José Roque sofria de vitiligo e as manchas brancas já tinham consumidos as mãos morenas, espalhando-se pelos cotovelos e pela parte de inferior do pescoço, o que dava-lhe um aspecto de gato malhado, destes de rua.
Andava sempre arrumadinho, sapatos lustrados, cabelo penteado de lado e engomado com loção Trim.
Ele não era, definitivamente, um Zé qualquer.
A Venda do Zé Roque ocupava toda a parte da frente da construção, uma casa larga pintada de amarelo, com telhas cumbucas esparramadas como num acento circunflexo. Na parte de trás vivia uma viúva e seus filhos já graúdos, todos imprestáveis.
Duas portas de madeira, grossas, davam acesso para quem vinha da rua.
Ao lado de uma destas portas tinha um galinheiro onde ele, aos fins de semana, expunha garnizés e galinhas caipiras.
Na parede tinha um cartaz de propaganda dos cigarros Hollywood e a frase "Ao Sucesso". E uma bexiga de salame do tamanho de um extintor de incêndio.
O balcão de quase cinco metros de largura tinha um vitrine e guardava tesouros: marta-rochas, pães de sal, tatu, jacaré, sovado e doce, além de tarecos, bolos-estrela e de fubá, biscoitos de polvilho e quebra-quebra, e brevidades.
Para os que bebiam uma branquinha, havia sempre um torresmo, um chouriço de sangue, uma carne de panela ou um pedaço de dobradinha, que eram para 'tirar o gosto'. Atrás da porta do lado direito era o ofertório, onde era despejada a parte “do santo”.
Em cima do balcão ficava uma balança Filizzola e pesos de diferentes tamanhos. E folhas de um papel pardo, que o Zé usava para embrulhar as compras.
Na prateleira atrás do balcão ficavam garrafas de conhaque de alcatrão de São João da Barra, Jurubeba Leão do Norte, cachaça das marcas Praianinha e Tatuzinho, cera Parquetina para lustrar o assoalho, água sanitária Globo e álcool.
Em cima do balcão - em forma de trapézio - havia um varal onde ele dependurava linguiças defumadas.
Nos sacos de estopa - ou algodão - colocados em um dos cantos da venda, eram expostos os grãos da casa, produção de agricultores ribeirinhos: milho, feijão, arroz, canjiquinha, fubá e açúcar.
Zé Roque tinha também fumo de rolo, palha de milho para cigarro e canivete com cabo de osso ou de chifre de boi.
Num gavetão do lado esquerdo do balcão ele estocava pedras de naftalina para combater traças, latas de creolina para desinfetar ferida de animais e tabletes de anilina, que as lavadeiras usavam para clarear as roupas.
Na venda havia ainda latinhas de pomada minâncora (uma maravilha no combate da velha sudorese, o conhecido "cecê"), polvilho antisséptico Granado (muito bom para combater chulé), talcos de três qualidades, sabonetes Lux e Gessy.
Andava sempre arrumadinho, sapatos lustrados, cabelo penteado de lado e engomado com loção Trim.
Ele não era, definitivamente, um Zé qualquer.
A Venda do Zé Roque ocupava toda a parte da frente da construção, uma casa larga pintada de amarelo, com telhas cumbucas esparramadas como num acento circunflexo. Na parte de trás vivia uma viúva e seus filhos já graúdos, todos imprestáveis.
Duas portas de madeira, grossas, davam acesso para quem vinha da rua.
Ao lado de uma destas portas tinha um galinheiro onde ele, aos fins de semana, expunha garnizés e galinhas caipiras.
Na parede tinha um cartaz de propaganda dos cigarros Hollywood e a frase "Ao Sucesso". E uma bexiga de salame do tamanho de um extintor de incêndio.
O balcão de quase cinco metros de largura tinha um vitrine e guardava tesouros: marta-rochas, pães de sal, tatu, jacaré, sovado e doce, além de tarecos, bolos-estrela e de fubá, biscoitos de polvilho e quebra-quebra, e brevidades.
Para os que bebiam uma branquinha, havia sempre um torresmo, um chouriço de sangue, uma carne de panela ou um pedaço de dobradinha, que eram para 'tirar o gosto'. Atrás da porta do lado direito era o ofertório, onde era despejada a parte “do santo”.
Em cima do balcão ficava uma balança Filizzola e pesos de diferentes tamanhos. E folhas de um papel pardo, que o Zé usava para embrulhar as compras.
Na prateleira atrás do balcão ficavam garrafas de conhaque de alcatrão de São João da Barra, Jurubeba Leão do Norte, cachaça das marcas Praianinha e Tatuzinho, cera Parquetina para lustrar o assoalho, água sanitária Globo e álcool.
Em cima do balcão - em forma de trapézio - havia um varal onde ele dependurava linguiças defumadas.
Nos sacos de estopa - ou algodão - colocados em um dos cantos da venda, eram expostos os grãos da casa, produção de agricultores ribeirinhos: milho, feijão, arroz, canjiquinha, fubá e açúcar.
Zé Roque tinha também fumo de rolo, palha de milho para cigarro e canivete com cabo de osso ou de chifre de boi.
Num gavetão do lado esquerdo do balcão ele estocava pedras de naftalina para combater traças, latas de creolina para desinfetar ferida de animais e tabletes de anilina, que as lavadeiras usavam para clarear as roupas.
Na venda havia ainda latinhas de pomada minâncora (uma maravilha no combate da velha sudorese, o conhecido "cecê"), polvilho antisséptico Granado (muito bom para combater chulé), talcos de três qualidades, sabonetes Lux e Gessy.
Para curar as dores do mundo ele tinha comprimidos de Cibalena, Neovalgina, Melhoral, Sonrizal, pílulas de Lussen e Regulador Xavier.
Zé Roque oferecia Neocid para exterminar piolhos e espirais e Detefon para espantar pernilongos. E, claro, bombinhas flit, artesanais, feitas de lata, como os carrinhos – brinquedos dos meninos – e seus pneus recortados de velhas sandálias havaianas.
De lata e artesanais também eram as lamparinas, os lampiões e os cortadores de feijão.
Para as donas de casa ele tinha vassoura de piaçava e espanador de penas.
Para outros fins ele tinha esteiras feitas de tabuá e varas de pescar, de bambu e ubá.
Tinha anzol, chumbada e linha de pescar e de costurar. E chumbinho para as espingardas de ar-comprimido, usados no caçar.
Num canto, à esquerda da venda, Zé Roque mantinha uma espécie de montra, onde ele expunha tomates, cenouras, laranjas, bananas, legumes quase sempre murchos e mosquitinhos.
E duas bacias de água sempre clarinha onde nadavam molhos de coentros, salsinhas, cebolinha, alface e couve.
Quem tinha dinheiro, comprava. Quem não tinha, comprava também.
Zé Roque anotava tudo na sagrada caderneta, um caderno de capa dura em que a despesa era anotada com honestidade, tintim por tintim.
E ninguém precisava assinar nada, pois desconfiança e desonestidade ainda não havia nascido.
Antes dos cartões de crédito existiu a caderneta.
E o fio do bigode, garantia de pagamento de todo homem de bem.
A venda do Zé Roque viria a ser o primeiro shopping Center de minha vida.
Zé Roque oferecia Neocid para exterminar piolhos e espirais e Detefon para espantar pernilongos. E, claro, bombinhas flit, artesanais, feitas de lata, como os carrinhos – brinquedos dos meninos – e seus pneus recortados de velhas sandálias havaianas.
De lata e artesanais também eram as lamparinas, os lampiões e os cortadores de feijão.
Para as donas de casa ele tinha vassoura de piaçava e espanador de penas.
Para outros fins ele tinha esteiras feitas de tabuá e varas de pescar, de bambu e ubá.
Tinha anzol, chumbada e linha de pescar e de costurar. E chumbinho para as espingardas de ar-comprimido, usados no caçar.
Num canto, à esquerda da venda, Zé Roque mantinha uma espécie de montra, onde ele expunha tomates, cenouras, laranjas, bananas, legumes quase sempre murchos e mosquitinhos.
E duas bacias de água sempre clarinha onde nadavam molhos de coentros, salsinhas, cebolinha, alface e couve.
Quem tinha dinheiro, comprava. Quem não tinha, comprava também.
Zé Roque anotava tudo na sagrada caderneta, um caderno de capa dura em que a despesa era anotada com honestidade, tintim por tintim.
E ninguém precisava assinar nada, pois desconfiança e desonestidade ainda não havia nascido.
Antes dos cartões de crédito existiu a caderneta.
E o fio do bigode, garantia de pagamento de todo homem de bem.
A venda do Zé Roque viria a ser o primeiro shopping Center de minha vida.
O primeiro e derradeiro.
25 comments:
Uno de los mejores centros comerciales, sin duda. No me extraña que sea el único centro comercial de tu vida. Tu centro comercial me recuerda a los ultramarinos de mi infancia... esas tiendas donde se compraba de todo hasta que empezaron a hacer irrupción en nuestras vidas los supermercados y luego los hipermercados y luego los mega centros comerciales al lado de los hipermercados. Por suerte, en los pueblos aún perdura alguno de esos antiguos centros comerciales como el que a ti tanto te gusta.
Un abrazo grande y mis añiles para ti, Roberto.
Beto
Delícia de lembrança e crônica!
Só faltou a Tubaína pendurada na Cardineta...!
Beijito
P: Só quem nasceu no interior emociona se com a experiência vivida..Sôdades de Uchôa(terra quente e de cor vermelha)
Que delícia! Rindo muito e lembrando da minha infância querida.
Aposto que ele tinha também sal amoníaco(minha mãe e a comadre dela me mandavam buscar na venda) para fazer rosquinha.
Beijo, Roberto! Amei!
Nossa me vi em frente da "vendinha do Sr. Geraldo", que por conta de uns playboys mudaram o nome (e pegou)pARA Mac Gerald(imitação paraguaia de Mac Donald). Mac Gerald.
Onde se acha alem de tudo isso do Zé, batom, esmalte e umas sandalinhas de verão.
Adorei.
Beijos
robertílimo,
estas viagens aos coração do tempo atingem-nos como flechas. o saudosismo e a nostalgia são a ponte entre a renovação e o que perdemos e justamente é sobre o seu tabuleiro invisível que o filho de chronos deixa de ser pretérito, presente ou futuro - é apenas memória. o que somos para além dela?
um abraço, meu querido amigo!
índigo,
eu tenho esta alma de mercado destinado a pessoas de baixa renda.
quando vou a belo horizonte passo dias a fio dentro do mercado central, uma espécie de primeira maravilha criada pelo homem.
paso dias inteiros vendo o movimento, bebendo cerveja, comento petiscos politicamente incorretos e conversando com adoráveis estranhos.
beijão grande.
em anil.
r.
mariângela, em minas não tem tubaína...rs
mas tem o mate-couro, o melhor de todos os guaranás.
é sério: se puder, experimente. é menos doce, menos xaroposo...
acho que cê vai gostar.
beijão,
r.
adriana,
mas é óbvio que tinha... e tinha aquele baleiro que rodava, cheio de balas chita, caramelos embaré, batons e "pastilha forte"...
beijão,
r.
band,
gostei demais do mac gerald...
tava me lembrando de uma canção de um amigo que dá a saber que, quem nasce zé, não morre johnny.
beijão,
r.
eurico, euriquíssimo...
eu só me encontro quando me perco dentro de mim mesmo, nestas viagens curtas como coice de porco...rs
continuo sendo aquele cão maluquinho tentando morder o próprio rabo, dando voltas em torno de mim...
tonteia, mas é bom. rs
saudades de ti, meu amigo querido.
abração do
r.
Oh, Roberto, moço simpático das Gerais! (momento Disapel - parte 2)
Adorei, menino! Esse texto me fez lembrar de algumas coisas...
Zé Roque do tempo das cadernetas! Pois acredite em mim, Roberto, aqui em Porto Alegre em pleno bairro Auxiliadora ainda tem uma mercearia, que hoje em dia chamam de "mini mercado" de uns irmãos alemães que vendem à caderneta. Pode? Mas espertos são, vendem apenas para as senhorinhas que rezam o terço nas quartas-feiras na tradicional paróquia do bairro. Bobos não, né?
Beijão para ti, um excelente fim de semana!
Ah! Sobre a resposta ao comentário anterior... sei lá, acho que gente da pior espécie nem são aqueles que não sabem perder, mas os que não sabem tentar. Se foi esse o enfoque que você deu. Será que entendi?...
Ah! E quanto a grisalho, pouco cabelo, essas coisas... acho que isso é apenas questão de você procurar um novo cabeleireiro, tem uma estética ótima aqui em POA, mas não faz na caderneta :)
O importante é a alma, e você parece menino que fura bolo de mãe e esconde o dedo, é isso? Tem muito garoto por aí com alma de velho ranzinza, isso sim, não tem conserto, muito menos carisma.
Inté!
Espero que tenha ido meu comentário... sei lá, tive até que trocar de login... depois venho ver se deu. Abração!
ana cecília,
o ex-moço aqui (toda vez que alguém me chama de jovem fico achando que quer me vender alguma coisa... um par de quixute... algo assim) anda muito ranzinza.
aqui em casa - há mais de um ano - eu vivo num bunker, ermitão isolado do mundo, criando fungos entre as unhas e em volta do meu coração...
mas eu me prometi que semana que vem eu saio daqui, me barbeio, corto no cabelo e na carne e volto a ser gente de uma vez por todas.
eu me cumpro sempre. sempre fui moço de palavra.
com um pouquinho de sorte, fujo do frio com o pessoal daqui de casa e vou pra santa catarina pegar um bocadinho de sol aí bem pertinho e, como vocês aí, veraneantes que estão, veranearei também...
dá uma olhada nesta mercearia que existe lá nas gerais, em itabirito, pertim de bh... bonitinha demais... é a mercearia da foto na crônica:
http://www.youtube.com/watch?v=R6yMSogCgkg
beijão, moça.
r.
deu certinho, cecília.
taí!
beijão,
r.
Beto, você flecha a gente.
Beijos e saudades de te ler mais
Taninha,
quando cê não passa por aqui fico achando que fiz alguma coisa horrível, do tipo atirar pedras na cruz.
saudades de você, maninha.
beijão,
r.
Uma lindeza, Roberto!
Passagem direta pra minha infância,
familiares personagens relembrei...
Abraço daqui!
Marlene,
acho que no interior ainda é assim. Aquele interiorzão sertanejo que, apesar de certas novidades eletrônicas (caixa registradora, por exemplo) continua do mesmíssimo jeito.
fico feliz que cê tenha gostado.
abração do
roberto.
Fala moço!
Roberto, mas olha que eu até há pouco tempo tinha umas congas da Mulher Maravilha para vender, mas acho que você não ia gostar não! Lembra das congas? "é macia e confortável..."
Muito legal o vídeo do link, conheço Itabirito, fui no carnaval de 2000 por lá, chegamos da madrugada para tentar pouso, coisa de gaúcho desavisado. Só conseguimos num hotel de beira de estrada próximo à Ouro Preto... saí de lá que nem uma lua, cheia de crateras de mosquito, aff!
Mas por que você não aproveita o teu tempo cativo no bunker e escreve "histórias de bunker" ou algo assim, já que a vida é breve, como dizia Facundo Cabral: "gracias a la vida que ha me dado tanto". Tira proveito, né?
Ou (des)bankeia, se é que existe essa palavra hehe
Ah! Por aqui o veraneio tá meio feio... eu ia ir nesse fim de semana para Torres, praia aqui do RS próximo a SC, mas a Lelena me passou uma mensagem no facebook que estava usando galocha e capa de chuva... adiei. E você não vai voltar para o "fakebook"? Essa época é divertida, tem a sessão matinée de sunga-biquine... (sem comentários):)
Tu é uma figura, moço simpático!
Bom ter voltado por aqui.
Uma excelente semana!
Ops! Corrigindo... "gracias a la vida" é da chilena Violeta Parra.
Beijão!
Uma sentimental viagem ao passado. Bob, as suas memórias são as nossas memórias. Em frente à minha casa, existia a mercearia de seu Luís Bezerril, o Zé Roque da rua Santo Antônio. Vendia também de tudo. Lembro, ainda, da Seiva de Alfazema, da brilhantina Zezé e do drops Dulcora para ficar nestes exemplos. Parabéns pelo delicioso texto com gosto de framboesa.
paulo poeta, ando que nem o jessier quirino, paradiando manuel bandeira... "vou-me embora pro passado"... rs
saudades de te ler por aqui, PP.
abração do
ro.
cecilia,
o conga é, segundo a ciência, o habitat natural do chulé. é lá que o chulé se reproduz em cativeiro... é no conga... pode ser pé de princesa que, calçou conga, fica enchulezado.
que pena que sua passagem por itabirito não deixou saudades. conheço as muriçocas da região. já vi mosquito do tamanho de um conga... rs
cê sabia que em itabirito tem o melhor pastel de angu deste mundo? e tem pastel de angu até de umbigo de bananeira...
quanto à sua ida a torres, o convite amigo deve se estender até o final do verão brasileiro, que é longo. não é como aqui que, no ano passado, caiu numa quarta-feira.
beijão,
r.
Texto gostoso de ler. Fui lendo e imaginando todas essas coisas da venda do Zé.
Vi uma dessas vendas em uma cidadezinha de Minas não faz muito tempo. Fiquei lá curiosando, admirando o tanto de quinquilharias, coisas que eu nem imaginava que ainda existiam.
Um abraço.
sônia,
espia esse link aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=R6yMSogCgkg
eu acho demais estes lugares, estas "ilhas" que sobreviveram ao tsunami da moderna idade.
beijão,
r.
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