Tuesday, November 19, 2019

As tigresas de Livingston



Lá em São Raimundo, onde vivi a mais feliz das infâncias, futebol era coisa de menino.
Menina brincava de casinha, boneca e outras coisas. A elas não era concedida a alegria de correr atrás de uma bola em um campinho de terra batida e viver a experiência de jogar uma pelada.
Eu não sabia que havia uma lei federal promulgada em 1941, que proibia as brasileiras de praticar o parnasiano bretão.
A lei enfatizava que as mulheres estavam proibidas de praticar qualquer esporte 'incompatível' com a natureza feminina. Machismo e atraso que, felizmente, ficaram para trás.
Em 1979, a aberração foi banida da legislação e o país pôde dar ao mundo uma atleta genial chamada Marta, aclamada e coroada como a rainha dos gramados, a versão feminina de Pelé.
O resto é história.
Quando cheguei aos Estados Unidos, em 1984, estranhei que o "soccer" era mais popular entre as mulheres.
Achava esquisito ver na televisão aquelas moças correndo atrás de uma bola. Com o passar do tempo, passei a assisti-las e admirá-las. Michelle Akers, Mia Hamm, Abby Wambach, Carli Lloyd, Alex Morgan e tantas outras me fizeram virar fã.
Minha filha Isabella nasceria em 2001 e Clarice em 2003. Ambas jogariam bola.
Livingston, a cidade que escolhemos para elas crescerem, possui um dos melhores sistemas de ensino público de New Jersey e participa das competições estaduais em todas as modalidades.
São conhecidas como as Tigresas, numa liga que tem também as Gatas, as Leoas, as Panteras e outras felinas.
Tudo é extremente organizado, dos uniformes de grife aos  gramados bem cuidados, com a participação de árbitros remunerados pela liga.
Durante vários anos, os meus domingos eram feitos de levá-las para disputar jogos em toda a região. Eu adorava. 
Acordávamos por volta das seis da manhã, elas se vestiam, tomavam café e iam dormindo dentro do carro até o local da partida.
Com a proximidade do inverno, era um sacrifício tentar driblar o frio, tantas vezes abaixo de zero. Mas valia a pena.
De início, tímido, acabei me tornando uma espécie de "cheerleader" das "tigresas", o que muito as envergonhava, admito sem me constranger.
Em uma partida disputada em Montclair, por exemplo, fui expulso por cobrar do árbitro - visivelmente ressaqueado naquela manhã de domingo, ele! -, proteção para as meninas de Livingston.
Elas estavam levando botinadas de adversárias muito maiores e ele parecia ter engolido o apito.
Outros pais aderiram. 
Ele quase apanhou. 
A partida foi interrompida sob ameaça de presença da polícia.
No dia seguinte eu receberia um email oficial da liga, informando que estava "suspenso" por duas rodadas e ainda levei uma bronca antológica das meninas. Fiquei muito envergonhado.
Levar Bebel e Cissa aos jogos de futebol foi um grande (e indizível) prazer. Mas elas agora cresceram e estão prestes a alçar voo em direção ao futuro, no processo de escolha da cidade e universidade onde irão viver e estudar, já a partir do ano que vem.
É assim que descubro que já não vivo a minha vida.
É como se eu tivesse desistido de mim e passado a caminhar dentro dos sapatos delas.
Abre-se um novo capítulo, e, daqueles dias felizes, ficaram apenas algumas coisas.
Ficaram as lembranças dos domingos espremidos entre abril e novembro.
Os uniformes alviverdes - em que já não cabem - com o sobrenome que eu lhes dei, às costas.
Dois pares de chuteiras amarelas e uma surrada bola de futebol, esquecidas no fundo da garagem.
Ficou também a implacável certeza de que a vida está passando depressa demais.

Monday, November 11, 2019

O Passageiro do silêncio



(Para José e Ana Camargos, em Havana)

Tudo se torna um desassossego. A comida fica ruim, o apetite some. Os ponteiros do relógios viram inimigos. Os dias não têm fim.
O local de trabalho se transforma num campo de concentração. A casa fica do tamanho do Maracanã. As coisas perdem o sentido. E reina a desordem. 
Não há lugar no mundo para quem se desacerta, para quem se perde no caminho por miudezas vãs.
A vida lhe ensinará a dura lição do que é a tristeza.
E apontará o canto sombrio em que você abraçará a solidão.
Mesmo que esteja rodeado por uma multidão, você se sentirá só. Miseravelmente só.
O sono evaporará e se mudará para outro código postal. E a cama se tornará imensa e fria, com seus lençóis de arame farpado e travesseiros de espinho.
Os déjà vus se amontoarão. 
O rosto dela se materializará na fumaça do cigarro ou no fundo de um copo de conhaque. Uma onipresença quase divina.
Assim como Einstein, que não imaginava uma bomba atômica na outra ponta de sua teoria, Deus - quando inventou o silêncio - também não sabia que o usariam para magoar.
O silêncio é nuclear.
E o mundo, 'vasto mundo', vai se comprimindo, as paredes se fechando, tirando-lhe também o ar. Ficará difícil respirar.
O sol não voltará a brilhar amanhã, dir-lhe-ão os seus botões.
Nem depois da manhã.
Nunca mais, nunca mais, nunca mais, concluirá você.
Como se, de repente, você se tornasse um cego, incapaz de ver a luz. Você vegetará perenemente num túnel sem fim. 
É como se o carro tivesse ficado sem gasolina no meio do nada. 
Faltará combustível para seguir adiante, e você temerá. 
A partir daqui, apenas a inércia, o carro parado e a contagem modorrenta dos dias que ainda lhe restam. E nada mais.
É como se você estivesse exilado num país estrangeiro e não dominasse a língua.
E todos à sua volta falassem aramaico.
E tudo trouxesse a lembrança dela.
Como o casal que entra no táxi; a moça que bebe um capuccino; o homem que conversa com seu uísque; a noite que cai sobre a cidade enchendo os bares de homens e mulheres no cio.
Os carros trafegam lentamente e só a lembrança dessa mulher lhe fará companhia. Dirigem-se todos para uma grande festa em homenagem a ela. 
Menos você.
Ela estará linda, com o vestido que você já despiu tantas vezes vindo de outras festas.
Ela, com o colar de pérolas que você presenteou. E os brincos tão sutis.
"Mudou o cabelo", você dirá.
"Remoçou".
Só você e a sua triste figura permanecerão inalterados.
O avião  cruza o céu em direção a Bruxelas, mas na sua cabeça ele voa para o domicílio aonde suas cartas não chegam e de onde seus telegramas são devolvidos.
O avião voa para Santiago ou Milão.
Para a velha Lisboa.
Ou para Madri.
Mas, para você, o destino é Istambul, quando na verdade é outro. Tão outro.
O avião cruza o céu em direção ao inferno. Com o piloto automático ativado. E você, cá de baixo, é seu único passageiro.

Monday, November 4, 2019

do outro lado

(para pasquale e juliana)


todos os meus vetores
estão voltados para 
a outra margem do Atlântico


são treze horas, 
mas em meus poros 
já são dezesseis


os ponteiros do relógio
na igreja da Sé
apontam para a minha saudade
na torre de Belém


bate na Mouraria
um coração
extraviado em São Paulo


e
ela respira em Lisboa
o ar que me falta
aqui.