Sunday, November 17, 2013

Aquele dedinho


Quando estamos tristes, tudo fica pior.
É como quando estamos com um dedo do pé machucado e temos aquela impressão de que sempre o estamos batendo pelos cantos por onde passamos.
Não percebemos que sempre o batemos, mas que não o sentimos doer porque ele só dói quando realmente está machucado.
Infelizmente, quando entramos nestes dias plúmbeos em que o corpo inteiro se transforma num grande dedinho machucado, ficamos expostos demais, sensíveis demais, fragilizados demais.
Um engarrafamento no trânsito torna-se uma calamidade de proporções tsunâmicas, a derrota do time de coração trucida tanto quanto a perda de um ente querido, e por aí vai.
Só dói quando eu respiro, posso afirmar.
Por isso tento aprender a respirar mais miudinho.
Ando meio assim ultimamente, de braço dado com a tristeza, enamorado dela, mas pensando numa possibilidade de fugir do altar.
Dona Tristeza que fique solteira.
Meu médico falou em depressão. Recusei o diagnóstico.
Onde é que já se viu filho de soldado com dona de casa deprimido?
Depressão é coisa de bacana.
Ando triste. E pronto.
E não adianta culpar a descoberta de que Obama não é Superman, que os impostos aumentaram e as benesses escassearam, e que o verão foi um arremedo ou que ganhamos mais uma nova ruga e acumulamos fios brancos entre os cabelos que restaram.
Não tem jeito.
Às vezes penso que nascemos com esse gene da dor, e que passamos a vida inteira tentando dar-lhe um nó.
Inventamos paixões, as transmutamos em amor, fazemos filhos, depositamos neles a esperanças de que sejam tudo aquilo que jamais seremos, devoramos livros, viajamos pelo mundo, pregamos diplomas na parede, nos empanturramos de lagosta e vinho.
Quando não dá para tanto, mastigamos couve e arrotamos caviar.
Tudo para driblar o gene da dor. E nem sempre conseguimos, obviamente.
Quem não tem o suficiente para pagar o analista – ou não acredita nisto -, tenta arranjar um amigo.
Conversar faz bem, eu sei. Mas anda cada vez mais difícil encontrar alguém que nos escute mais do que tenha por dizer.
Na falta de grana para o analista ou de um amigo para chorar em seu ombro, dei de falar sozinho.
Mas nem eu mesmo tenho tido paciência para tantas lamentações.
Religião, não. Obrigado.
Deus deve estar com a agenda cheia. E a fila é enorme.
E, pegar fila é outra coisa que deprime qualquer cristão. Mesmo cristãos não tão cristãos assim, como esse do dedinho machucado que batuca no teclado deste computador.
Reaprendo, na marra, a ‘catilografar’ com o dedo indicador.
E assim termino mais um texto.
E assim eu venço mais um dia.
Pode ser que amanhã já não doa tanto.
Pode ser até que já não doa mais.

Tuesday, November 5, 2013

A Mão de Deus em Tibães




(Para Jorge e Anabela)

No aeroporto Francisco de Sá Carneiro, na cidade do Porto, uma voz conhecida faz um “boo” ao pé-do-ouvido, no que me toca o ombro.
Quase dou um pulo, gato velho, ainda sonolento pelas sete horas de travessia do Atlântico e visivelmente baqueado pelas cinco horas de con-fuso horário.
Abraço o parceiro Bispo Filho e ele diz que me reconheceu pelas costas e que eu estou ficando careca, com um cocoruto de frade.
Não foi um começo auspicioso.
Primeiro, meu parceiro de escrevinhações há três décadas, tenta me assustar com um “boo” ao pé-do-ouvido.
Em seguida, assusta-me, de fato.
Vou ao banheiro do saguão do aeroporto, olho-me no espelho assim, meio de ladinho, e constato: estou realmente perdendo cabelo, ali na região extrema do topo.

A caminho da cidade de Braga, na província do Minho, norte de Portugal, somos reminiscência e olhar na paisagem.
Instalamo-nos no hotel Mercure, no centro da cidade, e somos recepcionados à noite pelo poeta Jorge Pimenta e sua bela família.
Bom vinho, boa prosa, excelente comida.
Conheço bem esta casa.
Sinto-me parte deste clã desde que estive na cidade pela primeira vez,  em 2011,  com a esfarrapada desculpa de assistir a um concerto de reunião de uma banda portuguesa.
No que vamos devorando um delicioso arroz de camarão preparado por Anabela (precedido pela antológica alheira de caça, que se registre), vamos tomando conhecimento do nosso roteiro de atividades nos dias que se seguem.
Bispo Filho tem encontro marcado com médicos bracarenses dia sim, dia não. Precisa de acompanhamento em um procedimento iniciado no Brasil. E eu ainda tenho que escrever uns textos para o Brazilian Voice.
Nos intervalos, passeios inesquecíveis por Braga e Guimarães, entrevistas na imprensa local, vinho, presunto, pudim Abade de Priscos, água das Pedras Salgadas e dolce far niente.
O lançamento de Meninos de São Raimundo está marcado para as 21 horas da noite de sexta-feira, 13 de setembro, no Mosteiro de Tibães, em seu recém-inaugurado espaço cultural, no lugar onde um dia foi uma cavalariça.

Eder Asa, amigo mineiro que residiu em Braga, informa-me pela internet que fizemos uma escolha arriscada.
A livraria FNAC, dentro do maior shopping center da região, bem no centro da cidade, é garantia de público. E aquilo ficou martelando minha cabeça, como um sino de igreja anunciando um funeral.
Optamos pelo mosteiro ao invés da livraria e agora é tarde demais.

No dia do lançamento, passo a tarde em Tibães.
A antiga Casa-Mãe da Congregação Beneditina Portuguesa, situa-se a 6 kms a noroeste de Braga, rodeado por plantações de uva e milho. Trata-se de uma imponente construção de 900 anos e que enche os olhos, um lugar erguido para a devoção a Deus e seus silêncios.
Retono ao hotel no início da noite, tomo um banho demorado e encontro-me com Bispo Filho no saguão.

Chegamos ao mosteiro às 20:45, quinze minutos antes da hora marcada e apenas quatro carros ocupam o grande estacionamento.
Faço as contas: um carro é do padre, outro do sacristão, o nosso, e é provável que aquele último, um Renault com placa de Paris, seja de um turista.
Bate uma agonia imensurável e as palavras de Éder Asa reverberam cada vez mais alto, deixando-me resignado com o fato de que o lançamento de nosso tão esperado livro, está fadado ao fracasso logo em sua primeira noite.
Faltam apenas cinco minutos para a hora marcada e observamos um clarão bem ao longe.
Na estrada sinuosa, feita de pequenos sobe-desces, uma espécie de tobogã de asfalto margeado pela vegetação, o olhar se ilumina.
Vemos o primeiro farol de automóvel vindo em nossa direção.

E atrás daquele farol, vem um novo farol.
Seguido de um outro e mais outro e outro mais.
E outros tantos faróis.
Formam um comboio inesquecível, iluminando a noite até pararem, um por um, bem pertinho de nós.
Vamos entrando pela porta principal do mosteiro, revigorados, e as pessoas vão se sentando até que não sobra um único assento vazio na platéia preparada especialmente para a noite do lançamento de Meninos de São Raimundo em Portugal.
Tomamos nosso lugar à mesa e o pião começa a girar.
Um arrepio gostoso toma conta de nós.
Somos tratados como filhos da terra, meninos de Braga, que acabam de testemunhar e viver um pequeno milagre.
E o afeto se multiplica.
Como pães.