Monday, December 21, 2020

O tio Sukita


(Ao Carlos Borges)


O tempo passa, e a gente, às vezes, não se dá conta. Não é o meu caso, quero crer.
Os ossos não mentem.
A agilidade sumiu.
A flexibilidade do corpo, também. Há cerca de dois meses empenei o ciático tentando amarrar os sapatos, e mesmo os cadarços pareciam itens de museu.
Passei duas semanas na fisioterapia. Mal dormia. Mas já estou quase bom.
A rotina muda com o passar dos anos sem que a gente perceba. É como se a pessoa fosse anoitecendo por dentro e tudo o que era claro e diurno ganhasse tons de penumbra até o entrevamento absoluto.
Breu.
E o espelho é cruel.
A barriga se expande para quase todos, principalmente os sedentários, como eu.
Mas a flacidez não é facultativa. Ela é institucional, e não há botox milagroso que resolva.
Ao redor dos olhos rascunha-se uma espécie de mapa rodoviário do estado onde a pessoa nasceu. Para o meu desgosto, Minas Gerais é rabiscado de estradas, algumas em péssimo estado de conservação.
E o despertar para o definhamento é rude, já que o tempo não leva prisioneiros.
Há coisa de dois anos, em Nova York, dentro de um desses modernos elevadores, todo metálico e com espelho no teto, fiz uma triste descoberta.
Apertei o número do andar desejado e, sabe lá Deus o porquê, caí no desatino de olhar para cima.
Foi grande o susto.
Ela estava lá, olhando para mim.
Ela!
Aquela coroa sem rei.
Bem no cocuruto, o quipá de não judeu.
A coroinha do frade, uma auréola sem anjo.
Aquele latifúndio amazônico devastado de mim.
Eu não me dera conta do avançado ‘desmatamento’, sem quem nenhuma ONG internacional intercedesse e interpelasse Jair Bolsonaro, senhor de todos os desmatamentos e queimadas deste mundo.
Encarequei carecando, sem a permissão do Houaiss.
A partir daí passei a prestar mais atenção nas pessoas me chamando de senhor.  Constatei que não vem de agora a nova regra.
Daqui a não muito tempo terei prioridade para entrar no avião. Vivesse no Brasil, teria passagem gratuita nos ônibus coletivos.
No entanto, tenho alguns amigos que se recusam a aceitar que o tempo passou, e eles já não são os garanhões dos anos 1970.
Vestem-se como rapazolas do novo milênio, andam de óculos escuros da Oakley, fazem tatuagens, frequentam academias de ginástica para impressionar as moças e ganhar músculos.
É preciso ser muito forte para deter o giro do velho ponteiro do relógio. E eles pensam que são.
Tenho um amigo que foi muito boa-pinta na juventude. E não há nada mais antigo do que a expressão ‘boa-pinta’.
Ele era daqueles moços bem-apessoados, outro termo que fui buscar no meu velho baú de ‘velheiras’.
No tempo da Aqua Velva e das calças bocas de sino, Valdir fazia muito sucesso com os seus cabelos longos e a coleção de LPs do Black Sabbath.
Moço da alta classe média valadarense, ele desfilava pela cidade com o seu Passat cor de vinho, pneus tala larga e rodas de magnésio. Aquele carro era uma espécie de motel ambulante e ele se vangloriava disto.
“Eu tenho um ímã de mulheres”, gabava-se.
Três casamentos depois, esse Tio Sukita (da propaganda de um antigo refrigerante) continua na ativa, com sua metralhadora de galanteios defasados, muitos deles se encaixando na categoria assédio sexual, e dignos de interpelações severas aos olhos da lei.
Mas, se o Valdir é agressivo, as ‘gatinhas’ de agora não deixam barato. Como se mostrariam um pouco antes da pandemia, num bar da Savassi, em BH.
Refestelados na inocência da tarde, oito pré-anciões bebiam cerveja esmiuçando o tempo em que eram a última novidade de Deus.
Foi quando um grupo de quatro moças muito bonitas passou por nós em direção ao banheiro do bar.
Valdir viajou no tempo, remoçou, ‘garanhou-se’ e disparou uma deselegante cantada.
As moças pararam, não riram do parnasianismo do galanteio e uma delas voltou até nós.
Dedo em riste, meio-sorriso de Lolita de Nabokov (a outra metade era de Margareth Thatcher), ela foi direto ao Valdir:
   - Meu senhor, quem gosta de pau velho é orquídea. Se enxergue!
Valdir fingiu que não era com ele, chamou o garçom e tentou consertar:
A rodada é por minha conta!
Todos dissemos amém.

8 comments:

Joakim Antonio said...

Maravilha de texto!

Suzana Guimarães said...

Muito bom! 👏👏
Leio num fôlego só. Entro na narrativa e participo.
"O tempo não leva prisioneiros."

Ricardo Mainieri said...

Que legal, Beto, ter amigos escritores da geração doas anos de chumbo. A gente revive o passado em cada linha. O amigo enfocado podia ser transportado para uma Porto Alegre dos anos setenta, com seu Escort vermelho flamejante e a velha "caça" ao sexo oposto.
Éramos um tanto toscos, para os padrões atuais, mas tentávamos.
Agora nos restam as lembranças. Que dão boas estórias como essa.

Happy birthday.

Primeira Pessoa said...

Não tô conseguindo responder vocês. Mudou o trem todo por aqui. Putz... tão feliz por terem passado por aqui,
Tão feliz!

Samuel Cevidanes said...

Muito bom o texto e as lembranças que ele nos trás. Parabéns meu amigo.

flor de lótus said...

Excelente texto que nos permite visualizar a inexorável passagem do tempo, quando nos confrontamos com a realidade que nos espera com a sua passagem.

Ivy Menon said...

Delícia de ler!

Samuel Oliveira SJDR said...

Parabéns pela crônica. Alguns de nós estão pulando de fase no jogo da vida e passando direto para o 'vovô Sukita', mas tudo bem, desde que seja com saúde! Voltando a criativa crônica, com certeza não poderia deixar a encantadora moçoila sem uma resposta temperada com a experiência e a ironia da senilidade : "Por isso mesmo as orquídeas são flores tão raras"... Parabéns
e um abraço conterrâneo daqui de São João del Rei.