Monday, December 28, 2020

Flor de pedra


A pandemia me tirou pessoas e coisas.

Perdi o convívio de gente que amo, cancelei uma viagem de duas semanas à Toscana e não trabalhei mais.

Fui morar debaixo da cama, fazendo companhia aos empoeirados sapatos, que chegaram a pensar que eu morri por nunca mais termos saído de casa.

Eles têm medo de desaprender a caminhar.

Dançar, nunca souberam.

Voar não se atreveriam. Meus pés têm medo de altura.

A lista de perdas é grande, contabilizei. Algumas são irreparáveis.

Mas trago também notícias amenas e salutares, sacramentando a repetição da parábola do limão que a vida dá.

É azeda e doce a limonada do viver.

Às vezes consigo dormir, mistério que jamais havia decifrado.

Parei de fumar um dia antes de anunciarem as medidas de prevenção ao coronavírus aqui nos EUA.

Esqueci os cigarros na casa de minha mãe em Betim, aonde eu havia chegado um dia antes. Seguíamos para São João del Rei e não fumei mais, desde então.

Parei parando, sem alardear nem fazer promessas a São Judas Tadeu, a quem sempre recorro nas causas impossíveis.

Sinto muita falta do tabaco, confesso.

Às vezes sonho que estou fumando, suado e nu ao lado de Rachel Welsh - também nua -, deitado numa cama de hotel, fazendo círculos de fumaça que nunca chegam ao teto.

O cigarro era um amigo de todas as horas.

Ele foi fiel e nocivo companheiro, sempre que algum pensamento de aflição me acometia.

Nos momentos de prazer também esteve presente, principalmente após um café ou uma Stella Artois.

Falando em Stella, outra notícia urge.

Entrei na pandemia bebendo muito.

O que é muito?

Duas garrafas de cabernet sauvignon, todos os dias, para aliviar a dor da incerteza.

Ou a certeza da dor.

Para 'variar', uma vez por semana bebia o inocente isotônico de cevada.

Há cerca de três semanas, porém, o fígado mandou um recado inequívoco e eu o escutei, desconfiado.

Parei geral.

Ao contrário do cigarro, não sinto a menor falta da bebida.

Aconteceu.

De vez em quando bebo uma taça de vinho ou uma long neck. Eu não sinto mais aquela urgência.

É como se o interruptor tivesse saído do On e entrado em Off.

Outra mudança positiva foi o retorno de uma velha parceira.

Recomecei a escutar música o tempo inteiro, como sempre fiz, mas não andava fazendo.

Descobri canções incríveis e voltou aquele arrepio na nuca e braço, uma indizível sensação.

Comprei um violão pela internet e estou aprendendo a tocar umas coisinhas com a ajuda do Youtube.

Li menos livros do que deveria até aqui, é verdade, mas estou devorando "Essa Gente", o mais recente de Chico Buarque. E não vou parar por aqui, posso garantir.

Vi mais filmes durante os últimos quarenta dias do que nos últimos quarenta anos.

Investi boa parte do tempo que abunda numa horta com cenouras de quatro cores, quinze pés de jiló, tomates de nove tipos diferentes, pimentões, sálvia, salsinha, cebolinha, tomilho, manjericão, alecrim, physalis, morangos, framboesas e mirtilos.

Fui a um bosque perto de casa e recolhi dezenas de pedras. 

Eu, que tinha interrompido a mania de recolher pedrinhas de lugares que visitava pelo mundo para presentear quem amo, fiz um canteiro de seixos dedicados a ninguém. 

Não tenho pendor artístico, mas as pintei, pétala por pétala, num exercício que antes pensaria ser desnecessário e fútil.

A pandemia, que me tirou tantas coisas, barganhou, dando-me agora essa estranha mania de transformar futilidade em necessidade.

E pedra em flor.

‘Ruim de cama’, desde menino, há noites em que consigo dormir.

Quando isto acontece, sonho com um planeta em que as pessoas transitam pelas ruas sem usar máscaras.

Um lugar imperfeito em que abraços são permitidos e os beijos não representam uma sentença de morte.

 

Monday, December 21, 2020

O tio Sukita


(Ao Carlos Borges)


O tempo passa, e a gente, às vezes, não se dá conta. Não é o meu caso, quero crer.
Os ossos não mentem.
A agilidade sumiu.
A flexibilidade do corpo, também. Há cerca de dois meses empenei o ciático tentando amarrar os sapatos, e mesmo os cadarços pareciam itens de museu.
Passei duas semanas na fisioterapia. Mal dormia. Mas já estou quase bom.
A rotina muda com o passar dos anos sem que a gente perceba. É como se a pessoa fosse anoitecendo por dentro e tudo o que era claro e diurno ganhasse tons de penumbra até o entrevamento absoluto.
Breu.
E o espelho é cruel.
A barriga se expande para quase todos, principalmente os sedentários, como eu.
Mas a flacidez não é facultativa. Ela é institucional, e não há botox milagroso que resolva.
Ao redor dos olhos rascunha-se uma espécie de mapa rodoviário do estado onde a pessoa nasceu. Para o meu desgosto, Minas Gerais é rabiscado de estradas, algumas em péssimo estado de conservação.
E o despertar para o definhamento é rude, já que o tempo não leva prisioneiros.
Há coisa de dois anos, em Nova York, dentro de um desses modernos elevadores, todo metálico e com espelho no teto, fiz uma triste descoberta.
Apertei o número do andar desejado e, sabe lá Deus o porquê, caí no desatino de olhar para cima.
Foi grande o susto.
Ela estava lá, olhando para mim.
Ela!
Aquela coroa sem rei.
Bem no cocuruto, o quipá de não judeu.
A coroinha do frade, uma auréola sem anjo.
Aquele latifúndio amazônico devastado de mim.
Eu não me dera conta do avançado ‘desmatamento’, sem quem nenhuma ONG internacional intercedesse e interpelasse Jair Bolsonaro, senhor de todos os desmatamentos e queimadas deste mundo.
Encarequei carecando, sem a permissão do Houaiss.
A partir daí passei a prestar mais atenção nas pessoas me chamando de senhor.  Constatei que não vem de agora a nova regra.
Daqui a não muito tempo terei prioridade para entrar no avião. Vivesse no Brasil, teria passagem gratuita nos ônibus coletivos.
No entanto, tenho alguns amigos que se recusam a aceitar que o tempo passou, e eles já não são os garanhões dos anos 1970.
Vestem-se como rapazolas do novo milênio, andam de óculos escuros da Oakley, fazem tatuagens, frequentam academias de ginástica para impressionar as moças e ganhar músculos.
É preciso ser muito forte para deter o giro do velho ponteiro do relógio. E eles pensam que são.
Tenho um amigo que foi muito boa-pinta na juventude. E não há nada mais antigo do que a expressão ‘boa-pinta’.
Ele era daqueles moços bem-apessoados, outro termo que fui buscar no meu velho baú de ‘velheiras’.
No tempo da Aqua Velva e das calças bocas de sino, Valdir fazia muito sucesso com os seus cabelos longos e a coleção de LPs do Black Sabbath.
Moço da alta classe média valadarense, ele desfilava pela cidade com o seu Passat cor de vinho, pneus tala larga e rodas de magnésio. Aquele carro era uma espécie de motel ambulante e ele se vangloriava disto.
“Eu tenho um ímã de mulheres”, gabava-se.
Três casamentos depois, esse Tio Sukita (da propaganda de um antigo refrigerante) continua na ativa, com sua metralhadora de galanteios defasados, muitos deles se encaixando na categoria assédio sexual, e dignos de interpelações severas aos olhos da lei.
Mas, se o Valdir é agressivo, as ‘gatinhas’ de agora não deixam barato. Como se mostrariam um pouco antes da pandemia, num bar da Savassi, em BH.
Refestelados na inocência da tarde, oito pré-anciões bebiam cerveja esmiuçando o tempo em que eram a última novidade de Deus.
Foi quando um grupo de quatro moças muito bonitas passou por nós em direção ao banheiro do bar.
Valdir viajou no tempo, remoçou, ‘garanhou-se’ e disparou uma deselegante cantada.
As moças pararam, não riram do parnasianismo do galanteio e uma delas voltou até nós.
Dedo em riste, meio-sorriso de Lolita de Nabokov (a outra metade era de Margareth Thatcher), ela foi direto ao Valdir:
   - Meu senhor, quem gosta de pau velho é orquídea. Se enxergue!
Valdir fingiu que não era com ele, chamou o garçom e tentou consertar:
A rodada é por minha conta!
Todos dissemos amém.

Tuesday, August 25, 2020

O ardina


Quando cheguei a Newark, em 1984, meu primeiro emprego foi em uma padaria da Ferry Street. 

O salário era de 140 dólares semanais para fazer pastéis de nata, aquela maravilha lusitana que no Brasil é chamada de pastéis de Belém.
Aprendi rapidinho, graças à boa vontade de um senhor madeirense, que escreveu em um pedaço de papel de pão as medidas exatas de açúcar, leite e gema de ovos.
Como eu não tinha lugar para morar, dormi algumas noites em cima dos sacos de trigo, escondido no porão do estabelecimento. 
Quando fui descoberto, recebi um ultimato do proprietário, que me deu três dias para arrumar um pouso ou perderia o emprego.
Nos horários de almoço, eu costumava buscar abrigo em uma livraria das Cinco Esquinas.
Lá eu passava os momentos de folga folheando Fernando Pessoa e Florbela Espanca sem comprar absolutamente nada. 
Foi lá que conheci Sebastião Bento, dono de uma rádio que funcionava por cabo telefônico - tente explicar isto a um adolescente de hoje -  diretamente de Portugal. Ele era o rei do futebol por aqui.
Em dias de jogos do campeonato lusitano, uma pequena multidão de patrícios se acotovelava em vários pontos da Ferry Street, escutando sair dos alto-falantes instalados nas marquises aquilo que chamavam de "relato da bola". 
A boa e velha transmissão radiofônica de uma partida de futebol ganhava para mim uma nova conotação.
Sebastião Bento se apiedou da minha história - contada pela dona da livraria - e me levou ao Campino's, um restaurante de comida ibérica na Jabez Street. Eles estavam precisando de um lava-pratos.
Não consegui um quarto para dormir, mas arranjei outro emprego. 
Lá eu ganharia 220 dólares semanais, trabalharia uma média de 13 horas por dia, folgaria às quintas-feiras e comeria de graça.
Já no primeiro dia fiz amizade com Franklin Ferreira, um aveirense que vivera por 17 anos no Brasil e tinha até carteirinha de sócio da Portuguesa de Desportos.
Franklyn me tomou pelo braço após o horário de movimento e levou a uma senhora que alugava quartos na Wilson Avenue.
Por 17 dólares semanais eu havia, finalmente, achado um lugar para descansar os ossos e me lavar. 
Visivelmente 'prescrito', fazia uma semana que aquele aprendiz de lava-prato não tomava um banho.
O Campino's tinha um salão de festas com capacidade para 600 pessoas e teria, já na minha "estreia", um jantar-show com Roberto Leal, cantor transmontano que vivia em São Paulo e ganhava fortunas se apresentando nas comunidades lusas espalhadas pelo mundo.
Nunca vi tanta louça na vida, mas o esforço foi amenizado pelo som abafado que vinha do salão. 
A voz do cantor que eu tanto detestava quando o ouvia nas rádios - ou via nos programas do Silvio Santos - me arrepiara por inteiro.
Com saudade de casa, derramei lágrimas legítimas, principalmente durante a introdução de "Bate o Pé", um de seus maiores sucessos. 
Admirador de Chico Buarque e Tom Jobim, confesso que os traí.

Nunca vou me esquecer da generosidade do Franklin, nem dos enormes desafios que tive que superar pela promessa de um green card. 

Foram quatro anos de muita entrega e preconceito, tendo que ouvir todos os dias que o brasileiro é preguiçoso e que eu era uma (rara!) exceção. Tive que trabalhar dobrado para não perder a deferência.
Um dos episódios que mais deixaram marcas aconteceu no dia - bem no início - em que contei que escrevia crônicas para um jornal de minha cidade. Um dos cozinheiros sorriu maliciosamente e disse:
- Então, no Brasil, tu eras um ardina, não?
Baixei a cabeça sem conhecer o significado da palavra inédita, uma das tantas que no Brasil falamos de outra maneira.
Todos riram e começaram a me chamar de ardina, a partir de então. O nome Roberto, com que fui registrado e batizado por meus pais, havia sido substituído sem o meu consentimento por uma palavra desconhecida, utilizada de forma maldosa para me diminuir.
Naquela época não havia internet e, consequentemente, o Google com sua abundância de dicionários. Tive que esperar até o dia da folga para desfazer o mistério.
Na livraria eu descobri que ardina é aquele que, no Brasil, chamamos de jornaleiro. 
E uma tristeza enorme tomou conta de mim. 
Quando apetecem, as pessoas conseguem ser cruéis com seus semelhantes. Humilham por puro prazer. 
Em 1988 eu fundaria o Brazilian Voice, o primeiro jornal brasileiro de New Jersey.
Em um primeiro momento, eu escrevia todas as matérias, ajudava na montagem e ralava na venda de espaços publicitários. Após o jornal ser impresso, saía numa van distribuindo o periódico pelas comunidades de quatro estados da Costa Leste. 
Livre da prisão da cozinha, eu era, finalmente, um jornalista.
E jornaleiro! 
Só que, agora, a pecha me enchia de orgulho.
O veículo se firmaria, ganhando importância para os brasileiros e respeito dos próprios portugueses. 
Fazendo um rápido balanço mais de três décadas depois, tenho a absoluta certeza de que minha história de imigrante teve um final feliz.
De vez em quando, esbarro pelas ruas com ex-colegas dos tempos de cozinha. 
Alguns já se aposentaram e outros continuam trabalhando em restaurantes, um dos ofícios mais duros que existem. 
Agora me chamam pelo nome, devidamente acrescido do sobrenome. 
Mas já não faz a menor diferença.

Sunday, August 9, 2020

Layla, a gorda

Totó, Til e Rex eram nomes populares de cachorro naquele início da década de 1970.

Toda criança merece ter um bichinho de estimação para chamar de seu. Mas cresci sem ter tido um, o que não deixou traumas ou mágoa. Papai não gostava, talvez por ter outras quatro bocas para alimentar.
Cresci, mudei, casei, levei o coador e tive três filhas, trafegando quase sempre na contramão do meu velho.
Nesta humilde residência em um país distante do Brasil já habitaram - ou habitam - cães, coelhos, peixes, calopsitas, uma iguana e até um papagaio australiano que tem parte com satanás.
Cacatua, essa ave neozelandesa de plumagem branca e topete do Supla, destruiu metade da minha biblioteca, devorou portais, escrivaninhas e uma mesa de centro com a competência de um exército de cupins.
Cansado de suas estripolias, convoquei uma reunião familiar emergencial e anunciei:
   - Ou ele ou eu.
Clarice, a caçula - na altura com oito anos -, tomou a palavra e decidiu por todos:
   - Pai, telefona pelo menos uma vez por mês para ver se estamos precisando de alguma coisa.
Cacatua ficou na casa, claro.
E eu também. Só que, agora, desmoralizado e reduzido a uma incômoda desimportância.
Felizmente tive o consolo e solidariedade de uma adorável criatura.
Layla foi a terceira das três sharpeis que aportaram por aqui.
Veio depois de Jade e Nina. 
Ao contrário de suas predecessoras, nunca nos deu trabalho.
Morávamos em Kearny quando Jade se livrou da coleira e atropelou um Ford Taurus a 45 milhas por hora. 
A lataria ficou bastante amassada e tive que pagar o funileiro.  
Fora o susto.
E a danada da Nina fugia semana sim semana não, movimentando os vizinhos em solidária missão de busca e captura.
Quando Layla chegou por aqui em 2013, aos três meses de idade, trouxe na bagagem uma indescritível alegria.
Gorducha, felpuda, fofa, parecia um daqueles bichos de pelúcia que moravam no quarto das meninas. 
Cheia de vida, o rabo sempre abanando de canina felicidade, era perfeita.
Escrevi inúmeros textos com ela encostada aos meus pés. 
Vimos muitos filmes juntos, quando todos na casa dormiam. 
Assistimos calados à derrocada do meu Cruzeiro em sua queda para a Série B do campeonato brasileiro.
De vez em quando saíamos para passear, ela me arrastando pelas ruas do bairro, dando uma força ao lento companheiro.
Há cerca de três meses começou a perder peso. Logo ela, a quem chamávamos carinhosamente de 'gorda'. 
Levamos ao veterinário, mas os remédios não surtiram efeito.
Mudamos de profissional e, mesmo com exames de raio x, nada de anormal foi constatado.
Feliz, brincalhona, solidária, mantinha o comportamento de sempre, apesar de estar cada vez mais magra.
A solucão foi encaminhá-la a uma renomada veterinária de Nova York, uma das grandes especialistas da raça sharpei no país.
Somente na terceira visita e novos exames, foi detectado o pior: o câncer já havia se alastrado por várias partes do corpo. Tinha pouquíssmo tempo de vida.
Ficamos arrasados.
Nas últimas semanas comecei a cozinhar para ela, que já não tinha mais apetite. E a alimentava como um pai que alimenta um filho doente. Tentei espichar ao máximo o nosso tempo juntos. 
Nos fins de tarde, um de nós a colocava no assento do carona do carro e saíamos para dar uma volta. 
Ela sempre adorou a sensação do vento balançando as pelancas da bochecha e a papada, fazendo um barulhinho bom.
Ontem ela amanheceu com imensa dificuldade de respirar. Sofria tanto.
Mordia o ar, como se quisesse mastigá-lo, fazendo o som de um fole furado, naquilo que tentava dele se alimentar.
Andava de um lado para o outro com aquele 'gato' ronronando dentro do peito, o olhar pedindo socorro, mas o rabo abanando, como que se desculpando por estar assim.
A agonia extenuante não nos deu outra alternativa a não ser ligar para uma veterinária especializada em eutanásia animal a domicílio.
O relógio apontava 22 horas quando escutei o carro estacionando na frente da casa.
Ajoelhei-me no chão da sala, abracei-a e beijei-a com o rosto molhado de tanto chorar.
Agradeci muito. Agradeci demais.
Ato contínuo, subi as escadas, deitei-me na cama, coloquei os fones de ouvido no último volume e fiquei escutando Egberto Gismonti cantar o Hino do Carmo.
Meu coração parecia querer explodir de tanta dor.
Ela sairia da casa dentro de uma sacola de plástico transparente alguns minutos depois.
Mas eu não escutei.
Nem vi.


* Foto do passeio com Layla na tarde deste fatídico 6 de agosto, algumas horas antes do fim.
 

Tuesday, February 18, 2020

A fundura da queda

Não tem ninguém em casa. A família foi passar o carnaval no Brasil e você fica em New Jersey. Fica por compromissos de trabalho, mas fica também por opção. Com um pouquinho de esforço teria ido junto.
Fica só nesta casa grande, na companhia de duas cadelas e três passarinhos, que você tem obrigação de alimentar e cuidar todos os dias, apesar de não gostar de animais dentro da residência.
Trocar o frio do inverno americano por uns dias de calor no litoral de Santa Catarina não esteve nas cartas, nos búzios ou na palma de sua mão. Você ficou de fora. Tudo bem. Conforme-se.
Você se levanta tarde, depois de ter bebido um Rio Hudson de cerveja na véspera, está meio ressaqueado, o corpo pede um banho quente.
Você fica nu, liga o chuveiro ainda meio dormindo e nada acontece. As baixas temperaturas deste inverno congelaram o encanamento e a água não chega ao segundo andar. Congelou tudo. Nada feito. O jeito é voltar para a cama.
Foi o que fiz.
Mas mesmo a cama quentinha fica um ninho de espinhos após um certo tempo.
Apesar do frio e da neve lá fora existe uma vida para viver. 
É sábado, eu sei, e hoje não trabalho.  
Lembro-me de um bacalhau que comprei para estrear o novíssimo forno elétrico.  Nem tudo está perdido.  
Na geladeira ainda tem umas cervejas tchecas, maravilhosas, que sobraram da visita de Fábio Portugal.
Não, nada está perdido.
Conformo-me com a ausência do banho, mesmo sendo uma daquelas pessoas que não se são sem um banho bem demorado pela manhã.
Levanto a persiana, bisbilhoto a rua e vejo que volta a nevar forte.
A neve promove um silêncio ensurdecedor quando cai.   Trata-se de um fenômeno belíssimo em um cartão postal ou numa cena de filme.   Na vida real é gás paralisante.
Tudo fica em câmera lenta.
Ela constrói um momento de rara beleza, é verdade, mas também de aniquilamento e sofrer.
Resolvi cuidar da vida e desci de cueca - a boa e velha samba canção -, uma camiseta de mangas-compridas com uma estampa de Adoniran Barbosa e uma pantufa, presente de natal de minha filha do meio.
Desço ao porão da casa e percebo que Layla, a cachorrinha mais nova, havia transformado o ambiente em banheiro. Fiquei aborrecido, peguei um balde com água, detergente, e joguei por todo o chão.
Eu que já havia colocado o bacalhau no forno elétrico, lá em cima, temi que ele queimasse enquanto higienizava o porão. Resolvi interromper a limpeza e ir diminuir a temperatura do forno antes de executar a tarefa.
No que girei o corpo no sentido da escada, a perna direita foi em direção ao destino num escorregão. O resto do corpo não.
Pensem numa bailarina com as pernas em compasso aberto.
Uma bailarina bem acima do peso, que se ressalte.
Sentindo que o joelho iria se partir em dois, arremessei o corpo - reflexo de enferrujado goleiro de futebol de salão - e encontrei uma inconveniente pilastra.
Bati com o quadril em sua quina pontiaguda e vi estrelas. Constelações.
A boca amargou.
Eu ainda me contorcia de dor, o corpo embebido naquela mistura de detergente, água e urina de animal, quando vi tudo escurecer.
A luz apagara naquele exato momento.
Em 31 anos vivendo em Livingston, com exceção à catástrofe do furacão Sandy, a eletricidade jamais falhou na Hazelwood Avenue.
Mas ali ela me abandonara e eu me contorcia de dor, sozinho, em plena nevasca.
Pensei em pedir socorro, mas o telefone celular se encontrava do lado de minha cama no segundo andar e eu não tinha como me comunicar.
Fiquei mais de seis horas no escuro, sozinho, acometido por fortes dores, sentindo uma fragilidade que desconhecia até então.
Acabei encontrando forças e me arrastei até o quarto, numa maratona que jamais esquecerei.
A luz voltaria.
A água quente, também.
Tomei um percocet, dois dorflex e me entreguei.
Foi sinistro, admito. Tive medo.
Aprendi a entender um tanto bom de coisas da nossa condição humana. E a acreditar em milagres.
O forno em que eu assava o bacalhau era elétrico e estava ligado a 350 graus Fahrenheit, quando a luz apagou.
A casa certamente arderia comigo dentro.