Sunday, April 4, 2021

O diploma

 


Meu pai nasceu em Mutum, cidadezinha com fama de violenta, da microrregião de Aimorés, Minas Gerais. 

Nasceu em casa, cresceu na roça, com sete irmãos. 

Antônio Ferreira Lima era o seu nome.

Brotou em casa, dentro dos limites de um sítio, e ali existiu entre os pés de café.

Aos oito anos foi matriculado numa escola rural. 

Adorava. 

Mas sabia que alegria de pobre dura pouco. Sempre foi assim, desde o princípio dos tempos.

Ao fim de 30 dias de alfabetização viu a figura austera do meu avô adentrar a sala de aula, improvisada num barraco que antes fora um paiol. 

Tentou decifrar o que a professora visivelmente não conseguia entender.

E saiu dali levado pela mão firme do pai. 

Mão calejada, dura, curtida na labuta da lavoura mais bruta.

E nunca mais voltou.

- Eu não precisei e você também não vai precisar, disse-lhe vovô.

O menino baixou a cabeça para nunca mais levantá-la, de fato.

Na caminhada entre o paiol e a casa saquearam violentamente a sua infância.

Não deixaram quase nada de inocência e de sonho. 

E isso explicaria certos comportamentos, algumas incompreensões e reações registradas ao longo dos seus 84 anos.

Noves fora nada, papai superou as expectativas.

Em vez de um lápis, aquela criança ganhou uma enxada, instrumento que a acompanharia dos oito aos 21 anos.

Calçaria os pés pela primeira vez aos 17. 

Com o dinheiro economizado depois de uma colheita de milho, foi ao sapateiro do vilarejo, profissional cujo estoque se resumia, naquele momento, a um par de chuteiras de jogar futebol.

E tudo o que ele queria era sair dali calçado.

Sonhara com um par de botinas, mas contentou-se com o que o comerciante tinha, dois números menores que os seus pés.

Humilhado no primeiro baile a que compareceu paramentado, voltaria descalço para casa.  

E assim permaneceria.

Conseguiu trocar as chuteiras por uma velha garrucha e só se realizou dois anos depois, quando finalmente adquiriu um par de botas.

Aos 21 anos foi tentar a sorte em Governador Valadares. 

Perambulou pelas ruas da cidade até encontrar abrigo em um bar, onde se ofereceu para fazer qualquer serviço. 

Generoso, o dono do estabelecimento - um homem chamado Carlos - ofereceu-lhe um salário mínimo e um quartinho nos fundos do quintal. 

A gratidão ao senhor Carlos foi tão grande que todos os filhos de meu pai se chamariam Carlos.

Como este Carlos Roberto que vos escreve.

Ao saber que a polícia militar estava precisando de soldados, vislumbrou ali uma forma de adquirir estabilidade profissional. 

A prova de admissão consistia em o candidato se apresentar ao batalhão, sentar-se numa carteira rodeado de outros candidatos e escrever uma carta pedindo emprego.

Os poucos dias vividos no banco da escola rural, no entanto, não lhe davam lastro necessário para escrever a missiva. Precisaria ser criativo.

Foi aí que teve a ideia de pedir a um contabilista - cliente do bar - que escrevesse a tal carta em um pedaço de papel de embrulhar pão.

Depois de uma semana praticando, aprendeu a desenhá-la.

Foi assim que ele foi admitido na PM de Minas Gerais.

Praça novo rodou por todo o Vale do Rio Doce até conhecer, em Galileia, uma moça com quem se casaria.

Construíram um barraco. Tiveram filhos.

Antes de mim nasceu um menino, que morreria de meningite

Nasci eu. 

Depois viriam outro menino e uma menina. 

Nunca ficamos sem ter o que comer. 

Vestíamo-nos com pedaços de farda que minha mãe desconstruía para nos cobrir. A vida era boa.

Eu tinha pouco mais de um ano quando estourou o golpe de 1964. Papai ficou de prontidão no 6º Batalhão, esperando por um combate que não aconteceu. 

Seu "prêmio" foi um diploma de "honra ao mérito", que amarelou dentro de uma moldura na sala da casa onde cresci. 

Aquele foi o único diploma que meu pai recebeu na vida.

Emigrei para os Estados Unidos em 1984 e, um pouco antes da partida, sentei-me com ele na amurada da pequena varanda.

Disse-lhe que aquele pedaço de papel me incomodava, por se tratar de uma nódoa na história do Brasil. 

Ele perguntou o porquê e lhe expliquei que a tal revolução, na verdade, não passara de um abominável golpe militar.

Papai não disse uma única palavra. 

O país vivia uma transição, e os ares da Nova República já se faziam sentir. Saí para comprar cigarros e, quando voltei, o diploma já não estava mais lá.

Dirigi-me a ele, que respondeu, serenamente:

- Eu tinha uma mentira pendurada na parede, meu filho. Deixa estar...

Nunca mais tocamos no assunto, como se o episódio fosse um daqueles segredos de família guardados no fundo de um baú.


6 comments:

Ricardo Mainieri said...

Maravilhosa crônica, como sempre. Puxaram-me discretas lágrimas de emoção, em meio a estes tempos inóspitos. Valeu. Abraço.

Joakim Antonio said...

Emocionante e lindamente escrito. Parabéns, Robert!

Alan Costa said...

Pra variar né... matou a pau de novo!

Unknown said...

Parabens! Lindamente escrito .Viva seu pai e as suas memorias boas dele .

Dario B. said...


Não fosse real, passaria por uma ficção magistralmente escrita, Roberto. Na verdade foi uma mentira, mas apenas mais uma dentre as tantas que vamos engolindo durante os anos.

ÍndigoHorizonte said...

Na verdade as memorias do teu pai estão esperando para ser escritas...

Abraço da mulher de la Mancha