O New York
Times elogiou o livro Histórias Completas, de Clarice Lispector, editado por
aqui, em inglês. Achei ótimo. Sou fã.
Clarice é um
fenômeno nas mídias modernas e é mais popular, hoje, do que quando estava viva.
A internet,
às vezes, presta um serviço à história e promove pequenos milagres. Tem
acontecido bastante e, não raro, ela faz justiça e redime o tempo, colocando alguns
pingos nos is.
A poeta
dizia que escrevia para não enlouquecer e, talvez por isto, seus textos tenham
chegado com tanta facilidade ao coração das pessoas. Só as coisas naturalmente
verdadeiras conseguem isto. Não existe atalho para se chegar ao músculo da emoção. Esta é a mensagem que fica.
Hoje proliferam
na internet alguns textos muito bons e que, mesmo não sendo de sua autoria, são
atribuídos a ela.
Ela, Caio
Fernando Abreu e Luiz Fernando Veríssimo, são os campeões neste quesito. E os
textos são tão bons, que Veríssimo disse em uma entrevista recente que já se
sentiu tentado a assumir a parte que (não) lhe toca.
Algumas pessoas
pensam que a escolha do nome de minha filha caçula foi uma homenagem a Clarice
Lispector. Mas não foi.
Clarice Lima
ganhou este nome em uma cama de hospital, ainda na barriga da mãe, uma hora
antes do seu nascimento. Era para se chamar Clara, mas minha mulher teve este
lampejo sob o efeito da anestesia peridural. Eu não tive argumentos para demovê-la.
E nem tentei.
Foi uma
gravidez complicada, em que o bebê, apressado, queria vir ao mundo aos cinco
meses de gestação. Portanto, aquele não era um momento apropriado para polemizar.
Na verdade, eu
nunca tive voto na escolha do nome para as minhas filhas e tive que me
contentar em dar nome aos bichos da casa, que são muitos e que, sempre, foram
imposição das mulheres que mandam aqui.
Foi uma
espécie de pacto silêncioso, implícito, em que minha mulher nomearia as filhas
e eu, os bichos, o que acabaria por transformar minha casa em um zoológico. Escolhiam
o animal, eu esperneava, contrariado, e elas diziam: “não reclame. Deixamos você
colocar o nome”.
E eu, bobão,
fui aceitando.
A sharpei Jade,
que já não se encontra conosco, foi substituída por Nina e Laila, da mesma raça.
Jade morreu após 11 anos de bons serviços prestados. Não saía de perto de mim. Lambia
minhas mãos, chorava de alegria quando eu chegava em casa, chorava de saudade quando eu
não estava. Logo eu, que não sou “bicheiro” e que prostestei
todas as vezes que algum animal entrou para a ‘família’.
O primeiro
pássaro da casa, uma calopsita ‘batizada’ de Lucky (sortudo, para os que não
falam inglês), era tudo de bom. Mas não foi assim tão afortunado. Ele vivia solto
pela casa, até que, um dia, foi pisoteado. Adivinhem por quem?
Clarice, claro, sempre desatenta, a cabeça nas nuvens. O bichinho jaz ao fundo do quintal, ao lado da piscina.
Clarice, claro, sempre desatenta, a cabeça nas nuvens. O bichinho jaz ao fundo do quintal, ao lado da piscina.
Ela passou dois dias chorando, até
receber as calopsitas Rico e Luna, como forma de ‘compensação’ por seu
atabalhoamento e para cessar de uma vez por todas com o chororô que prometia
não ter fim. Calou-se durante um bom tempo.
Na esteira
do casal de calopsitas viria a cacatua Cacatua, que é o mesmo que você nomear
um cachorro, cachorro.
Cacatua foi
o maior presente de grego que recebi na vida. Peter Pantoliano, o presenteador,
queria se livrar de um mico. Ou melhor, de um problema. Passou-o para mim e
hoje não sei o que fazer para me desfazer deste pterodáctilo incômodo e
barulhento. No entanto sei que, se houver um plebiscito, Cacatua fica na casa e
eu me vou.
Cacatua passa
dias a fio tentando fugir da gaiola, que batizei de Alcatraz. É incansável o
monstrengo branco, com seus bicos de aço, bicho inteligente, engenhoso, obstinado
e perspicaz. Nasceu para isto. De vez em quando, consegue fugir de Alcatraz.
Como? Eu não
sei.
Deveria se
chamar McGyver, de tão engrenhoso que é.
E, todas as vezes que foge, é um prejuízo financeiro e emocional para
mim.
Já
estraçalhou estantes, moldes de porta e janelas, pés-de-mesa, estofamento de
cadeiras, controles remotos de televisão e até a biografia de Paulo Leminsky,
escrita pelo jornalista Toninho Vaz.
Não aguento
mais esta bicharada.
Por causa
deles, há quatro dias Clarice não fala comigo. Ela agora cismou que quer ter um
porquinho da índia. Fui contra, claro. Ela diz que posso chamá-lo de Justin
Bieber. E foi aí que não aceitei mesmo. E nem vou aceitar. Mesmo que ela fique
mais quatro dias sem falar comigo.
Com essa
bicharada em casa é impossível viver em um ambiente silencioso e 100% limpo.
Outro dia
levei o meu casaco ao tintureiro e a chinesa me disse que nunca tinha visto
tanto pelo de cachorro em um outro lugar que não não fosse em um cachorro. Eu quase
morri de vergonha.
Portanto, Clarice que me perdoe: porquinho da índia, só na Índia.
Portanto, Clarice que me perdoe: porquinho da índia, só na Índia.
E c’est
fini.
PS: esta seria
uma crônica de homenagem a Clarice Lispector, que completaria 95 em 10 de dezembro.
Clarice Lima
não permitiu.
18 comments:
Duas Clarices e um cronista de alma! :-)
Menos mal que você não bicheiro, Roberto, não está sujeito as penas da lei, apenas da cacatua. Já eu sempre tive, cachorros geralmente, mas já passei por papagaio, hamster. Fora coelhos e galinhas que meu avô criava. Agora tenho aqui uma cachorra quase cega, e 7 gatos. Era um só, mas uma noite fui espiar um miado no quintal, e uma gata jeitosinha entrou. Um tempo depois deixou meia dúzia de filhotes e sumiu. Mas no geral eu gosto, e gosto mesmo é da passarinhada de manhã no quintal. Abração Beto.
Tú lo dices muy bien: el misterio de la carne, del corazón, de la verdad, de esa que late y se siente por muchas capas y máscaras que queramos poner. Esa, esa que solo algunos se atreven a asumir: la máscara de la verdad que late.
Abrazo. Grande.
é pra você que escrevo, taninha. sempre.
beijão.
r.
Pois é, Dário, pessoas de coração generoso (como você) tem esse elo de ligação com São Francisco de Assis. Eu gosto de bichos, mas os bichos gostam muito mais de mim do que eu deles. É desproporcional. E isto até gera um certo ciumezinho aqui em casa. Sete gatinhos? Nelson Rodrigues precisa saber disto.
Beijão,
R.
a máscara da verdade que late e que morde, mulher de la mancha.
sempre uma alegria imensa te ler neste minifúndio de afetos.
Grande beijo,
r.
Pois é, Roberto, às vezes estamos pensando numa coisa e nossas mãos dizem outras que, embora não sejam iguais são as mesmas. Nem sempre conseguimos "obedecer" aos comandos do nosso cérebro.
Fiquei curiosa pra saber o conteúdo do endereço que me enviaste. Infelizmente não possível. Se me disseres qual é o título ou do que se trata, quem sabe eu possa encontra-lo no youtube. De qualquer forma, obrigada!
beijão
"Na esteira do casal de calopsitas viria a cacatua Cacatua, que é o mesmo que você nomear um cachorro, cachorro." Ótimo!
que bonito o texto, Pessoa. Digno das histórias de família de Clarice. Algo como lembrar uma menininha e uma costureira e um olhar altivo e um pio de pinto e um momento de sofrer e descobrir e uma certeza de que não damos conta sozinhos daquilo que de algum modo nos comove.
Marcio Ares,
um pio de pinto é uma das coisas mais poéticas que você poderia evocar. Existirá algo mais bonito (e puro) que um pintinho amarelinho?
Abração do
R.
Criandeira,
tentei postar Pequeno Mapa do Tempo, de Belchior. Se não conseguir, me diz, que te mando, por email, o mp3.
Pensar uma coisa e fazer outra, é a minha especialidade. rs
Deixo um beijão.
r.
Escrevi uma resposta enorme e, sei lá eu por que cargas d'água, evaporou. Volto e registro o apreço pela sua passagem, Suzana. E o carinho de sempre.
Um cão chamado cachorro, né?
Beijão,
R.
Mas acabou como sempre uma cronica maravilhosa...e eu espero que Clarice já tenha o porquinho da índia :)
Clarice não teve esta sorte, Ana P. Aliás, já dei um ultimato: entra um bicho novo e sai o bicho velho.
Grato pela visita.
Beijão,
R.
Que mistério tem Roberto Lima que escreve crônicas sempre leves e lindas, para guardarem-se assim tão firmes, no coração?
Lispector explica!
a chinesa se espantou com teu casaco porque não conheceu meu carro! o funcionário do lava-jato perguntou quantos cachorros eu transportava por dia no carro... só um e só uma vez por semana. gracias, roberto, pela leitura deliciosa! custei tanto a vir que, a esta altura, já deves ter nomeado o porquinho-da-índia :P
Luciana,
a luta é árdua. O porquinho já tem até nome, Salame, mas ainda vive em um Pet Shop. Espero que fique lá, quisetinho, e que vá fazer outras crianças noutro lugar, que não seja a minha casa. Ontem ameacei minha mulher, entre o porquinho, sai o porcão... rs
beijo grande
R.
Saudades de te ler por aqui, Da Rama, moço das trovas bonitas e artilheiro dos belos gols contra a própria meta.
Saudades, Da Rama.
Beijão
R.
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