Tuesday, June 19, 2012

As 26 moléstias de Argemiro


Ele é portador – segundo suas próprias palavras – de 26 doenças catalogadas, e todas elas mortais.
Bebe, fuma, se excede, mas as 26 moléstias só lhe incomodam quando a mulher aparece com algum tipo de restrição:
- Não posso ser contrariado. Lembre-se: sou um homem valitudinário!
Valitudinário?
Corri pro dicionário – outra de suas muitas manias. Ele adora descobrir palavras esdrúxulas nos Aurélios e Houaiss desta vida – e não encontrei absolutamente nada.
Apelei a ele, e aprendi que um indivíduo valitudinário é um sujeito doente.
- Olha que moça calipígia, ele diz, apontando para a voluptuosa morena que atravessa a rua.
Nova consulta e descubro que calipígio é aquele, ou aquela, que possui belas nádegas.
Todas as manhãs, quando ele se levanta com seu pijama de aposentado, calça as pantufas e vai ao banheiro praticar os gestos universais inerentes ao ser humano, quem estiver do lado de fora, saberá imediatamente, qual dos Argemiros sairá por aquela porta.
Existem dois Argemiros: o sorumbático e o ditoso.
Querem saber o que quer dizer isto?
Façam como eu. O Aurélio é logo ali.
Ou, perguntem ao Argemiro.
Tudo bem, esqueçam o Aurélio!
O Argemiro feliz canta trechos de ópera enquanto se barbeia ou lê, sentado no trono.
Ele sabe tudo de ópera, canta árias inteiras, e parece se alimentar de réquiens e Enrico Caruso. Se não tivesse nascido Caruso e italiano, teria nascido Argemiro e brasileiro, o célebre concertista.
Nosso Argemiro contente é expert em Caruso.
E em Maria Callas.
E em René Fleming.
E disserta como poucos sobre os Pavarottis e Carreras desta vida.
O outro Argemiro, aquele que parece ter torturado a própria mãe em seus piores dias, fica mudo durante todo o banho e dele nada se escuta.
Nessa segunda situação, quando sai pela porta do banheiro e seus olhos cinzentos o acompanham até a mesa do café, já sabemos.
Diante das frutas – que faz questão de que estejam descascadas e cortadas em tamanhos uniformes – , sentencia:
Sinto-me plúmbeo.
Estou macambúzio.
Maldita paúra.
Indizível banzo.
Sou um homem embezerrado.
E valitudinário!
Qualquer das expressões denotam que ele não acordou do lado certo da cama.
Saudade de algo ou alguém, ou a simples sensação de frio podem mudar seu estado de espírito por períodos que podem durar até uma semana.
Gosta de bons vinhos.
Bom champagne.
Bom malte escocês.
Mas à mesa não possui o mesmo requinte.
Se pudesse, comeria arroz e bife em todas as refeições.
Já o vi trocar uma ida ao melhor restaurante francês da cidade por um pão com ovo cozido. E não me pareceu arrependido.
Argemiro é assim, um poço de contradições. E manias.
Pena vê-lo agonizar às vésperas de uma viagem. Pesa a bagagem duzentas vezes. Trezentas vezes.
Tem paranóia com agentes alfandegários e entra em pânico diante da mera menção de que uma de suas malas possa ser aberta na saída ou na chegada.
Não que ele leve nelas algum objeto ou produto proibido, mas a possibilidade de ver espalhadas pela bancada de revista suas cuecas e meias – que ele enrola e acondiciona de maneira artesanal – , causa-lhe fobias, mal estar, uma quase demência.
Toda vez que sai para comprar roupas, leva para a loja ou boutique uma fita métrica e mede, peça por peça, uma por uma, antes de experimentá-las.
Ele conhece suas medidas antes, durante e depois das refeições e jura sentir coceiras, caso leve para casa alguma calça pega frangos, ou uma camisa larga ou justa.
Outra mania esquisita é a de colecionar caixinhas. Tem milhares delas.
Quadradas, ovais, triangulares, brancas, pretas, multicolores, grandes, pequenas, fundas, rasas... Ele precisaria de um novo cômodo da casa só para guardar sua coleção. Na falta de ter o que armazenar dentro delas, guarda caixinha dentro de caixinha, e passa dias inteiros organizando o acervo.
Usuário de sabe-se lá quantos tipos de remédio, pouco faz para acompanhar o tratamento médico com algum tipo de dieta.
Já enfartou duas vezes. Sofre de diabetes. Tem pressão alta.
E torce para o Coritiba Football Club.
Informado pelo médico, de que deveria abrir mão de alguns pequenos prazeres, caso quisesse viver mais, retrucou ao doutor que havia acabado de escolher, naquele instante, o epígrafe que iria adornar sua lápide:
- Argemiro parou de fumar!
E é isto mesmo.
Argemiro, nosso incorrigível Argemiro, só vai para de fumar ou beber ( ou de fazer qualquer outra coisa que apeteça ou lhe dê prazer), no dia em que pedir a conta e partir desta para uma (muito) melhor.


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Tuesday, June 12, 2012

A Prainha do Xuá


Aqui, quando faz frio é de rachar a mamona.
E quando faz calor é de cozinhar os miolos.
Sendo assim, de clichê em clichê, vamos nos queixando da vida.
Memória curta, temos nós, eternos insatisfeitos.
Se faz frio, é porque faz frio.
Se neva, é porque neva.
Se chove, é porque chove.
Se faz calor, é porque faz calor.
Criei-me em Governador Valadares, que julgava ser o lugar mais quente do mundo.
Era um Saara sem beduínos, sem camelos, palmeiras, nem tempestade de areia.
No meu coração, Valadares será para sempre um oásis de brisas benfazejas, belas odaliscas e xeiques de riquezas invisíveis.
Como era bonita e quente, aquela minha Gevê!
Tão quente, que um jornalista de passagem pela cidade escreveu um texto de onde chamou “sucursal do inferno”.
Em Valadares vi um sujeito fritar um ovo no capô de um fusca.
Vi o Rio Doce emagrecer, todo ano, sua cintura afinando e produzindo dezenas de praias ao longo de seu curso. A mais famosa delas era a praia do Xuá, agregada a uma ilhota próxima à ponte São Raimundo.
Era para lá que íamos.
Foi naquela ilhota que, menino ainda, vi um índio.
Aliás, um bugre, que é como os adultos a ele se referiam.
No meu desconhecimento de geografia, imaginava que um bugre era alguém vindo de um país distante, talvez na Cordilheira dos Andes, talvez na fronteira da Indonésia ou no Aconcagua.
Bugrelândia?
Bugrária?
Seria um bugre, o mesmo que um búlgaro?
Criança, ainda, pensei ter desvendado o mistério: o homem seria de Campinas, terra do Guarani, clube de futebol que tem um bugrezinho como mascote.
E o meu bugre ficava acocorado na porta de um palheiro, debulhando milho e bebendo cachaça, que os brancos davam para ele.
Aquele índio era uma espécie de guardião da ilha, e ali ele plantava algumas coisas e criava galinhas.
Não tinha mulher nem filhos.
Não tinha nada, aquele pobre homem de cabelos lisos e desgrenhados.
Era ali que ele dormia sozinho escutando apenas a música das criaturas da noite e o barulho da correnteza bolinando as pedras.
Era ali o seu reino de um homem só.
E sua prisão rodeada de águas.
Quando o calor aumentava na cidade ao ponto de quase explodir os termômetros, o rio ia definhando e formando suas prainhas, o Xuá era o destino de muitos de nós.
Tinha muito de paraíso naquelas areias brancas.
Do fundo de nossas precariedades, aqueles prazeres temporões saciavam uma sede muito maior que a nossa de mar e de amor.
De quebra, ainda nos oferecia uma oportunidade única de socialização.
Farofa geral, meus senhores.
Garrafa de pinga, meio engradado de cerveja em encardidas caixas de isopor, refrigerantes, frango assado e farofa.
Muita farofa.
Confesso que fui useiro e vezeiro. Confesso…
Homens jogavam carteado, mulheres tricoteavam sobre a vida alheia, enquanto as crianças jogavam futebol com uma bola de plástico da marca Pelé. Uma pobreza de não dar dó.
Muitas vezes nos afastávamos dos adultos e saíamos explorando as margens, roubando manga, jambo, jenipapo e ingá dos quintais ribeirinhos.
Não raro, éramos expulsos a tiros de sal.
Uma vez mais, confesso.
Alguns de nós aproveitavam a oportunidade e lançavam a sorte nas pescarias.
Tinha muito piau, lambari, tucunaré, curimatã, bagre e corvina.
Nadávamos, mergulhávamos, pescávamos e passeávamos de pedra em pedra como se não existisse o amanhã.
E, para alguns, não existia mesmo.
Muita gente perdeu a vida se refrescando nas águas traiçoeiras daquele rio.
E se, as mortes ocasionais serviam como alerta para os perigos das águas, elas não eram amedrontadoras o suficiente para nos afastarem de lá.
O medo de morrer afogado terminava antes da missa do sétimo dia.
Tenho imensa saudade das prainhas do Rio Doce.
Tanta saudade que, hoje, vendo o sol e o calor nos transformarem nessas insuportáveis bolas de mau humor, carne e suor, daria qualquer coisa para aportar numa prainha como aquela do Xuá.
Ficaria quietinho, sobre uma pedra lodosa, sentindo as águas do tempo passeando tranqüilas sobre meu corpo, levando meus cansaços, meus pecados, minhas culpas, minhas dores.

Tuesday, June 5, 2012

O derradeiro canto do cisne

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A imprensa brasileira só fala neste assunto.
Do Oiapoque ao Chuí ele é tema obrigatório nas rodas especializadas no rádio e na televisão.
Nas ruas, as opiniões são distintas:
Uma minoria - em preto e branco - o elogia, quer abraçá-lo.
Uma maioria esmagadora - em verde e amarelo - o execra, quer crucificá-lo.
Falou-se muito.
Bradou-se.
Alguns de dedos em riste.
Muitos o rejeitam.
Tantos o trucidam.
São milhões.
Eu me pergunto:
Por que Ronaldinho Gaúcho é tão odiado?
Por que motivo grande parte do Brasil quer vê-lo de joelhos, rastejando?
Seus melhores dias como futebolista estão no passado, certamente.
Seus dias de glória parecem distantes, como a invenção da internet ou o surgimento da mulata globeleza.
Mas ele não fez mal nenhum a ninguém.
Não matou. Não roubou. Não sequestrou.
Não corrompeu ou foi corrompido, agindo falsamente em nome do povo.
Pelo contrário: Ronaldinho Gaúcho sempre foi bom filho, bom irmão.
Fora do Brasil, durante muito tempo, foi motivo de orgulho nacional.
No retorno - tantos anos depois -, optou inicialmente pelo clube de maior torcida, como se quisesse, nesta volta, os afagos, os abraços, os braços do povo que ele nunca deixou de amar.
Mas o tiro lhe saiu pela culatra.
No futebol, um atleta com idade superior a 30 anos está na reta final da carreira.
Ele sabe. Sabemos. A diretoria rubro-negra, também.
E não é culpa de Ronaldinho se o Flamengo viu nele a possibilidade de lucros estrondosos de bilheteria e em venda de camisas.
Deu certo durante um tempo, mas bastou o time começar a não vencer, para que ele se transformasse numa espécie de bode espiatório, num Judas Escariotes, malhado impiedosamente pela diretoria e torcida.
A partir das derrotas, Ronaldinho virou pagodeiro, baladeiro, mulherengo e cervejeiro, comportamento absolutamente comum da grande maioria de seus colegas de profissão.
Mas Ronaldinho é alvo fácil.
Afinal, Ronaldinho Gaúcho ganha mais de um milhão por mês.
Ganha?
Não, não ganha.
Há mais cinco meses sem receber salário, queria ver qual o empregado que iria feliz para o trabalho.
E que cumprisse de bom grado a sua função.
O Flamengo e sua pífia diretoria quer tapar o sol com a peneira.
E só quem é absolutamente cego de consciência é que não consegue perceber, e fazer esta conta tão fácil de se fazer.
O Ronaldinho da Gávea não é o Ronaldinho dos tempos de Barcelona.
O mundo inteiro sabia (e sabe) disto.
É mais fácil arrastar sua carreira em decadência e sua moral de cidadão em praça pública - numa absurda inversão de valores -, do que assumir que se fez um péssimo negócio e, mesmo assim, honrar os compromissos assumidos, como qualquer pessoa de bom caráter tem a obrigação de fazer.
Torço muito para que Ronaldinho Gaúcho arrebente no Atlético-MG, grande arquirival do meu time de coração.
Que eu sofra com suas boas atuações e que chore com os seus gols.
Que ele jogue muito e cale seus críticos.
Que retome o caminho da vitória e que a bola continue lhe chamando por "tu", com a intimidade e carinho de sempre.
E que ele, com a carreira e a reputação reabilitadas, venha jogar aqui no Red Bulls, bem pertinho de nós.
Como fez David Backham no Los Angeles Galaxy, antes de seu derradeiro canto do cisne.
Ronaldinho merece. O bom futebol merece.
Esta estória merece um final feliz.