Wednesday, August 29, 2012

Dois poemas de Maria do Rosário Pedreira



 Não voltarei a esse corpo


Não voltarei a esse corpo; e não sei
se aqueles que o vestiram antes e depois
de mim souberam nele o verdadeiro calor
e lhe conheceram os perigos, os labirintos,
as pequenas feridas escondidas. Não voltarei
provavelmente a sentir a respiração
palpitante desse corpo, desse lugar onde as ondas
rebentavam sempre crespas junto do peito, do meu peito
também, às vezes.

Uma noite outro corpo virá lembrar essa maresia,
o cheiro do alecrim bruscamente arrancado à falésia.
E eu ficarei de vigília para ter a certeza de quem me
recolheu,
porque os cheiros tornam os lugares parecidos, confundíveis.

Quando a manhã me deixar de novo sozinha no meu quarto
trocarei os lençóis da cama por outro, mais limpos.
 
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Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi


Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi
 talvez para sempre ― a casa e o cheiro dos livros,
 a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,
 camas desfeitas algures pela manhã,
 o abrigo de um corpo agitado no seu sono. Guarda-o
 serenamente e sem pressa, como eu nunca soube.


E protege-o de todos os invernos ― dos caminhos
 de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
 as feridas devagar, com as mãos e os lábios,
 para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
 a sua respiração cálida e ofegante
 no compasso dos sonhos, que é onde esconde
 os mais escondidos medos e anseios.

Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz
 antes de adormecer. E depois aguarda que,
 na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te,
 ainda que não te tenha revelado uma só vez o que queria.

Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul
 que os dias trazem à casa quando são tranquilos.
 E nada lhe peças de manhã ― as manhãs pertencem-lhe;
 deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
 atravessa a rua enquanto ainda houver sol. E assim
 haverá sempre sol e para sempre o terás,
 como para sempre o terei perdido eu, subitamente,
 por assim não ter feito.


Sunday, August 19, 2012

Da desinvenção do sono e outros pesadelos


Eu não durmo há quase uma semana.
É como se o sono tivesse desertado de mim e ido baixar em outra freguesia.
Ah, o sono, esta raridade, objeto do desejo sempre  tão elusivo  para mim.
Das muitas coisas da vida que não se encontra  para vender em supermercado, este é um artigo de luxo que  eu compraria às carradas só para ver se, um dia, eu  ficaria em dia com ele.
Ou ele comigo, já nem sei.
O sono sempre me pareceu um anjo temperamental vestido com uma túnica de pele de ovo, brandindo um condão de isopor onde se lê: frágil . Extremamente frágil.
Nunca fui bom de cama, confesso.
Já fiz sonoterapia, tratamento à base de chás e até simpatia. 
Nada funcionou.
Sempre dormi mal e pobremente, como atestam estas olheiras escuras e os  olhos  eternamente encarnados, o  que já me rendeu  alcunhas como  Zorro e Guaximim.
O pior de todos foi “Colírio de Groselha”, que guardei a sete chaves até esta confissão.
Sei quase tudo de insônia e muito pouco da arte de dormir.
Uma noite de insônia é um banho lodoso nas águas de um pântano, eu posso garantir.
É uma rima de Augusto e uma rosa de Drácula.
Um filme de Hitchcock e uma carta da Receita Federal.
É a reeleição de Malluf e a perpetuação de Sarney.
É um lugar escuro e frio  como o porão de um calabouço e a chibatada raivosa do carrasco de um navio  negreiro.
É uma ameaça de um  tsunami, o buraco de uma bala perdida e a mordida de um pitbull.
Nas noites de insônia os pesadelos descem como assombrações.
Os medos são coroados quando o sono e a coragem se escondem para namorar num lugar fora do corpo.
E a ausência deles é ferida aberta recebendo um punhado de sal.
É um desprezo de pai, uma mágoa de mãe.
Uma noite de insônia é  - inteiramente - feita de brutal punição.
De sufocante  angústia, de inquietude e pandemônio íntimo.
É um beijo do demônio,  uma carícia de satanás.
É afogamento nas águas escuras do caos e é aquele saveiro-fantasma, que não encontrou o cais.
É o padecer de sede no meio do mar.
E é o perecer de fome, em qualquer lugar.
É recordar da caloi - aquela caloi -, que nunca chegou no natal.
É ser derrotado - outra vez - com a repetição da lembrança do gol adversário, ilegítimo, na decisão do campeonato.
Aquele gol que o juiz safado deu.
E é se lembrar que ela foi embora e que não voltará mais.
Nunca mais.
E é lembrar dela e pensar que você vai morrer de saudade e inanição.
E é morrer de verdade e não desejar  reencarnação.
Nas noites de insônia, parece que Deus sai para tirar um cochilo e o demônio reina, onipresente, inaugurando este estranhíssimo carnaval feito de dores e outras alegorias.



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Thursday, August 16, 2012

Cantiga de Enganar














O mundo não vale o mundo,
meu bem,
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
O mundo,
meu bem,
não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir,
de quê, de mim? ou de nada?
O mundo, valer não vale.
Tal como sombra no vale,
a vida baixa...e se sobe
algum som desse declive,
não é grito de pastor
convocando seu rebanho.
Não é flauta, não é canto
de amoroso desencanto.
Não é suspiro de grilo,
voz noturna de nascentes,
não é mãe chamando filho,
não é silvo de serpentes
esquecidas de morder
como abstratas ao luar.
Não é choro de criança
para um homem se formar.
Tampouco a respiração
de soldados e enfermos,
de meninos internados
ou de freiras em clausura.
Não são grupos submergidos
nas geleiras do entressono
e que deixem desprender-se,
menos que simples palavra,
menos que folha no outono,
a partícula sonora
que a vida contém, e a morte
contém, o mero registro
de energia concentrada.
Não é nem isto nem nada.
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros
e dos encontros fortuitos,
dos malencontros e das
miragens que se condensam
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações.
O mundo não tem sentido.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
Que diz a boca do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta
de sofrer e de ouvidar,
de lembrar e de fruir,
do escolher nossas lembranças
e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
- mas a conta não existe -
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundos: idéias.
Deixemos o mundo aos outros,
já que o querem gastar.
Meu bem, sejamos fortíssimos
- mas a força não existe -
e na mais pura mentira
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
mais ilusória que tudo,
pois haverá maior falso
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.
Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos,
ou assim abandonados,
deixando-nos à deriva
levar na palma do tempo
- mas o tempo não existe -,
sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o Mundo.

(Carlos Drummond de Andrade)


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