Não voltarei a esse corpo
Não voltarei a esse corpo; e não sei
se aqueles que o vestiram antes e depois
de mim souberam nele o verdadeiro calor
e lhe conheceram os perigos, os labirintos,
as pequenas feridas escondidas. Não voltarei
provavelmente a sentir a respiração
palpitante desse corpo, desse lugar onde as ondas
rebentavam sempre crespas junto do peito, do meu peito
também, às vezes.
Uma noite outro corpo virá lembrar essa maresia,
o cheiro do alecrim bruscamente arrancado à falésia.
E eu ficarei de vigília para ter a certeza de quem me
recolheu,
porque os cheiros tornam os lugares parecidos, confundíveis.
Quando a manhã me deixar de novo sozinha no meu quarto
trocarei os lençóis da cama por outro, mais limpos.
Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi
Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi
talvez para sempre ― a casa e o cheiro dos livros,
a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,
camas desfeitas algures pela manhã,
o abrigo de um corpo agitado no seu sono. Guarda-o
serenamente e sem pressa, como eu nunca soube.
E protege-o de todos os invernos ― dos caminhos
de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
as feridas devagar, com as mãos e os lábios,
para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
a sua respiração cálida e ofegante
no compasso dos sonhos, que é onde esconde
os mais escondidos medos e anseios.
Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz
antes de adormecer. E depois aguarda que,
na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te,
ainda que não te tenha revelado uma só vez o que queria.
Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul
que os dias trazem à casa quando são tranquilos.
E nada lhe peças de manhã ― as manhãs pertencem-lhe;
deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
atravessa a rua enquanto ainda houver sol. E assim
haverá sempre sol e para sempre o terás,
como para sempre o terei perdido eu, subitamente,
por assim não ter feito.
16 comments:
foi doendo assim como se eu corresse em sentido anti horário e chegasse não ao meu nascimento, mas à minha morte.
poemas de gritar e calar tudo.
beijos.
maria do rosário pedreira me deixa completamente estupefato.
ela escreve como mulher que não tem a menor intenção de não se mostrar mulher, escreve com sentimentos e de uma maneira muito verdadeira.
com ela, não tem truque.
é sentimento e palavra fundidos numa coisa só.
amo os textos dela, luciana.
sou grande fã.
beijão do
r.
muito bonitos, muito sentidos...
eu não conhecia!
beijão
:)
Roberto,
A poesia de Maria do Rosário Pedreira faz-me sentir sem fôlego.
A sua poesia é trajada por palavras sussurrantes, segredadas em confidências frágeis e, delicadas.
O "Não voltarei a esse corpo" é uma melodiosa melodia que entorpeça os meus sentidos, semelhantemente.
Ana
ana,
o bom poeta, o bom escritor, é o que causa na gente o que maria do rosário pedreira causa em você.
eu adoro os versos dela.
acho-os verdadeiros, humanos, vinho de boa pipa.
abração do
roberto.
dani,
esse é um dos papéis que a internet cumpre tão bem: servir de vitrine para que olhares interessados vejam o que merece ser visto e apreciado.
evoé!
Não a conhecia, Beto...Mas haverei de conhecer mais, porque me falou profundamente. E pareço uma louca ao ler poemas dos quais gosto. Fico como num labirinto de Borges, voltando, voltando...
Obrigada por apresentá-la. Tornei-me já uma fã. Sim, como você não gostaria? Você também é assim: fala com a mais profunda verdade de sua alma.
beijos,
taninha,
eu tinha certeza mais do que absoluta de que cê gostaria fda maria do rosário.
é verdadeira a literatura que ela faz, e o faz de uma forma muito corajosa.
hoje em dia, a maioreia dos escritores se encastela, joga os dardos (e os dados) e esconde a mão.
beijão do
r.
Recuerdo aún la primera vez que leí a Maria do Rosário Pedreira. Fue aquí, Roberto, en esta lírica casa tuya en el aire donde vengo a nutrirme de poesía, de hermosura, de belleza. Hoy, que después del descanso veraniego vuelvo aquí, y me llevo, de nuevo, impregnados los poemas... para leerlos, releerlos y dejarlos que resuenen en mí, me habiten y revoloteen con sus alas azules alrededor de mí. ¡Cómo disfruto viniendo aquí! Un abrazo grande, grande, y, como siempre, añil, Roberto.
Así comenzaba el poema de Maria:
Se terminar este poema, partirás. Depois da/mordedura vã do meu silêncio e das pedras/que te atirei ao coração, a poesia é a última/
coincidência que nos une. Enquanto escrevo/este poema, a mesma neblina que impede a/memória límpida dos sonhos e confunde os/navios ao retalharem um mar desconhecido...
Y así empecé yo a traducirlo:
"Al final de este poema, partirás. Después de la mordedura vana de mi silencio y de las piedras que te he arrojado al corazón, la poesía es la última coincidencia que nos une. Al escribir este poema, la misma neblina que impide la memoria límpida de los sueños y confunde los navíos llevándolos a un mar desconocido".
Y así la poesía fue, mi querido Roberto, la primera coincidencia que nos unió. Y aquí seguimos.
É uma poesia "sólida" onde a identidade se derrama nos gestos quotidianos.
Sobressai a solidão e um forte sentido do Feminino.
Belíssima escolha!
Encantado....
Olá, Roberto
muito bonitos e profundos os poemas da Maria.
Sabe, me deram a impressão de uma entrega, mas não uma entrega fatalista e sim uma entrega bem mais profunda
Parabéns pela escolha
grande abraço
mulher de la mancha,
veja que bonito esse papel que a poesia exerce entre as pessoas deste mundo.
a poesia é fator de união entre iguais.
isto é muito bonito.
bom domingo pra você, aí, do lado de cá das águas, os olhos postos em tânger.
beijão do
roberto.
vais,
acho que este é o grande truque: a ausência de um.
verdadeiro, o preto no branco.
ácho que a maior virtude dos textos de maria do rosário residem nesta sofisticação: a simplicidade.
grande abraço do
roberto.
encantamento, também do lado de cá, tertúlias.
lídia,
maria do rosário pedreira escreve de um jeito que chega direto ao alvo.
palavras verdadeiras não saem fazendo curvas,.
abração do
roberto.
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