Erasmo Carlos escreveu brilhantemente num de seus grandes sucessos que é uma mentira absurda, a disseminação da informação de que a mulher é o sexo frágil. Concordo com ele e nem me estenderei demasiadamente nesse tema.
Ater-me-ei ao fato de que as mulheres são mais resistentes à dor, que os homens.
Já imaginaram se homem parisse um filho?
Não consigo sequer imaginar. Entro em pânico.
Eu, que nesse dia plúmbeo e cruel de segunda-feira, sinto-me extremamente fragilizado por uma gripezinha de nada.
Eu, que passei o final de semana no estaleiro, de moletom e pantufas, bebendo chazinho, tomando caldinhos quentes e desejando voltar pra dentro da barriga de minha mãe.
A gripe é uma das coisas mais desmoralizantes que existem.
Retorno à infância, sempre que gripo.
Quanto maior é a gripe, maior é a viagem no tempo. Maior é o inferno portátil, esse inexplicável purgatório de bolso.
Abandono-me ao recolhimento de um edredom de espinhos, construo uma espécie de casulo, quase um cocoon e fico ali, recolhido, encolhido, delirando de febre, desejando que minha genitora apareça pela porta, trazendo um prato de canja de galinha bem quentinho, ou um chá de flor-de-laranjeira, fumegando na xícara.
Escrevo essas mal traçadas e consigo sentir o perfume do chá, quase queimando a língua, o palato da lembrança.
A febre me queima a face e penetra a pele, impiedosamente.
É sempre assim. Deliro.
Vejo monstros saídos dos lugares mais fundos da minha alma.
Saem dinossauros, dragões, aquela professora primária que tinha uma palmatória implacável, e que aparecia sempre que eu aprontava alguma traquinagem ou desaprendia as lições de tabuada.
Nesses momentos de febre e reminiscências, recolho-me a dias de chuvas intermináveis em que eu ficava na soleira da porta soltando barquinho de papel nas águas da enxurrada.
Dias em que o barulho dos passos das pessoas no assoalho de madeira dos demais cômodos da casa, entravam em meus ouvidos como sinfonias fantasmas.
Dias de arrepios, calafrios, suadouro, pijamas de flanela, cedros escurecidos, mangueiras indecifráveis, caminhos incompletos, a desenvolver o imaginário num traçado incomum.
Dias que se prolongam em longas quarentenas de imagens desenhadas em um oásis amanhecido, num erguer de asas, a face rubra a brasa, o coração em desalinho...
Dias em que tento encontrar no anjo perdido de minha infância, os sorrisos largos, o olhar inocente e iluminado de menino, com a ingênua vontade de entrar na floresta de João sem medo, e não andar espantado por meramente existir, adulto.
E pintar com as minhas cores o momento fugaz de uma experiência nova, fazer-me dono da luneta mágica, construir meu próprio castelo, tocar com as mãos o pote mágico de ouro no final do arco-íris, como quem acaricia um poema.
Mas a febre continua profunda, dominante, esmagadora.
As lágrimas desse abandono correm soltas em algum lugar de mim – homem feito -, num incômodo que me consome a alma, como os áridos campos que clamam pela chuva providencial.
Cai o pano escuro da noite. Descortina-se o sol.
Nesse novo dia de janelas abertas sobre a minha vontade, levanto-me com as cores que uso nas noites claras de quando estou bem e uma canção, uma imagem, saúda-me com as cores inconfundíveis da Primavera.
Sim, é primavera na América do Norte.
É Primavera, de novo, no meu coração.
Raios de sol. Um pequeno milagre.
Renasço das cinzas e do absurdo das febres.
Açucenas bonitas brotam da palma da minha mão.