O colchão ardia em chamas. O teto do quarto era a boca de um vulcão.
Ardia a carne e a consciência, como se alguém tivesse jogado um punhado
de sal em minhas feridas mais profundas.
Ou pólvora, já não me lembro bem.
As coisas nem sempre correm como queremos, eu sei.
E, na contramão de um desejo inocente - que deveria ser o prêmio de
todo trabalhador após um dia de labuta, o descanso -, passei a noite
inteira de mãos dadas com a insônia.
Lá pelas quatro da manhã, eu tomei coragem, desci as escadas e
comecei a trabalhar.
Meu expediente, nesta terça-feira, teve início às 4:30 da manhã e seria
natural que eu adiantasse meus textos e que me colocasse numa posição de
vantagem quando a cidade acordasse e o batente no jornal tivesse o seu
início.
Os dedos furiosos correram pela extensão do teclado, é verdade, mas não
chegaram a lugar algum.
Eu estava visivelmente fora do meu elemento.
Eu não me achava, apesar de voluntarioso.
E, apesar de querer andar para a frente, uma força maior me atava
ao chão.
Eu apenas me arrastava.
Esta era para ser uma terça-feira gloriosa, pela qual há muito eu esperava.
Afinal, seria hoje que a Gangue dos Oito anunciaria o projeto de lei da
Reforma Migratória que libertaria 11 milhões de trabalhadores, devolvendo-lhes
a dignidade, o direito sagrado de ir e vir.
Pensei em milhões de pessoas que poderiam, finalmente, rever os
seus respectivos países de origem.
Pessoas que tiveram na distância uma armadilha perigosa, que
destruiu seus casamentos e arruinou seus amores.
Pessoas que não viram os filhos crescerem.
Que não os viram marcar um gol no campeonato da escola ou deu-lhes uma
abraço na festa de formatura.
Pessoas que perderam cerimônias de casamento de irmãos, irmãs, filhos e amigos
de infância.
E que perderam a festa de debutante da própria filha.
Pessoas que não puderam estar presentes a aniversários e batizados de
entes queridos.
Pessoas que perderam entes queridos.
Pessoas que encontrarão buracos na alma, quando retornarem a seus
lugares de nascimento.
Mas que estarão felizes, de alguma forma, sentindo-se aliviados
e com a certeza do dever cumprido.
Ao invés de celebrar com estes e com aqueles, ir às ruas numa grande
celebração, recolho-me ao luto.
As imagens da televisão não deixam dúvida: o demônio anda à solta e
existem homens ensandecidos e dispostos a infligir indescritível
dor em inocentes.
A cartolina na foto do jornal em que o menino Martin Richard - uma
das 3 vítimas fatais da barbárie da maratona de Boston - pede ao mundo que
não machuque mais as pessoas, passa a ser um documento que atesta o
fracasso da raça humana.
Esta cartolina será, para sempre, um quadro dolorido pendurado na parede
de nossas consciências.
Onde alguns conseguem ler a palavra paz, outros leem barbárie.
E qualquer dia destes terá sido tarde demais.
.
36 comments:
Muito triste, Roberto! Ontem passei, também, o dia com o coração apertado.. Paira no ar a nuvem espessa da desesperança, descrença e perplexidade. Por que matar? Pra quê? Por quem? Por Alá ou pelo demônio que vive na alma desses insanos? Por terras, posses, religiões e poderes? ,Pra lavar a honra de suas crendices e ideais com sangue de inocentes? Aliás, pra que respostas para fatos inadmissiveis e inconcebiveis como esse? Barbárie se não explica. Se chora.
Beijos,
Um "documento que atesta o fracasso da raça humana"... é isso mesmo.
E os olhos desse menino? Um mar de tristeza...
O bicho homem pode ser perverso... cada vez me assusto mais com até onde ele pode ir.
Mas a questão é que ele, o bicho homem, somos nós... Se cada um fosse capaz de encarar o mal dentro de si penso que era maior a chance de vivermos em um mundo menos sombrio...
Bjo manim
Diubs
Texto lindo de doer , amigo Roberto! De doer bem no fundo da alma, naquele recôndito que, muita vez, até esquecemos que existe...
E mais palavras são desnecesárias: você disse tudo!
Abraço bem apertado
Roberto,
Intenso e, dolorosamente triste.
A minha alma estendeu-se de joelhos quando observei pela primeira vez a catástrofe, a segunda vez quando observei o rosto de Martin Richard como uma das três vitimas mortais, a terceira vez quando li a sua crónica e, observei de novo o rosto do menino pedindo ao mundo o seu desejo.
Sinto-me devoluta! Nauseada e, perturbada! Confusa! Pequenina, e, perdida perante a insânia na crença na raça humana.
Ana
Sabe a esperança? Eu ainda tenho. Nada de lógico, porque pela lógica não dá para ter esperança. Eu me livro da lógica e espero um milagre. E, por mais insensato que pareça, acredito no ser humano. Da sua crônica fica a constatação do quanto você sabe dar vida às coisas. Vida não: alma! E isso eu amo.
Beijos,
Así es. Demasiado tarde. Y el horror... de que así sea. Un abrazo, Roberto.
Que dor mais bem descrita, Roberto. Se por aí temos estas, aqui as barbáries são outras, mas são. Que triste. Que difícil acreditar na paz.
Abraço, amigo.
Um acontecimento sem explicação, assim como qualquer ataque que envolva vidas inocentes...
Junte-se a isso os envelopes cheios de venenos.
O medo e a tristeza são indizíveis...
Abços
Rossana Masiero
Beto
Barbárie ... Meus sentimentos às familias... Maratona da morte... sem perdão...
Meus sentimentos ao povo americano
bjs
"Esta cartolina será, para sempre, um quadro dolorido pendurado na parede de nossas consciências. Onde alguns conseguem ler a palavra paz, outros leem barbárie."
Amém Roberto! Tarde demais...infelizmente. Colocaria aqui o termo ultrajante que traduzida do grego é uma expressão forte, denotando fúria com que homens atacam homens como furioso animal selvagem. Carregamos o peso do remorso quando sentimos essa impotência desse acontecimento. John G. Whittier disse: "De todas as palavras tristes saídas da língua ou da pena, as mais tristes são:'Poderia ter sido diferente!'" Me junto a você, recolho-me ao luto.
Síl
são tantas tragédias a nos deixar frente a frente com o insuportável.. para vermos que o insuportável vai se tornando suportável e que ainda é insuficiente para o basta. muito triste.
beijão.
tá phoda broda, assim caminha a humanidade?
abraço
A paz esta longe do mundo...alis penso que nunca existiu essa paz...
Um beijo
↓
"Trans...ferir é adiar a PAZ!"
:o)
Bob, não esqueçamos as chacinas diárias no nosso Brasil e os carros-bomba no Oriente Médio. A morte por atacado. Crônica pertinente pela paz em todo o mundo. Abraço do tamanho das Minas Gerais.
A humanidade é desumana, dissera o poeta! Me calo...
Mais uma crônica pintada com as tintas de quem sabe, numa hora triste do mundo...
Meu abraço e admiração!!!
corrigindo: Barbárie não se explica. Se chora.
Deus, esse menininho tá sem dente como meu Hebinho e eu meio sem esperança como muitas pessoas. às vezes fico pensando se o mundo tá realmente pior ou se sou que sou uma inadaptada. Essas barbáries doem demais na gente.
Seu texto é muito comovente. Beijos!
esse estágio de menino que ganhou o dente e perdeu o dente é um estágio muito bonito na vida e toda criança.
eles ficam engraçados, mas ostentando ainda a pureza que os meninos e meninos desta idade tem.
virou anjo, Adri.
continuou anjo.
beijão,
r.
barbárie a gente chora, sim, inês.
mas que tem explicação, tem.
beijão,
r.
da rama,
humanidade mais desumana, sim.
vivesse o mundo sob o fundamentos dos seus olhos....
ah, vivesse o mundo...
abração do
r.
Paulo Poeta,
a idéia é esta, sim.
vastidão.
violência, qualquer tipo de violência, deveria desaparecer da face da terra.
eu sei, utopia minha...
mas não custa sonhar.
abração do
r.
tonho,
se adiássemos, mas conseguíssimos...
ah, quem nos dera...
abração,
r.
bandys,
a paz do indivíduo é a paz do mundo, ja dizia a canção.
beijão do
r.
broad zé de assis,
assim rasteja a humanidade.
tá osso.
abração.,
r.
Luciana,
é incrível a resistência do ser humano. nesta constant superação do insuperável.
me chocam ainda mais as justificativas...
beijo grande do
Roberto.
o humano
nestes extremos
nos desumaniza
é para chorar sim Beto
e muito
abs
A vida parece ser tão inútil para alguns. Além da perplexidade murmuro baixinho: por quê (sabes me responder, Roberto)?
Fecho os olhos e sua frase final, ecoa em todo o meu ser: "E qualquer dia destes terá sido tarde demais"!
venho aprendendo que não posso mudar o mundo, até porque cada um, a seu jeito, tem uma forma de o querer/ ser que é apenas sua. mas há algo de que não abdico: de lhe gritar, puxar-lhe as orelhas, para, no instante seguinte, o agarrar no peito e dar-lhe um beijo nos lábios. porque acredito nele ou deixaria de crer em mim. mesmo que receie que alguns dos seus dias sejam já tarde de mais, até porque se esses sim, outros ainda não nasceram sequer.
um abraço, robertílimo, ainda incrédulo com nova série do que de pior o homem sabe ser, aqui em contraponto com o encantamento que é ler-te para lá das palavras - sim, porque a tua escrita está sempre a montante do dizer.
(da memória salta a imagem do homem com suas pernas amputadas pelo artefato, aquele pedaço enorme da tibia exposta, apontanto para o chão)
sim, poderia ter sido diferente, silvia.
deveria ter sido.
.
beijão.
r.
mariângela,
ainda bem que não somos postes.
que não somos tijolos.
não somos pedra.
enquanto houver quem sinta pesar, quem chore, existe esperança.
beijão,
r.
rossana,
estamos vivendo num lugar doido demais.
a religião é uma das piores invenções do homem.
atrofiaram a fé.
estou (verdadeiramente) tão desgostoso, sabia?
abração do
r.
tati,
barbárie é uma palavra armada até os dentes, já percebeu?
nos protegemos dela com arame farpado, em ingles, arame barbado.
beijo beijo,
r.
tarde e nunca, indigo, são irmãos.
percebes?
beijão,
r.
As dores do mundo são também a nossa dor. E como dói...
bj
não me canso de dizer, Sonia, que a paz do indivíduo é a paz do mundo.
temos que nos pacificar, antes.
beijão,
r.
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