dos milionários são-raimundenses.
O fusca marcou o apogeu de uma era de grande prosperidade para a família. Eu e meu irmão passamos a calçar ki-chutes, ganhei uma calça UsTop e tive a promessa de uma monareta no Natal, o que - infelizmente - não se materializou. 
Seu Antônio juntava o salário de soldado da polícia militar ao dinheiro das vendas de roupas, que minha mãe comprava na rua 25 de março, em São Paulo, e ele vendia para as moças trabalhadoras na zona boêmia de Governador Valadares.
"Ninguém é melhor de paga do que as putas. Poucos são tão honestos quanto elas", filosofava, sob os olhares desconfiados de minha mãe, receosa de alguma permuta entre mascate e clientela.
Não chegamos a ter o tão cobiçado três em um do início da crônica, mas uma vitrola da marca Sonata - com direito a zumbido de caixa de marimbondo quando o disco rodava - daria um colorido muito especial aos nossos dias.
Logo de manhã, papai tomava banho e ligava a vitrola para se barbear. Ligava no limite, o que não era grande coisa, mas dava para se ouvir no portão.
Cascatinha e Inhana, Jararaca e Ratinho e Tonico e Tinoco só não eram maiores do que Agnaldo Timóteo, com quem meu velho formava uma dupla fazendo segunda voz. Ficava melhor do que Zezé de Camargo e Luciano. 
Seu Antônio morreria em janeiro de 2017, vítima de uma fibrose pulmonar. Apesar de ter nascido em Mutum, pediu para ser enterrado no cemitério Bosque da Esperança, que fica entre o aeroporto de Confins e a capital mineira.
Todas as vezes que vou a Belo Horizonte visito o túmulo de meu pai, o que acontece três, quatro vezes por ano. Chego, faço uma prece e vou embora. 
Na última visita, no entanto, algo curioso, quase sobrenatural, aconteceu.
Eu tenho o costume de ir de carro até o setor das Oliveiras, lugar que ele escolheu para descansar. A fileira de jazigos coincide com a presença de um frondoso pé de sibipiruna, o que facilita a localização.
O local fica no alto de um morro, um pouco depois do setor dos flamboyants e é possível avistá-lo logo no começo da subida. O rádio do carro estava sintonizado na Rádio Inconfidência e, tão logo curvei para acessar aquele quadrado habitado pela saudade, uma voz muito conhecida começou a entrar por meus ouvidos.

"Se algum dia
 À minha terra eu voltar
Quero encontrar
As mesmas coisas que deixei
Quando o trem parar na estação
Eu sentirei no coração
A alegria de chegar"

Foi muito para o meu coração. 
Não creio que Agnaldo Timóteo ainda toque no rádio, no meio das tardes de um novo milênio. Algo diferente conspirava ali.
Parei em frente ao pé de sibipiruna, que floria. 
Abri a porta do carro e aumentei o volume no máximo.
A música preencheu o ar.
Desabei.
E chorei feito o menino que um dia eu fui, enquanto Agnaldo Timóteo cantava para o meu pai se barbear e cantar junto.
Bem perto dali - eu sei -, sentado numa nuvem, o meu velho sorria e fazia a segunda voz.