Tuesday, February 7, 2012

Uma canção de inverno

.


















(A primeira vez que vi a neve, dezembro de 1984)


O publicitário Lineu Vitali telefona reclamando do frio. Ele foi dar o passeio de motocicleta das manhãs de domingo e desanimou. Voltou para a casa, inconsolável, murcho.
Esse Lineu, que gosta de voar de asa-delta, saltar de pára-quedas, fazer rapel, pilotar lanchas de alta velocidade e já deve até ter se jogado de um bungee jump.
Quem lê essa crônica pode pensar: nesse frio, quem quer andar de moto? Nem mesmo o Lineu, apaixonado praticante dos esportes radicais!
Mas Lineu Vitali está na Flórida.
E a temperatura por lá anda na casa dos 70 graus Fahrenheit.
Lineu está mal acostumado.
No outro dia tive que tirar quase um caminhão de neve do capô de meu carro.
E dá-lhe de remover a maçaroca branca da frente da casa, à pá.
Para uma pessoa como eu, avessa a exercícios físicos e que tem em amarrar os sapatos todos as manhãs a sua sessão diária de ginástica, é um suplício.
Quando termino a maratona, não quero medalhas, mas uma dose generosa de conhaque e um café fumegante, que faço questão de segurar entre as duas mãos, para me aquecer.
Lembro-me claramente da primeira vez que vi a neve.
Corria o ano santo de 1984 e nevara a noite inteira. Telefonei ao Brasil e contei aos meus pais, aos amigos e quem mais tivesse saco de ouvir.
“A neve é fofinha, parece aqueles doces feitos pela avó da gente. Deixa tudo branquinho, imaculado, lindo. A neve purifica”, lembro-me de ter expelido estas “pérolas”.
Quando cheguei ao trabalho, naquele dia, recebi uma pá das mãos de meu patrão.
Passei quatro horas limpando um estacionamento com capacidade para uns sessenta carros.
Começou ali a minha desilusão com os flocos “purificadores” que caem dos céus.
Mais de 20 anos se passaram e a neve (e frio) é, na minha concepção, um dos únicos pontos negativos de se viver nos EUA.
Sim, acostumei-me a ela, mas é um exercício de paciência, ficar torcendo para o inverno passar rapidinho para poder, finalmente, abraçar com paixão as primeiras flores da primavera.
O que é uma prova de desinteligência, penso com meus botões. Preciso urgentemente encontrar maneiras de preencher o tempo de forma produtiva durante a hibernação forçada dos invernos.
Não aprenderei a esquiar, certamente.
Passeios de snowmobile estão peremptoriamente fora de cogitação.
Entregar-me aos prazeres da culinária e do bom vinho, mais aliciantes e menos extenuosos, são uma ameaça à essa silhueta já robusta, produto de mais de quatro décadas de absoluto sedentarismo.
Peço sugestões a amigos, alguns indicam bons livros, idas a teatros e museus, ou mesmo alugar um dvd; Mario Bittencourt sugeriu uma esteira de caminhar, excomunguei-o; Tadeu Martins receitou entrar em uma aula de dança de salão.
Descartei, obviamente.
Nasci com dois pés esquerdos e meus quadris enferrujaram quando Noé ainda ia à mata cortar madeira para construir a sua arca.
Retornar ao Brasil é um projeto que vem ganhando significância e força dentro de mim, mas depende de alguns fatores.
Meu coração já está lá, é verdade, nas montanhas mineiras, numa casa com fogão à lenha, jardim e pomar, uma vasta biblioteca, céu perenemente azul, sempre salpicado de estrelas ao anoitecer.
Antevejo uma casa com ocasionais luas cheias, chuvas de março, margaridas a açucenas esparramadas, xaxins com avencas e samambaias pendendo da varanda, serestas e amigos violeiros, terreiro embandeirado no mês de julho e um “corguinho” para pescar lambaris a uma distância que se percorra a pé.
Enquanto esse dia não chega, é essencial que eu aprenda a conviver inteligentemente com esses três meses de agonia, chumbo e neve.
Afinal, passar um terço da vida desejando que o tempo passe rápido, nada mais é do que uma forma de suicídio.


A Música Que Toca Sem Parar:

com letra de Ronaldo Bastos e melodia de Celso Fonseca, a emblemática O Tempo Não Passou, um de meus hinos.


Vou te escrever pra falar de new york
Não vim aqui esperar pelo fim do mundo
Estou feliz no postal de new york
E tudo mais e a saudade cortando o fundo
Quando acordo lá pra as três da madrugada
Sinto um anjo vir rondar meu cobertor
Colo a boca sobre a pele da vidraça
Sinto as mutações do tempo a meu favor
Não sou ninguém sem voçê em liverpool
Ou numa ilha dos mares do sul
Olho o relógio e as horas não passam por mim
Num cartão postal o tempo estacionou
Parou seu carro no drive-in
Pra nós o tempo não passou!


40 comments:

Unknown said...

o romance brother, gesta ele no inverno que deságua em nós verão,



abraço

Iara Maria Carvalho said...

sua desilusão com a neve, seu desejo de voltar, as formas mais sutis de fugir do que não é de dentro. lirismos que se enton(tecem) ao final.

beijos...

Tania regina Contreiras said...

À parte toda a deliciosa poesia de sempre em sua prosa (que me encantou desde a primeira vez), acho bacana quando você fala em voltar pro Brasil, pois que você traz Minas no sangue, na alma, na prosa, é cá seu lugar! rs. A música que toca: hummmmm...uma coisa essa música!

Beijos, Beto!

Daniela Delias said...

"Eu queria ter na vida simplesmente um lugar de mato verde pra plantar e pra colher.Ter uma casinha branca de varanda, um quintal e uma janela para ver o sol nascer..."

Uma musiquinha do meu tempo pra ti.

Ô...O tempo não passou é linda. E a crônica mais ainda.

Bjo meu.

Primeira Pessoa said...

ô, assis, voltar a este "lugar"e você ser a primeira pessoa a postar um comentário é muito especial pra mim.

te abraço, meu broda.

Primeira Pessoa said...

Iara,
outra feliz coincidência: voltar e encontrar você por aqui.
a moça de currais novos, sempre à janela, foi das primeiras pessoas que li, quando descobri este universo aqui.

abraço dos meus,

r.

Primeira Pessoa said...

Taninha,
você, na sua infinita generosidade, visinha do roxo-violeta ficou por cima do muro, vigiando, tomando conta pra mim.

sou-lhe muito grato.

meu afeto.
meu bem-querer,

r.

Luiza Maciel Nogueira said...

Minas nesse teu olhar é um esplendor, me veio o sabor do pão de queijo e tudo que Minas oferece do melhor. A neve realmente é de uma frieza que perto de Minas perde em alegria e estilo. boa Crônica a falar um pouco do nosso bom e velho Brasil, ou faces dele. beijos

Anonymous said...

Adorei !

E que voce siga se distraindo assim com textos tão gostosos de ler.

Abraço.

Marcie said...

Concordo com tudo. Só que ao contrário...hahaha! Eu passo o ano esperando a chegada do frio!

Adorei a crônica, exceto pela parte que fala de uma vontade/iminente volta ao Brasil.... :(

Primeira Pessoa said...

marcie,
saudade de vocês.
precisamos comer um "lardo" qualquer dia desses.
no final do ano, fiquei de almoçar com o ciro, mas mr pellicano sumiu, fazendo um retiro espiritual no nepal, algo assim.


beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

ô, margoh,
se cê gostou, já vale a pena.

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

ô dani,

boa também é aquela do finado zé rodrix, que a também finita (e sua conterrânea) ellis regina gravou: casa no campo.

de torar, como diria o assis.

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

luiza,
cê já foi a minas?
uai, então vá!

o trem lá é desse tamanho mesmo.
e tem gosto de queijo canastra com goiabada, aquilo que o o brasil chama de romeu e julieta.
aliás, com o perdão do trocadilho infame, minas gerais é meio chico espirra...

beijão,

r.

Bípede Falante said...

Roberto, como disse Saramago: "sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam".
E cada um sabe melhor que ninguém qual é o seu :)
Poética crônica. Ou poesia cronicada rs
De qualquer forma, admirável!
beijo

Primeira Pessoa said...

saramago, era um homem sábio, preclaríssima bípede falante.

um dos homens mais iluminados do seu tempo. do nosso tempo, aliás.

e o meu sítio é aquele lugar barroco, aquele pedaço de portugal fincado no alto dos morros.

beijo grande procê, do

r.

nina rizzi said...

coisa linda, meu querido.
te deixo isso, de novo:

http://www.youtube.com/watch?v=ZUFsytNg_KI&feature=g-upl&context=G2252354AUAAAAAAAKAA

Fernando Campanella said...

Pois é, Roberto, tempos contrditórios... Aqui um calor do cão, oito dias sem chuva, calor escaldante, difícil pra dormir (não curto ar condicionado nem ventilador), tenho que deixar a janela aberta mesmo, daí melhora um cadinho, rs. Bãum, to torcendo pra Fevereiro passar rapidão.
Belíssima crônica, bem desenvolvida, como é do teu estilo. E nada melhor do que alegrar o inverno de New York com uma reunião do Tertúlia aí, 3 dias, o que acha? :)
Abração, meu querido amigo.

Anonymous said...

Gostei!! Só que esse frio... Seria 1/3 de minha vida desejando sol. Abraços calorosos.

dani carrara said...

ver neve deve ser mágico. acho que ligaria pro mundo inteiro.

linda a crônica.

e um dilema - entre a paz de uma montanha em minas e a pá que o chefe apresentou pra limpar o estacionamneto...rs

revesa: lá e cá.

um beijão.

Wilson Torres Nanini said...

Rapaz, arruma uma modo de preencher o terço jogado no branco.

Aqui estamos desejando uma pouquinho desse frio: até a alma está fervendo.

E Minas é um estado de espírito, creio: não existe, a não ser em nosso sonho de paraíso.

Abraços!

Primeira Pessoa said...

ô, Nina,
cê é uma querida e eu fico muito feliz de vê-la aqui no cantinho, como no início de tudo, quando comecei.
e a gente que compartilhou tanta poesia, tanta música, tanto bem querer,chega a este momento da vida se sabendo junto.

e, sim, adoro essa canção. ainda ontem cantei-a. escutei-a, à exaustão.

beijo grande,

r.

Primeira Pessoa said...

campanella,

já não sou mais um tertuliano, mas poderemos realizar muitos encontros pela vida. aliás, em outubro, estarei aí em minas e tô bem afim de reunir a turma em BH... seria aberto a todos os amigos, de outros blogs... e tenho certeza de que seria um grande encontro, com muita música, biritinhas, comidinhas... já tô vendo com uns músicos de primeira linha para abrilhantarem a folia.

acho que vai dar pé.

beijão do

r.

Primeira Pessoa said...

anônimo,
por essa ordem de idéias, eu devo ter passado, pelo menos um quinto de minha vida desejando o sol.

abração do

roberto.

Primeira Pessoa said...

ô dani,
mas o que tenho feito mais é revesar.

a propósito, acabam de me informar: começou a levar lá fora. vou zarpar antes que engrosse.

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

nanini,
eu acho que minas é o "mió que tá teno"...

não é pra me "gambá"", não... mas, ê lugarzim bão, sô...

gosto demais daí.

beijão,

r.

Anonymous said...

Ah, Roberto! Que gostosura sua crônica, eu que sou mineira uai que só vendo, entendo bem sua agonia...
Certa vez, fui morar no Amapá(outro país dentro do Brasil)e sofri demais; calor, tucupi no tacacá, cominho... e eu morrendo de saudades do meu angu com torresmo.

A parte mais linda do seu texto é quando você cita o fogão à lenha e o céu, que só Minas tem.

Beijo com queijo, querido!

Primeira Pessoa said...

adriana,
minas, lá em riba, parece estar mais perto do céu, né? costumo fazer essa propaganda do céu de minas gerais, com suas nuvens perfeitas, seu azul mais azul... e, de noitão, aquele tantão de estrelas...

fora de minas, é tucupi no tacalá...rs

beijão,

r.

Luciana Marinho said...

senti a neve em pleno nordeste brasileiro lendo teu desejo de abrir a janela e ver o verde, as margaridas, as açucenas...

um soprinho quente de cá para roberto,

lu

Primeira Pessoa said...

meu desejo vai no vento, vai nas nuvens, lu.


vai que os deusses estão prestando atenção.

beijão do

r.

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Beto,
Se soubésses - e sabes - o tanto que te queremos no Brasil, estarias já de retorno marcado...
O pó é que sabemos quanto quantos também te querem e exigem aí, com neve ou sem...
Quem mandou ser Roberto Lima, por quem os sinos dobram? É o preço, cronista...
Mas que tal meio a meio?

Saudades de outubro,
Darrama.

Paulo Jorge Dumaresq said...

Bela crônica para iluminar meu sábado. Abraço bem apertado, Bob.

Primeira Pessoa said...

paulo poeta,
meu abraço caloroso procê,poeta que pinta com as cores da poesia e da amizade a esquina do continente.

desde new jersey, o afeto do

roberto.

Primeira Pessoa said...

da rama,
bem menos do que cê pensa...rs... bem menos..
ô, to cozinhando Meninos de São Raimundo, com o Bispo Filho. Acho que vai sair, com lançamento no Valadão e BH, em outubro, lá mesmo na casa do Euler (cê já viu lançamento de livro feito numa casa???), com muita música, amigos...

O irônico é que tentamos publicar Meninos de São Raimundo, em 83 e esbarramos nos mesmos problemas de sempre.

Pode ser que eu convença o Bispo a vir lançar em Nova York.

Beijão,

R.

ÍndigoHorizonte said...

Viví en D.C la "blizzard of 96". Un caos de calles llenas de nieve... Una semana sin ir a trabajar, en la capital del país más rico del mundo (eso decía una compañera) y disfruté, viendo los copos purificadores, mientras paseaba por la ciudad pero eso porque no tenía que ir a trabajar... si no, me hubiera tirado de los pelos. Me recordaste tiempos viejos. Un abrazo grande, Roberto.

Primeira Pessoa said...

Indigo,
aí em terras espanholas também neva, não é?

antes que me esqueça, recebi seu magnífico presente pelo correio e preparo, para muito em breve, uma postagem somente com poemas do bardo português do livro que me enviou.

Foi um belíssimo presente.

Abraço amigo do

Roberto.

ÍndigoHorizonte said...

Aquí también nieva, sí, pero en la Mancha, donde yo vivo, más que nevar, hiela. Te iba a preguntar precisamente si te había llegado el libro. Luciana ya lo recibió y también Juan del blog Canto de Espumas. Sólo me quedabas tú. Ahora ya sé que lo tienes y me alegro que te guste. Abrazo grande, Roberto.

Primeira Pessoa said...

Indigo,
a partir de agora você será, para mim "a mulher de la mancha" e fará parte de um universo quixotesco, agora ainda mais bonito.

seu presente chegou, sim, e já está sendo muito apreciado. livro é, a meu ver (e sentir) um dos melhores presentes. livro e música, são "presenças" que me tocam.


uma vez mais, o meu muito obrigado.

grande abraço do

roberto.

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Meninos de São Raimundo: reservem o meu, e outro pro Grego...
Sabia que já trabalhei em São Raimundo, Beto? Sim, já vendi muitos zapatos na rua Berilo, nos idos - e vindos - de 88 e 89, e sempre me houve uma presença de você por lá, ainda que cê já estivesse distante na América àquela altura do campeonato da vida...
Ò tamen já marquei meus golzinhos contra no FutBar, rs...
Não perco esse lançamento, hein! Favor me convidar ou irei assim mesmo...

Abraço e admiração,
da rama.

Primeira Pessoa said...

da rama,
o trem vai ser é bão demais.
vai rolar no valadão (a expectativa é tão boa que vamos fazer no mamudão...rs)... BH e Sampa...
Em BH, acho que juntarei a turma, como costumava fazer no lance da Tertulia... o legal é que vai ter muita gente bacana de fora da cidade, e a entrada não vai ser limitada apenas aos tertulianos e ex-tertulianos como eu, o nassif e o paulinho pedra azul... e vai dar pra reunir muita gente legal...

e depois, fechando a tampa, em sampa, num butecão. vou costurar com a juliano vinagre, o cacau brasil e o braz... vai ser bacana, também...

dependendo das coisas, faremos nova york.

beijão,

r.