Tuesday, April 14, 2015

O tanque dos tubarões

Mal coloco os pés na terra e atravesso o portão que separa o cais de uma feira de artesanato adjacente à rua, eu tenho uma sensação que já tive antes. Não é uma sensação boa.
Por alguns longos minutos sinto-me como um pedaço de carne ainda sangrando, atirado contra a vontade em um tanque cheio de tubarões.
Sinto as mandíbulas traduzidas naqueles dedos negros, suados, puxando-me pelo braço de turista em plenas 8 horas da manhã.
- Quer um taxi?
- Posso trançar seus cabelos?
- Eu levo você aonde quiser, diz um outro.
- Que tal um passeio de charrete?
Olho para o animal esquálido e confiro o visual de seu dono, um homem igualmente magro e cabelos rastafari socados dentro de um surrado boné amarelo, verde e vermelho, feito de crochê.
Não respondo positivamente a nenhum deles e caminho com passos calculadamente firmes, os olhos postos no ponto mais distante dali.  Meus ouvidos estão temporariamente surdos. Precio sumir rapidamente.
A fúria dos ambulantes e prestadores de serviços informais daquele lugar é assustadora.
São homens e mulheres que sabem que precisam agarrar sua presa tão logo ela desce no navio.
Eles têm cerca de cinco minutos para convencer um estranho a ir com eles a algum lugar ou lhes vender algo, geralmente bugingangas com as cores da bandeira do país. São peixes esculpidos em madeira, cinzeiros de casca de coco, aquarelas com fins de tarde em que o mar engole o sol ou camisetas de malha ruim.
Nas feições embrutecidas daquelas pessoas há uma dureza que eu ainda não havia experimentado nas outras vezes que estive no Caribe. 
Nelas reside uma aspereza, um olhar duro, provavelmente em virtude da vida que levam, intuí. 
Ali não há aquele carinho - talvez fingido, meio 'prostituto' - pelos turistas despejados  pelos transatlânticos como em outros lugares.
As Bahamas são um arquipélago com cerca de 700 ilhas, conta-me Lenny, um negrinho atarracado, gorducho, capaz de momentos engraçados, apesar do seu olhar desconfiado.
Lenny é capitão e instrutor de mergulho do catamarã que nos levará a uma região mais remota, localizada a algumas milhas de distância do Atlantis, o opoluento complexo hoteleiro, cartão postal arquitetônico da ilha de Paradise.
Lenny aponta para uma espécie de ponte com janelas ligando a parte mais alta dos dois edifícios e conta que á a chamada suíte Michael Jackson, uma homenagem ao seu primeiro ocupante.
- Você pode ficar naquela suíte por uma noite se tiver 25 mil dólares, anuncia.
Sorrio aquele sorriso amarelo de que não é para mim. E faço cara de pasmo, quando ele assegura que a estadia mandatória é de, no mínimo, uma semana. Para ficar uma semana na suíte inaugurada pelo irmão de Latoya eu teria que assaltar um banco ou vender um rim.
Chegamos ao local do mergulho e a surpresa é um cartão postal.
Debaixo da água vejo milhares de criaturas marinhas, estrelas, lulas, polvos, moreias e peixes de geléia de todas as cores se esgueirando entre corais rosados, belíssimos castelos de calcário esculpidos pela mão de Deus.
Um espetáculo que não verei na Broadway.
Um colorido que nem mesmo o carnaval do Rio de Janeiro me proporcionará.
Absorvo cada criatura, feliz, o corpo enfiado naquela água transparente e de um azul que não sei descrever.
Para viver estes momentos valeu a claustrofobia de sete dias à bordo de um navio.
No trajeto de volta Lenny assume o papel de guia e começa a falar de seu país com um orgulho que me comoveu. Passando novamente pela ilha de Paradise, apontou para as suntuosas mansões, com admirável intimidade.
Aquela de telhado branco pertence a Sean Connery, o verdadeiro James Bond. Aquela outra é da magnata Oprah Wimpfrey; Michael Jordan e dono daquela tríplice, sendo que as duas menores são para uso dos flhos; no alto daquela colina vive um xeique árabe com suas seis mulheres e 12 automóveis Rolls Royce; "o rapper JayZ e sua mulher Beyonce são proprietários de toda esta parte, diz apontando para um pedaço de paraíso avaliado em dezenas de milhões de dólares.
    -Você mora por perto, Lenny? - quero saber.
Ele aponta para o outro lado da ilha e diz:
    - As belezas de meu paí estão nas mãos dos estrangeiros endinheirados. Ya man!

Suas palavras ficaram dando voltas dentro de minha cabeça e nem a lembrança dos peixinhos de geleia de Paradise Island foi capaz de me consolar. 
Com o que há de melhor na mão de estrangeiros, eu talvez fosse mais um bahamense furioso, como aqueles que arrancaram de vez a carne de meus ossos, no 'tanque dos tubarões' do início da crônica.
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3 comments:

Tania regina Contreiras said...

Sem delongas: crônica perfeita, essa, Beto, de mestre! Você escreve cada vez melhor, se isso é possível...

Beijos,

Primeira Pessoa said...

Taninha,
eu anda tão em falta com você. Aliás, quando penso em você, minha vontade é retomar a escrita. mas retomar de verdade.

beijão

r.

Bandys said...

É sempre bom vir aqui.

beijo r.