Tuesday, July 16, 2019

Pescoço de peru


As redes sociais foram inundadas por fotos de ‘velhinhos e velhinhas’ nos últimos dias. Um aplicativo que ‘envelhece’ as pessoas virou moda entre anônimos e famosos, que se divertiram com as supostas imagens futuristas.
A minha versão não foi das mais generosas. 
Recusei-me a postá-la, mas o compositor Dalmir Lott fez questão de tornar público aquilo que eu gostaria de manter privado.
Fiquei com a cara daquele quibe de lanchonete de rodoviária que ninguém quis comprar, lá pelas duas da manhã.
Orelhas de abano, nariz de borracha porosa, cabelos escassos, o rosto com a aparência do mapa rodoviário da Califórnia, pés de galinha espalhados por toda a face, é o que se vê. 
As pelancas do pescoço, uma vez espichadas, fariam duas vezes o trajeto Rio-São Paulo.
Minha cara ficou parecida com o cotovelo do Keith Richards, do Rolling Stones.
Eu, que nunca fui nenhum Richard Gere, fui monstrificado.
No entanto, se o aplicativo da internet é cruel, a vida é muito mais. Uma existência não se consuma (e consome) em meia dúzia de cliques.
Sei que ficarei com um aspecto ainda pior, caso consiga superar décadas de abusos e descaso com o presente dado por meus genitores.
Maracujás enrugados dão mais suco, diria meu falecido pai.
Não é bem assim.
Problemas de todas as espécies branqueiam os cabelos, riscam sulcos com o estilete dos dias, dando a mim um aspecto estranho, desenhando uma caricatura do que fui um dia.
Boletos, ex-'conjes' (como discursaria o Moro), filhos, políticos filhos da puta, times de futebol e suas defesas pífias, uísque de procedência duvidosa, drogas legais e ilegais, religião, turbulências de avião, filas em repartições públicas, cidadãos corruptos e corrompidos no meu entorno, buracos nas estradas, medo da violência urbana, insônia, ignorância e fúria dos extremistas, trânsito caótico, as falas da Damares, a ganância dos poderosos e a ausência de Deus em tantos momentos, farão de mim algo muito pior do que essa calopsita  com pescoço de peru, que o Dalmir Lott espalhou pelas redes sociais.


4 comments:

Ricardo Mainieri said...

Não fiz a transfiguração, Beto. Prefiro assistir "in loco" o que a vida me reserva. Até lá, pode ser que a cosmética esteja muito evoluída e eu possa fazer uma lipoaspiração completa. (rs) Quanto ao texto, ele consegue um tom bem-humorado, com tiradas criativas e a coloquialidade de sempre. Abraço.

Dario B. said...


Consumatum est. E não há muito a fazer a não ser pensar em algumas saídas estratégicas. Detive-me no retrato, que trás o que o Robertim supostamente será, não agora, daqui a mais alguns lustros. Minha memória coçava com alguém conhecido, mas negava-se a me dizer quem era, até eu sentir aquele lampejo e tudo ficar claro. Olha o lado bom da coisa: se tu deixar crescer o cabelo e a barba, a farta, como se usava em tempos idos, vai ficar a cara do Leon Tolstoi, e com a vantagem de esconder o peru. Ops..., o pescoço de peru. Não se amofine tanto, meu caro, eu mesmo há tempos vejo meu pai me olhando no espelho todas as manhãs. E agradeço por isso, muitos não chegaram nem chegarão perto disso.

Lídia Borges said...


Depois de amanhã... talvez! Hoje não posso. Amanhã tenho de me preparar para ver a vida toda escancarada no meu espelho, depois de amanhã. :)

O seu texto, um bom momento de leitura e de boa disposição, apesar do "pescoço de peru".

Bj.

Lídia

Bandys said...

Ola,
Confesso que sou mil vezes mais ler
OS ESTATUDOS DO HOMEM do que entrar na brincadeira da fotinho que envelhece.
Não sou adepta do modisto.
Feliz domingo.☺