Tuesday, November 19, 2019

As tigresas de Livingston



Lá em São Raimundo, onde vivi a mais feliz das infâncias, futebol era coisa de menino.
Menina brincava de casinha, boneca e outras coisas. A elas não era concedida a alegria de correr atrás de uma bola em um campinho de terra batida e viver a experiência de jogar uma pelada.
Eu não sabia que havia uma lei federal promulgada em 1941, que proibia as brasileiras de praticar o parnasiano bretão.
A lei enfatizava que as mulheres estavam proibidas de praticar qualquer esporte 'incompatível' com a natureza feminina. Machismo e atraso que, felizmente, ficaram para trás.
Em 1979, a aberração foi banida da legislação e o país pôde dar ao mundo uma atleta genial chamada Marta, aclamada e coroada como a rainha dos gramados, a versão feminina de Pelé.
O resto é história.
Quando cheguei aos Estados Unidos, em 1984, estranhei que o "soccer" era mais popular entre as mulheres.
Achava esquisito ver na televisão aquelas moças correndo atrás de uma bola. Com o passar do tempo, passei a assisti-las e admirá-las. Michelle Akers, Mia Hamm, Abby Wambach, Carli Lloyd, Alex Morgan e tantas outras me fizeram virar fã.
Minha filha Isabella nasceria em 2001 e Clarice em 2003. Ambas jogariam bola.
Livingston, a cidade que escolhemos para elas crescerem, possui um dos melhores sistemas de ensino público de New Jersey e participa das competições estaduais em todas as modalidades.
São conhecidas como as Tigresas, numa liga que tem também as Gatas, as Leoas, as Panteras e outras felinas.
Tudo é extremente organizado, dos uniformes de grife aos  gramados bem cuidados, com a participação de árbitros remunerados pela liga.
Durante vários anos, os meus domingos eram feitos de levá-las para disputar jogos em toda a região. Eu adorava. 
Acordávamos por volta das seis da manhã, elas se vestiam, tomavam café e iam dormindo dentro do carro até o local da partida.
Com a proximidade do inverno, era um sacrifício tentar driblar o frio, tantas vezes abaixo de zero. Mas valia a pena.
De início, tímido, acabei me tornando uma espécie de "cheerleader" das "tigresas", o que muito as envergonhava, admito sem me constranger.
Em uma partida disputada em Montclair, por exemplo, fui expulso por cobrar do árbitro - visivelmente ressaqueado naquela manhã de domingo, ele! -, proteção para as meninas de Livingston.
Elas estavam levando botinadas de adversárias muito maiores e ele parecia ter engolido o apito.
Outros pais aderiram. 
Ele quase apanhou. 
A partida foi interrompida sob ameaça de presença da polícia.
No dia seguinte eu receberia um email oficial da liga, informando que estava "suspenso" por duas rodadas e ainda levei uma bronca antológica das meninas. Fiquei muito envergonhado.
Levar Bebel e Cissa aos jogos de futebol foi um grande (e indizível) prazer. Mas elas agora cresceram e estão prestes a alçar voo em direção ao futuro, no processo de escolha da cidade e universidade onde irão viver e estudar, já a partir do ano que vem.
É assim que descubro que já não vivo a minha vida.
É como se eu tivesse desistido de mim e passado a caminhar dentro dos sapatos delas.
Abre-se um novo capítulo, e, daqueles dias felizes, ficaram apenas algumas coisas.
Ficaram as lembranças dos domingos espremidos entre abril e novembro.
Os uniformes alviverdes - em que já não cabem - com o sobrenome que eu lhes dei, às costas.
Dois pares de chuteiras amarelas e uma surrada bola de futebol, esquecidas no fundo da garagem.
Ficou também a implacável certeza de que a vida está passando depressa demais.

Monday, November 11, 2019

O Passageiro do silêncio



(Para José e Ana Camargos, em Havana)

Tudo se torna um desassossego. A comida fica ruim, o apetite some. Os ponteiros do relógios viram inimigos. Os dias não têm fim.
O local de trabalho se transforma num campo de concentração. A casa fica do tamanho do Maracanã. As coisas perdem o sentido. E reina a desordem. 
Não há lugar no mundo para quem se desacerta, para quem se perde no caminho por miudezas vãs.
A vida lhe ensinará a dura lição do que é a tristeza.
E apontará o canto sombrio em que você abraçará a solidão.
Mesmo que esteja rodeado por uma multidão, você se sentirá só. Miseravelmente só.
O sono evaporará e se mudará para outro código postal. E a cama se tornará imensa e fria, com seus lençóis de arame farpado e travesseiros de espinho.
Os déjà vus se amontoarão. 
O rosto dela se materializará na fumaça do cigarro ou no fundo de um copo de conhaque. Uma onipresença quase divina.
Assim como Einstein, que não imaginava uma bomba atômica na outra ponta de sua teoria, Deus - quando inventou o silêncio - também não sabia que o usariam para magoar.
O silêncio é nuclear.
E o mundo, 'vasto mundo', vai se comprimindo, as paredes se fechando, tirando-lhe também o ar. Ficará difícil respirar.
O sol não voltará a brilhar amanhã, dir-lhe-ão os seus botões.
Nem depois da manhã.
Nunca mais, nunca mais, nunca mais, concluirá você.
Como se, de repente, você se tornasse um cego, incapaz de ver a luz. Você vegetará perenemente num túnel sem fim. 
É como se o carro tivesse ficado sem gasolina no meio do nada. 
Faltará combustível para seguir adiante, e você temerá. 
A partir daqui, apenas a inércia, o carro parado e a contagem modorrenta dos dias que ainda lhe restam. E nada mais.
É como se você estivesse exilado num país estrangeiro e não dominasse a língua.
E todos à sua volta falassem aramaico.
E tudo trouxesse a lembrança dela.
Como o casal que entra no táxi; a moça que bebe um capuccino; o homem que conversa com seu uísque; a noite que cai sobre a cidade enchendo os bares de homens e mulheres no cio.
Os carros trafegam lentamente e só a lembrança dessa mulher lhe fará companhia. Dirigem-se todos para uma grande festa em homenagem a ela. 
Menos você.
Ela estará linda, com o vestido que você já despiu tantas vezes vindo de outras festas.
Ela, com o colar de pérolas que você presenteou. E os brincos tão sutis.
"Mudou o cabelo", você dirá.
"Remoçou".
Só você e a sua triste figura permanecerão inalterados.
O avião  cruza o céu em direção a Bruxelas, mas na sua cabeça ele voa para o domicílio aonde suas cartas não chegam e de onde seus telegramas são devolvidos.
O avião voa para Santiago ou Milão.
Para a velha Lisboa.
Ou para Madri.
Mas, para você, o destino é Istambul, quando na verdade é outro. Tão outro.
O avião cruza o céu em direção ao inferno. Com o piloto automático ativado. E você, cá de baixo, é seu único passageiro.

Monday, November 4, 2019

do outro lado

(para pasquale e juliana)


todos os meus vetores
estão voltados para 
a outra margem do Atlântico


são treze horas, 
mas em meus poros 
já são dezesseis


os ponteiros do relógio
na igreja da Sé
apontam para a minha saudade
na torre de Belém


bate na Mouraria
um coração
extraviado em São Paulo


e
ela respira em Lisboa
o ar que me falta
aqui.

Monday, October 28, 2019

Crônica para a Isabella


(Para a Bebel, que completou 18 anos ontem)


Ela tem poucos minutos de vida, mas já realizou o que quase quatro décadas de experiências, euforias, pequenas conquistas e grandes desastres não conseguiram.
Ela ainda aprende a respirar fora da barriga da mãe, mas já mudou a vida de um homem cético, petrificado por casuísmos de uma existência marcada pelas mazelas da luta cotidiana.
Com apenas alguns minutos de vida ela o faz redescobrir um gosto novo pelo ofício de existir. E resgata nele o desejo da imortalidade.
Ela acaba de transformá-lo em pai.
Durante os nove meses de espera e inquietações este pai a imaginou de tantas maneiras, menos desta com que veio.
Ela não tem os lábios dele e nem o contorno do queixo da mãe.
Não se sabe a cor de seus cabelos – ainda envoltos em líquido amniótico –, e seus olhos permanecem fechados, estranhando a luz artificial do mundo exterior.
O médico diz que ela tem saúde perfeita. E isto é motivo de júbilo, de despreocupação.
A enfermeira que testemunhou seu nascimento reafirma o que ele registrou desde o primeiro momento em que a viu: sim, ela é uma menina linda.
O corpinho franzino, de face rosada e mãos minuciosas, ainda se espreguiça no berço estufa do Hospital Saint Barnabas e ela não sabe do milagre que acaba de operar.
Ela chora pela primeira vez e ele preocupa-se imediatamente, sem entender que esse choro foi despertado pela mudança súbita de universos.
Há menos de cinco minutos, estava protegida pela fortaleza do ventre materno.
Agora, está nua, fragilizada diante de um mundo simbolizado pela expressão confusa de seu pai.
E o choro novo que enche o ar da sala de parto é um aviso firme:
    - Preste bem atenção em mim, papai! Cheguei para te povoar!
Seus olhos abertos iluminam a encruzilhada existencial deste marinheiro de primeiríssima viagem, com a potência de um farol mostrando rumo a um barco no meio de uma tempestade.
Numa ordem inversa de coisas é a filha que chega ensinando o pai.
É ela quem indica a estrada a seguir e sabe-se, de antemão, que já não existirá um atalho para o futuro.
Mudou tudo num segundo.
Encantamento, magia, esperança e responsabilidade substituem palavras de um dicionário que jamais será o mesmo.
E o pai também chora, tentando esconder detrás dos óculos de grau o inocultável.
Ele que não chorou na última derrota de seu time numa final de campeonato.
Ele que não se emocionou na perda de um tio querido, recentemente.
Ele que evita filmes melodramáticos por não lhes reconhecer serventia.
Ele que, consumido pela luta do pão de cada dia, às vezes se esquece de ligar regularmente para seus pais e pedir-lhes a necessária benção.
Ele, o autossuficiente.
Ele, o rei de um reino que gira em torno de seu umbigo.
Impassível, até aqui, este senhor.
Diante dos olhos deste homem impenetrável, revolve-se uma trajetória que está prestes a entrar num novo período de sua história.
E esta metamorfose vai tomando força, acontecendo lentamente, como uma borboleta saindo do intransponível casulo.
Este homem sou eu. Isabella acaba de me fazer pai.
Ainda estou na sala de parto e um turbilhão de indescritíveis emoções vai ganhando - cada vez mais -, terreno em meu coração.
Não sei se rio ou se choro. E é tudo de alegria.
Um frenesi diferente de um grito de gol.
Um eu te amo mais profundo do que todos que eu já disse a qualquer mulher.
A meu pai ou a minha mãe.
Ou a quem quer que seja.
Na noite de 27 de outubro de 2001, escrevi minha grande crônica até aqui.
Meu melhor poema.
Minha grande letra de canção.
Na expressão serena desta criança que nasceu também de mim, sinto-me renascido, pacificado, a um passo de Deus.

Monday, October 14, 2019

O fio da meada


eu tenho
uma gaveta
para guardar segredos
e um armário inteiro
para juntar os medos


tropeço
em nuvens
vazias de chuva
converso
com girassóis
sobre as mudanças
no tempo

entalho o dia-a-dia
com uma faca cega

(firo)

é de arame farpado
o fio
da minha meada

teço
com chumbo e plutônio
a grande solidão.


(Roberto Lima)

Thursday, September 26, 2019

Os morcegos de Coimbra


Sofro de bronquite alérgica.
É sempre um calvário quando chega o mês de outubro ou entro em algum lugar antigo.

Outubro traz o outono nortenho nas Américas e com ele chegam a mudança nos boletins meteorológicos e no meu senso de humor.
No que a visão se acinzenta e o casaco sai do armário, inicia-se um processo que me remete a invejar a sina de algumas aves mais afortunadas, dessas que voam em bandos barulhentos para paisagens mornas quando o clima começa a virar.
O cheiro - e a mudança - do tempo me adoece. 
É fato.
Toda vez que entro em uma igreja antiga ou numa biblioteca cujo acervo abriga obras centenárias, recorro ao lenço bordado com as iniciais CRL, presente de minha mãe.
Eu tusso muito ao impacto do ácaro, um de meus tantos algozes na vida.
Ácaro, álcool, tabaco, insônia, haicais que nasceram e morreram trocadilhos e música sertaneja estão no topo da lista.
As igrejas de Ouro Preto sempre mexeram emocionalmente comigo, mas deixam os brônquios impregnados de uma espécie de pó imperceptível aos olhos, além daquele ar de Aleijadinho misturado ao perfume de Marília de Dirceu.
Em ida recente a Portugal, visitei a deslumbrante biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Pensei que fosse morrer. O oxigênio acabou em questão de minutos.
Construída em estilo barroco no século 18 pelo rei João V, trata-se de um monumento de inestimável valor histórico e abrigo de obras raríssimas.
São três pisos, quase 56 mil volumes, com destaque para o acervo de livros antigos, compostos por documentos do Século 16 ao Século 18. Uma das jóias é a primeira edição da “Fábrica do Corpo Humano”, atlas de anatomia do belga Andreas Vesalius, lançado em 1543.
Assustei-me com a presença de morcegos - um exército -, dependurados de cabeça para baixo no teto da edificação. Acalmei-me, informado de que a presenças deles é necessária no combate às traças, implacável inimiga dos livros.
Na última última ida a Minas Gerais, abri o guarda-roupa em que minha mãe conserva algumas lembranças do meu pai.
Uma camisa branca com delicadas listras pretas, outras de vocação discreta, algumas calças de tergal e um uniforme completo dos seus dias de policial militar.
Retirei a vestimenta e observei que as traças puíram pedaços do tecido, deixando rombos em várias partes.
Coloquei-a sobre a cama e uma vida inteira passou diante dos meus olhos.
As traças carcomeram os beijos que meu pai dava na testa quando chegava do trabalho, os bolsos cheios de caramelos, conselhos e reprimendas. 
Roeram um pedaço daquela figura que foi grande influência na pessoa que eu me tornaria.
Por um breve instante desejei que uma colônia de morcegos tivesse feito morada naquele armário, vindas de Coimbra, talvez, preservando para a posteridade um pedaço da história do grande homem que foi meu pai.
Ainda era agosto, mas uma incontrolável crise de tosse - e saudade - tomou conta de mim.

Tuesday, September 17, 2019

Era azul a manhã



Fui dormir tarde na noite anterior e me dei ao luxo de ficar um pouco mais na cama.
Era um uma linda manhã de final de verão e eu ainda não havia me dado conta de nada. Um sol brilhante e céu muito azul se anunciavam, intrusos, pelas frestas da veneziana.
Eu residia na Belgrove Drive, em Kearny, e havia acabado de acordar, por volta das 8 da manhã. Tomei o café ainda de pijama e segui para o banho.
Tirava o xampu dos olhos quando o telefone tocou. Ninguém liga para mim a essa hora do dia.
Corri nu e ensaboado até o quarto, pois o telefone tocava insistentemente.
Do outro lado da linha, a voz apavorada de Francisco Sampa me intimava a ligar a tv.
"Liga na CNN", ele disse.
Envolto na toalha, tive dificuldade de achar o bendito controle remoto, espremido que estava nas dobras do sofá da sala.
A imagem era assustadora.
Um caos absurdo havia se instalado, e uma cena semelhante à dos filmes de Hollywood - em que heróis aparecem do nada para nos salvar - ardia na tela do televisor.
Ambulâncias, viaturas policiais e dos bombeiros, pessoas correndo desesperadas no meio da fumaça e poeira, barulho de sirenes e gritos assustados preenchiam a tela.
Demorei alguns segundos para entender que um avião acabara de se chocar com a torre norte do World Trade Center. Assim como relutei um pouco antes de especular que pudesse ter acontecido um atentado terrorista.
Uma barbeiragem de algum piloto inexperiente, talvez. Ou um defeito mecânico, quem sabe, fez a aeronave despencar do céu para se chocar com o imponente edifício fincado ao sul da Ilha de Manhattan.
Permaneci paralisado, em pé na frente da tv, molhando o chão de madeira, apesar dos protestos da minha minha mulher.
Voltei correndo ao banheiro, enxaguei o corpo e tratei de me vestir. Era urgente chegar à redação.
Desci as escadas como se estivesse atrasado para um casamento. Dei partida no carro e liguei o rádio. Não havia mais dúvida.
Outro avião se chocaria à outra torre do World Trade Center, um pouco depois. O Pentágono também seria atingido. Uma terceira aeronave cairia na Pensilvânia  - graças ao empenho dos passageiros -,  evitando que atingisse a Casa Branca, seu alvo final.
Eu veria do terraço de um prédio de Newark a queda da primeira torre. Sentiria na pele o fim daquela sensação de impenetrabilidade e segurança que sempre tive, desde que cheguei aqui.
Raciocinei que Bruce Willis não viria nos salvar, como em Duro de Matar.
Stallone e Rambo não chegariam a tempo de evitar a tragédia.
Nem Clint Eastwood.
Nem Chuck Norris.
Nem ninguém.
O filme da vida é - irreversivelmente - real.
Instalou-se uma dor instantânea - fratura exposta -, uma sensação de fragilidade que o tempo não irá remover.
Voltando do Brasil neste 11 de setembro, tantos anos depois, eu vejo dois fachos de luz gigantes brotando do chão de onde um dia estiveram de pé os edifícios mais altos do mundo.
Dois fachos de luz robustos, imponentes, furam as nuvens pesadas que pairam sobre o céu de Gotham City às 5h35min desta manhã.
Uma lágrima de dor escorre, frágil, por debaixo dos óculos de grau.

Tuesday, August 20, 2019

Carta para a Marina


'Marina, morena, menina, você me pintou.'

E foi a única pessoa a fazê-lo nestes meus 56 anos de vida.
Eu conhecia algumas das suas telas, mas só fomos apresentados na casa de Solange e Tadeu Martins, em BH, quase duas décadas atrás.
Fiquei encantado por um quadro seu que adornava a sala de nossos amigos: três personagens sem olhos, vestidos para uma festa de congado no Vale do Jequitinhonha.
As cores daquelas fitas encheram meu coração. Achei tudo tão bonito. Principalmente a pessoa especial que você revelaria ser.
Saí daquela noite levando o quadro debaixo do braço, presente generoso dos donos da casa com seu consentimento e algum constrangimento meu.
Eu adquiriria mais algumas obras suas.
Seria presenteado com outras, tão generoso que era o seu coração.
Nas paredes da casa de meus pais (e também aqui em New Jersey), você reina soberana, ao lado de Poty Lazzarotto, outro artista que tanto admiro.
Voltaríamos a nos ver muitas vezes, sempre que nos reuníamos para celebrar a amizade, uma das mais belas formas de amor que existem.
Eu ia para o fogão, alguém cantava e tocava violão.
Passávamos horas nessa celebração.
E eu contava nos dedos os dias até que pudesse retornar ao Brasil para nos juntarmos outra vez.
Você fez a pintura da capa de Meninos de São Raimundo, livro que escrevi em parceria com o poeta Bispo Filho, mas foi preterida quando o livro já estava para ser impresso.
Na pintura você retratava, ao fundo, os autores quando criança, agarrados aos pais; e, em primeiro plano, já adultos, escancarados em seus rosários de falhanços e dúvidas.
Tratava-se de uma imagem muito forte e eu não sei explicar o motivo por trás de nossa decisão de não usá-la na capa do livro.
Havia ali alguma dor, alguma fratura exposta...
Uma parte de nós - os autores - não queria revelá-las ao mundo, senão pelas entrelinhas dos textos escolhidos para a publicação.
Diferentemente do que era comum em suas pinturas daquele período - que traziam sempre pessoas sem olhos -, Bispo Filho e eu fomos retratados com absoluta fidelidade.
Talvez estivesse explicitada em nosso olhar a razão da escolha, no minuto derradeiro, quando tudo já parecia líquido e certo.
Tentei adquirir a obra, mas você já havia pintado outra coisa por cima da tela.
Não questionei.
Não houve - de sua parte - nenhuma animosidade.
Nenhum senão.
Entendi que, escondido em seu gesto, a tela trazia algo que ia além do que os olhos viam; segredos e mistérios diluídos nas águas do rio que molhou os pés de nossa infância.
Algum tempo depois, eu receberia de você um presente que adorna a sala da casa de minha mãe. Aquele retrato de cor amarela está pendurado ao lado do rosto de meu pai, outro presente seu.
Papai adorava você.
Minha mãe também.
Você se tornou uma presença constante e obrigatória em nossa casa, todas as vezes que eu ia a Minas Gerais.
Acompanhei diferentes fases de sua arte. Dos personagens sem olhos às meninas e meninos envoltos na leveza de um vento ligeiro. Depois, a fase dos retratos, em que vários amigos seus ficaram imortalizados em delicadeza acrílica.
Recentemente, você começou a pintar pratos e canecas de rara beleza, e eu fiquei de passar por sua casa para adquirir alguns.
Não tivemos tempo, Marina.
A notícia de sua morte passou por cima de mim com a violência de um rolo compressor. Saber que, quando for a BH, já não poderei lhe dar um abraço causa-me enorme confusão.
Vou ter que me contentar com sua lembrança, as cores felizes misturadas em suas obras espalhadas pelas paredes da casa onde já não vive meu pai.
Você, que eu sempre dizia pintar com as mãos de Deus, está agora pertinho do dono delas.
Descanse em paz nos braços d'Ele.

Tuesday, July 16, 2019

Pescoço de peru


As redes sociais foram inundadas por fotos de ‘velhinhos e velhinhas’ nos últimos dias. Um aplicativo que ‘envelhece’ as pessoas virou moda entre anônimos e famosos, que se divertiram com as supostas imagens futuristas.
A minha versão não foi das mais generosas. 
Recusei-me a postá-la, mas o compositor Dalmir Lott fez questão de tornar público aquilo que eu gostaria de manter privado.
Fiquei com a cara daquele quibe de lanchonete de rodoviária que ninguém quis comprar, lá pelas duas da manhã.
Orelhas de abano, nariz de borracha porosa, cabelos escassos, o rosto com a aparência do mapa rodoviário da Califórnia, pés de galinha espalhados por toda a face, é o que se vê. 
As pelancas do pescoço, uma vez espichadas, fariam duas vezes o trajeto Rio-São Paulo.
Minha cara ficou parecida com o cotovelo do Keith Richards, do Rolling Stones.
Eu, que nunca fui nenhum Richard Gere, fui monstrificado.
No entanto, se o aplicativo da internet é cruel, a vida é muito mais. Uma existência não se consuma (e consome) em meia dúzia de cliques.
Sei que ficarei com um aspecto ainda pior, caso consiga superar décadas de abusos e descaso com o presente dado por meus genitores.
Maracujás enrugados dão mais suco, diria meu falecido pai.
Não é bem assim.
Problemas de todas as espécies branqueiam os cabelos, riscam sulcos com o estilete dos dias, dando a mim um aspecto estranho, desenhando uma caricatura do que fui um dia.
Boletos, ex-'conjes' (como discursaria o Moro), filhos, políticos filhos da puta, times de futebol e suas defesas pífias, uísque de procedência duvidosa, drogas legais e ilegais, religião, turbulências de avião, filas em repartições públicas, cidadãos corruptos e corrompidos no meu entorno, buracos nas estradas, medo da violência urbana, insônia, ignorância e fúria dos extremistas, trânsito caótico, as falas da Damares, a ganância dos poderosos e a ausência de Deus em tantos momentos, farão de mim algo muito pior do que essa calopsita  com pescoço de peru, que o Dalmir Lott espalhou pelas redes sociais.


Friday, June 21, 2019

Calipígio


Ele é portador – segundo suas próprias palavras – de 26 doenças, todas elas mortais.

Bebe, fuma, se excede, mas as 26 moléstias só o incomodam quando a esposa aparece com algum tipo de restrição:
– Não posso ser contrariado. Lembre-se: sou um homem valetudinário!
Valetudinário?
Ia consultar o dicionário – outra de suas muitas manias -, mas preferi o atalho, já que ele adora descobrir palavras esdrúxulas nos Aurélios e Houaiss desta vida.
Aprendi que um indivíduo valetudinário é um sujeito de saúde frágil.
– Olha que moça calipígia, disse ele no outro dia, apontando para a voluptuosa morena que atravessava a rua.
Nova consulta e descubro que calipígio é aquele ou aquela que possui belas nádegas.
Todas as manhãs, ele se levanta com seu pijama de aposentado, calça as pantufas e vai ao banheiro. Quem estiver do lado de fora saberá qual dos Argemiros sairá por aquela porta.
Existem dois Argemiros: o sorumbático e o feliz.
Se quer saber o que significa sorumbático, pegunte a ele.
O Argemiro feliz canta trechos de ópera enquanto se barbeia ou lê o jornal do dia, sentado no trono.
Ele, que sabe tudo de ópera, canta árias inteiras e se alimenta de minuetos e réquiens.
O segundo Argemiro parece ter grudado chiclete na cruz de Cristo. Ele fica mudo durante o banho e dele nada se escuta, quando sai de lá.
Nessa versão, os olhos acinzentados o acompanham até a mesa do café.
Diante das frutas – que exige descascadas e cortadas em tamanhos uniformes – , sentencia:
“Estou tão plúmbeo que tenho certeza de que minha alma é macambúzia. Ó maldita paúra. Meu banzo é indizível”.
Qualquer das expressões denota que ele não acordou do lado certo da cama.
Saudade de algo ou alguém ou a simples sensação de frio podem mudar seu estado de espírito por períodos que podem durar até uma semana.
Gosta de bons vinhos, champanhe e malte escocês.
À mesa não possui o mesmo requinte.
Se pudesse, comeria bife com batatas fritas em todas as refeições.
Já o vi trocar uma ida ao melhor restaurante francês por um pão com ovo cozido. E não me pareceu arrependido.
Argemiro é assim, um poço de contradições e manias.
É tão triste vê-lo agonizar às vésperas de uma viagem. 
Pesa a bagagem duzentas vezes. Trezentas, se achar necessário.
Tem paranoia com agentes alfandegários e entra em pânico diante da mera menção de que uma de suas malas pode ser inspecionada no aeroporto.
Não que ele leve nelas algum objeto ou produto proibido, mas a possibilidade de ver espalhadas pela bancada as suas cuecas e meias _que ele enrola e acondiciona artesanalmente_, causa-lhe fobias, profundo mal-estar, uma quase demência.
Toda vez que sai para comprar roupas, leva para a loja ou boutique uma fita métrica e mede, peça por peça, uma por uma, antes de experimentá-las. Ele conhece suas medidas antes, durante e depois das refeições.
Outra mania esquisita é a de colecionar caixinhas. Tem milhares delas. Quadradas, ovais, triangulares, brancas, pretas, multicolores, grandes, pequenas, fundas, rasas…
Argemiro precisaria de um novo cômodo na casa só para guardar  as suas coleções. 
Na falta de ter o que armazenar dentro delas, guarda caixinha dentro de caixinha e passa dias inteiros organizando o acervo.
Usuário de tantos remédios, faz pouco esforço para obedecer aos conselhos médicos.
Já enfartou duas vezes. Sofre de diabetes. Tem pressão alta.
E torce para o Coritiba Football Club.
Informado pelo doutor de que deveria abrir mão de alguns pequenos prazeres, caso quisesse viver mais, retrucou que havia acabado de escolher, naquele instante, a epígrafe que iria mandar bordar na lápide:
– Argemiro parou de fumar!
E é isso mesmo.
Argemiro, nosso incorrigível Argemiro, só vai parar de fumar ou beber (ou de fazer qualquer outra coisa que lhe apeteça ou dê prazer) no dia em que pedir a conta e partir.

Thursday, May 30, 2019

Achados e perdidos


Preciso encontrar o passaporte brasileiro, que se exilou de mim.
Desde que cheguei de Portugal em novembro do ano passado, eu não sei do seu paradeiro.
Estará no bolso do paletó que me acompanhou na viagem?
Será que caiu no chão e foi encontrado pela mulher da limpeza e colocado num escaninho do departamento de achados e perdidos?
Terá sido esquecido no café do aeroporto e hoje traz a cara de um terrorista, um traficante de drogas - ou outro contraventor - no lugar onde um dia existiu uma foto minha?
Eu gosto da minha fotografia naquele documento.
Estou dez anos mais moço e o meu rosto ainda não havia se transformado no mapa rodoviário de Minas Gerais.
Na foto, estou dez anos mais novo e o mundo era um lugar menos radioativo.
Naquela altura “ainda não havia para mim Donald Trump ou a sua mais completa tradução”.
Não havia Neymar nem Jojo Todynho e o meu time não havia flertado com a Segunda Divisão.
Jair Bolsonaro era apenas um deputado pífio, dependurado em um cabide de emprego público, abusando da ignorância do eleitor.
E nada mais.
Há dez anos eu ainda chorava as dores de outros 11 de setembro, tinha pequenos delírios e algumas aflições.
Desde então, aumentaram o diâmetro do buraco na camada de ozônio, inflacionaram a gasolina, árabes e judeus continuaram em discórdia; e eu permaneci à deriva, sem saber para onde ir.

E se eu precisar ir para o Brasil numa emergência? – pergunto aos meus desgastados botões.
E se explodir uma guerra, e eu tiver que fugir como um cão com o rabo entre as pernas?
Preciso encontrar indícios de coragem em mim, eu sei.
Mas, antes, preciso achar o bendito passaporte.
E preciso mais.


É imperativo localizar a velha coletânea de Drummond e ler em voz alta o Poema das Sete Faces.
Desvendar as minhas sete faces e, se preciso for, dá-las a tapa, pois ainda há tempo.
Tempo de mudar algumas opiniões.
De mudar de ares, repaginar a vida.
Tempo de virar o jogo.
De ganhá-lo.

E pagar o preço devido, pois nada vem sem dor.
Abrir mão de alguns prazeres para cuidar da saúde.
Retomar as dolorosas caminhadas matinais.
Redescobrir o desejo de querer ser longevo e viver melhor.

E reencontrar os meus óculos, perdidos num outro lugar e que não são esses - amalgamados às orelhas -, que hoje me permitem enxergar o mundo com dois graus de astigmatismo e miopia.

Aqueles óculos especiais que proporcionarão que eu me enxergue, filtrando na transparência das lentes mais íntimas a cegueira massacrante que turva a claridade dos dias.
E permita a separação de joio e joia e me faça ver, talvez pela última vez, menino bonito de mim.

Monday, May 20, 2019

O carteiro


(Para a minha vizinha Turquinha, que guardava suas cartas numa caixa lilás)

Dizem que o cão é melhor amigo do homem, mas os carteiros discordam.
São tão épicos os embates entre eles, que já renderam desastradas escaladas em muros e árvores, pernas de calças rasgadas, visitas ao Pronto-Socorro e, não raro, correspondências espalhadas pela rua.
Os cães odeiam os carteiros.
Eu não.
Eu os admiro. Gosto muito deles.
Muito antes da popularização dos telefones inteligentes e do surgimento da internet, eram eles os mensageiros dos nossos afetos e aflições, profissionais que gozavam da estima geral.
Naquele tempo em que as pessoas se orgulhavam das caligrafias e treinavam os manuscritos em cadernos apropriados, as missivas eram testamentos do que ia pela cabeça, alma e coração de quem as remetia.
Era muito bom receber uma carta com selos comemorativos homenageando heróis da história, esportistas e criaturas da fauna e da flora, caprichosamente desenhados por artistas de grande talento.
Era ainda mais especial quando aquela carta vinha do estrangeiro, com envelope de moldura quadriculada em azul e vermelho, tatuada com as palavras 'par avion' ou  'air mail', indicando que chegara a bordo de  uma aeronave proveniente de uma terra distante.
Não cheguei a ser um filatelista, no sentido bíblico, mas tinha o costume de guardar os selos das cartas que recebia.
Escrevi e recebi muitas. Centenas. Talvez milhares delas.
Era muito comum as pessoas trocarem cartas, num 'virtualismo' que tinha muito de intimidade e confiança.
Como não evocar as célebres correspondências de Clarice Lispector e Manuel Bandeira, ou de Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, registradas posteriormente em livros deliciosos de ler?
Onde cresci, o carteiro subia ou descia a rua com o seu alforje cheio de envelopes. Muito raramente, entregava algum pacote maior, algum presente.
Na ausência das campainhas de hoje, eles batiam palmas no portão, muitas vezes gritando o nome do destinatário, anunciando a chegada de notícias.
A entrega de uma carta vinha sempre carregada de suspense e emoção.
Ela poderia trazer notícias boas ou ruins.
Um sobrinho que nasceu na Bahia, por exemplo. Ou o convite para um casamento ou batizado em Porto Alegre; a formatura do filho de um amigo na distante América do Norte também poderia ocorrer.
Ou a dor da morte ou doença de alguém.
As cartas de pai e mãe traziam o calor de um afago e sábios conselhos.
A de um amigo trazia a camaradagem, a partilha.
Mas as cartas de amor...
Ah, as cartas de amor...
Não tenho dúvida de que elas foram inventadas pelo cupido em dia de divina inspiração.
Elas traziam sentimento e encanto, fotografias, promessa de amanhãs risonhos e recatado tesão. Não raro, carregavam o cheiro da colônia dele ou a marca do batom dela.
Muita gente se conheceu por carta e casou respaldado pelo que leu.
É como se ficasse atraído pelo interior da outra pessoa e não pelo que os olhos, nas condições presentes, veem.
Era como se tivessem tomado conhecimento um do outro 'do umbigo para fora', e não da 'figura' escancarada nas imagens dos vídeos dos computadores de agora.
Os tempos são outros, sabemos, e o resultado visual do que pregam nas academias de ginástica se tornou mais importante do que a substância de um ensinamento de Nietzsche, ou um arrepio balbuciado por Drummond. 
Assim sendo, é natural que os carteiros tenham perdido tanto do seu encanto.
A rapidez e a praticidade de um e-mail - ou uma mensagem de voz num destes aplicativos de celular - transformaram as correspondências pessoais em objetos de museu.
Em seus embornais, nossos homens de amarelo carregam mais peso, pacotes de encomendas compradas pela internet, contas de telefone e de cartões de crédito, ou de água e luz.
Se a cor de seus uniformes permanece intacta após todos estes anos, a magia do ofício desbotou e apenas os cães ainda não se aperceberam disto.

Monday, May 13, 2019

Mente fraca


O tempo vai passando, a chama da vida definhando e quase não percebemos as mudanças na nossa habilidade de executar as coisas.
A digestão de comida e informações fica lenta. Bem mais lenta.
Eu, que antes era capaz de dar prejuízo em uma churrascaria rodízio, agora passo um tempo enorme tentando dissolver um bife.
A tolerância ao álcool é outro tópico sensível.
Passei mais de 40 anos sem conhecer a ressaca. Hoje somos íntimos.
Quatro latinhas de Pilsner me fazem acordar no dia seguinte com um Saara na boca, além do indefectível gosto de cabo de guarda-chuva, que até então desconhecia. 
E a caixola vira um abacate maduro, com o caroço balançando lá dentro.
O que mudou?
Mudou tudo.
Foram mais de cinco décadas abusando da boa vontade da genética.
Começou a cair-me os cabelos de onde deveria haver cabelo, e a nascer cabelo onde não deveria haver cabelo. 
No outro dia, achei um fio enorme dentro de uma das orelhas. 
A cabeça está virando uma pista de aeroporto e as sobrancelhas encolheram, dando ao rosto um aspecto estranho.
Acabamos nos tornando uma caricatura do que fomos um dia e ela, a caricatura, capricha em realçar as imperfeições.
Crescem as orelhas e o nariz, o último, ganhando o formato de uma coxinha de padaria.
O tempo é cruel com Narciso.
Envelhecer é rápido e dolorido.
Doem músculos, articulações e a autoestima.
Coisas que eu fazia com facilidade tornaram-se verdadeiros sacrifícios.
Amarrar os sapatos, por exemplo, há muito tem sido um esforço hercúleo. 
Aconselhado por um amigo, adotei a técnica de colocar o pé sobre a cadeira antes de me curvar para dar o nó. De uns tempos para cá comecei a calçar tênis, daqueles que dispensam o uso de cadarços.
Redução de peso e prática de exercícios físicos foram recomendados pelo médico que me vê cada vez mais. Mas tenho gastado o tempo disponível cuidando da horta que planto todas as vezes que a primavera dá o ar de sua graça por aqui.
Quando termino de fazer uma capina entre os canteiros de hortaliças ou de revirar a terra com a enxada presenteada por meu saudoso pai, costumo recorrer a analgésicos e conhaques de procedência duvidosa.
Não resolvem, mas aliviam.
O que mais tem preocupado, no entanto, é a perda gradativa da memória.
Nunca sei onde larguei as chaves, esqueço celular e óculos em restaurantes e, não raro, deixo de comparecer a algum compromisso diluído dentro da memória enfraquecida.
As ocorrências se dão principalmente na parte da manhã, período do dia em que eu mais gosto de escrever.
Às vezes, quero construir uma frase, mas algumas palavras somem misteriosamente dentro de uma espécie de buraco negro que se abriu dentro de mim. 
Por autocomiseração, achei uma saída poética, mudando o horário das escrevinhações para o meio da tarde.
Desde então eu defendo a tese de que, como acontece com as pessoas, algumas palavras demoram mais tempo que as outras para acordar.
E assim vou levando, um descarrilamento de cada vez.

Monday, April 1, 2019

Fujona


Não tive um único bichinho de estimação na infância. Pedi, mas papai dizia que havia tantos vira latas na nossa rua, que eu não precisaria de um. Com tantos amigos para jogar futebol e nadar no rio, um cãozinho nem fez falta.
Adulto, aqui nos EUA, tive um gato que lutava karatê. 
Acho que é isso. Não entendo muito de artes marciais. 
Cookie dava uns saltos acrobáticos, inesperados, chutando o ar e caindo de pé, como se nada tivesse acontecido, saindo de cena com um ar arrogante, indiferente aos olhos de quem o visse. O felino tinha parte com Bruce Lee.
Volta e meia, ele perdia-se dentro do sofá-cama da sala. 
Como ele ia parar lá é um dos mistérios que não consegui desvendar. 
Sem saber sair do labirinto de molas em que havia se metido, miava a noite inteira, atrapalhando a minha frágil capacidade de dormir. Acabei me livrando dele, passando o problema para a frente.
Nunca mais ouvi falar do Cookie.
Quando me casei, concordei que a casa tivesse um mascote. Foi assim que Jade, uma sharpei da cor de chocolate aterrissou.
Jade fez de tudo para me ganhar.
Conseguiu. 
Logo eu, que não era e não sou 'cachorreiro'.
Dócil, ela passava a maior parte do tempo aos meus pés. 
Lambia minhas mãos, deitava-se com o corpo apoiado às pernas, fazia muita festa quando eu chegava em casa. Escrevi muitos textos com a parceria dela.
Quando morreu, de velhice, ela já tinha a companhia de Nina, outra sharpei.
Nina foi uma menina problemática, como contarei mais para o fim.
Naquela altura do campeonato eu já tinha três filhas e a casa parecia um zoológico:
Coelhos, peixes, calopsitas moraram ou ainda moram lá.
Há cerca de quatro anos ganhei do Peter Pantoliano uma cacatua branca, com um topete como o do Supla, da mesma espécie de Fred, fiel companheiro do ator Robert Blake, protagonista do extinto seriado Baretta.
Cockatoo (cacatua em inglês) não ganhou um nome. É como se fosse um cachorro chamado cachorro. Confesso que eu e ela nunca nos demos bem.
Ela é metódica, acorda invariavelmente às 6:30 da manhã e emite uns insuportáveis grunhidos de pterodáctilo que atormentam principalmente as manhãs de ressaca. 
Nos primeiros tempos, Cockatoo fugia constantemente da gaiola e destruía janelas e móveis com o apetite de um exército de cupins.
Jamais descobri como ela conseguia abrir a gaiola. 
Quis batiza-la de McGyver, sem sucesso. Tive que providenciar um cadeado.
No ano passado, sua última fuga, destruiu o estofamento de uma cadeira novinha em folha. Fiquei possesso.
Reuní todo mundo e anunciei:

- Deu para mim. É ele, ou eu.

Clarice, a caçula, deu uma risadinha e decretou:

- Pai, não se esqueça de telefonar de vez em quando.

Recolhi-me à minha insignificância.
Não bastasse Cockatoo, Isabella foi visitar um abrigo de cães abandonados pelos donos e se apaixonou por Hazel, uma viralatas com rabo de barbicacho e sobrancelhas de José Saramago, que estava no corredor da morte. 
Não aparecesse alguma alma caridosa para adotá-la, receberia uma injeção letal em três dias.
Resisti o quanto pude, mas recebi a promessa de melhores notas na escola, remoção do lixo, ajuda na louça do jantar.
Só a parte da melhora das notas foi cumprida.
A Hazel, que caiu nas graças de todos, parece ter sangue de tatu. Ela transformou o gramado do quintal e a horta que cuido com tanto esmero, numa fotografia da lua. 
Não ouso dizer ela ou eu. 
Pode ser que Clarice já não faça questão do telefonema.

Voltando a falar da Nina, é o típico caso  de cachorro fujão. Minha casa é a única da rua inteira que tem cercas de madeira ao seu redor. Mesmo assim, a danada fugia, aproveitando os descuidos da porta aberta durante a entrada das compras. 

O bairro inteiro conheceu a sua reputação e a solidária vizinhança fez muitos mutirões de caça e captura, nem sempre com sucesso.
Numa ocasião, ficou sumida durante dez dias e foi encontrada cheia de carrapatos pela 'carrocinha' da polícia de Livingston na fronteira com Roseland.
Mas Nina envelheceu, aquietou-se. 
Há dois anos, teve câncer numa pata traseira e sofreu uma amputação.
Na saída do hospital veterinário, deu-me uma grande lição de humildade e apreço. 
Ao contrário de nós, humanos, não demonstrou tristeza pela aparência decrépita; adaptou-se como pode à nova realidade e continuou povoando a nossa vida, sempre deitada à porta do quintal, imponente, guardando-nos com ares de quem contemplasse as tardes.
Na semana passada começou a ter dificuldades respiratórias. O raio X do hospital não detectou nenhuma anomalia, foi medicada, mas ela definhou.
Nessa manhã, voltou ao hospital para exames de ressonância magnética, pois os médicos-veterinários suspeitavam de um tumor que poderia ter causado inchaço no fígado, dificultando o movimento de abrir e fechar dos pulmões.
Cinco minutos após ter sido deixada sob os cuidados da enfermeira, o meu telefone tocou.
Ela não quis morrer diante dos olhos dos donos, o que diminuiu o impacto da dor que ficou.
Hoje, quando eu retornar do trabalho, sei que não serei saudado por seu latido barítono, o rabo incessante, balançando como um leque em dia de calor.
Nina, a cachorra fujona, fugiu pela última vez.

Thursday, March 21, 2019

Pequeno rascunho sobre as lonjuras



Os estrangeiros e a maioria dos brasileiros creem que "saudade" seja um termo exclusivo da língua portuguesa. Eu não concebo que um finlandês não sinta saudade. Que um indiano não sofra dessas lonjuras.
Talvez seja apenas uma questão semântica, mas não consigo olhar para uma pessoa, independentemente do seu lugar de origem, sem imaginar que dentro dela more uma saudade.
Saudade de pessoas e lugares.
De um tempo bom em suas vidas.
De um dia especial ou de um marco pessoal nas suas respectivas histórias.
O norte-americano fala apenas que 'sente falta', mas não seria essa falta, essa bolha de afeto dentro da carcaça peitoral, a saudade da qual nós, lusófonos, tanto sentimos e falamos?
Esse profundo estado de melancolia que às vezes nos acomete é parte do DNA humano, embora não haja nenhum estudo científico que comprove isso.
Sentimos saudade até de nós próprios, ou não sentiríamos um aperto quando recordamos dos idos em que tudo podíamos e nada nos parecia impossível.
Há quem sinta saudade da vida de solteiro.
Da infância e adolescência, sem as preocupações que afligem os adultos.
Saudade de visitar um amigo, de um almoço em família ou de passar férias num determinado lugar.
Confesso que sinto saudade.
Saudade de muitas coisas e de algumas pessoas.
Saudade, principalmente, do que ainda não vivi.
Saudade de Casablanca e Havana, lugares a que não fui.
Saudade de caminhar de mãos dadas pelas ruas de Praga e de Granada, terra de García Lorca.
Saudade de tomar um café numa esplanada de Roma ou de colher um girassol na beira de uma estrada da Toscana, como me prometeu o destino.
Eu não consigo - nem quero - esconder que ando sentido uma vertiginosa saudade do futuro.

Thursday, March 14, 2019

Porque eu também sou mãe



Eu entendo a sua dor porque também sou mãe. 
Assim como você, eu sou aquela que esperou com ansiedade a chegada deste filho que encheu a casa de felicidade quando nasceu.
Se ele foi o primeiro, se foi o único, pouco importa.
Para uma mãe todos os filhos são únicos, como o primeiro, iguais no amor que ela sente desde o momento em que nasce.
Uma mãe começa a amar o filho antes mesmo de sua chegada, naquilo que o guarda dentro da barriga e por ele espera.
E eu o guardei e desejei que nada lhe faltasse, que nada (nunca!) lhe doesse, que nada lhe afligisse desde que respirou fora de mim pela primeira vez.
E eu o amamentei até que ele não precisasse mais do meu leite.
Estive com ele nas noites de febre, trocava suas fraldas, saciava fome e sede e o acompanhei enquanto ele crescia.
Caía a noite e eu ficava olhando para aquele menino bonito, a face inocente descansando de nadas, e desejando que ele tivesse um sono tranquilo, cheio de sonhos leves.
Eu implorava para que ventos ligeiros levassem para longe dali os eventuais pesadelos.
Vi quando ele deu os primeiros passos e quando perdeu o primeiro dentinho.
Ainda guardo na memória cada pedacinho dele, a imagem no porta-retratos, o sorriso ingênuo, o olhar de ave, o cabelinho de nuvem.
Eu estive sempre com o meu menino.  (E gostaria de ter estado mais, mesmo depois que ele cresceu.)
Eu quis para ele futuros brilhantes, tão maiores e melhores que o meu.
Quis que ele salvasse vidas como um médico, que educasse o mundo como um professor, que fosse piloto de avião, artista ou atleta profissional.
Que ele fosse o que escolhesse ser. Acima de tudo, que ele fosse feliz.
Portanto, eu sou aquela que não sabe onde errou e que preferia que tudo fosse de outra maneira.
Eu sou a mãe daquele menino que se tornou rapaz e se perdeu de mim.
Aquele menino que foi adotado pelo crime e que hoje chama a violência de senhora.
E é por isto que entendo a sua dor de mãe, que teve a trajetória do seu filho interrompida pelo meu.
Sou a mãe do pivete que lhe assalta fumado de crack e que coloca a sua história de cidadão a um clique de revólver, a sua vida por um triz.
Sou a mãe do homem-bomba que entra num mercado e leva dezenas de inocentes com ele, sabe lá Alá para onde.
Sou a mãe do sequestrador que lhe priva dos seus, daquele que pede resgate e que talvez nem devolva o que não lhe pertence, o que nunca lhe pertenceu.
Eu sou a mãe de Mark Chapman, aquele jovem que matou John Lennon e roubou do mundo a luminosidade de novas canções.
Apareço como genitora na certidão de nascimento de Charles Manson.
Osama Bin Laden me chama de mãe.
Meu DNA está em Hitler, em Franco, em Gaddafi e Sadam.
Está nos policiais dos grupos de extermínio da Baixada Fluminense e nos estropiados do Talibã.
Está nas artérias de Donald Trump, nos cabelos de Manuel Noriega e na arcada dentária de outro tirano qualquer.
Meu filho é aquele que entra no cinema vestido de Batman e abre fogo contra inocentes, filhos de outras mulheres como você.
Eu sou a mãe de todos estes meninos enlouquecidos que se armam até os dentes e promovem carnificinas nos Colombines, Suzanos e Realengos desta vida.
Portanto, pode chorar nos meus ombros que eu entendo a sua dor, minha senhora. Entendo-a, porque também sou mãe.
E porque toda vez que um filho meu mata o seu, eu morro um pouquinho junto com os dois.


Tuesday, March 12, 2019

Dona Socorro e o estojo de lápis de cor


Chegamos a São Raimundo em 1967. Nasci em Pedra Corrida - 44 quilômetros acima -, mas fomos 'arrastados' pelo Rio Doce, vivendo em diversos povoados ribeirinhos antes de ancorarmos definitivamente em Governador Valadares. 
Todos os anos, o soldado Antonio Lima era transferido e não tínhamos tempo de criar raiz em nenhum lugar. Não era fácil para nenhum de nós. 
Eu tinha cinco anos e vivera em cinco cidades diferentes, antes de aportarmos no lugar que se tornaria a minha referência. 
Nossa casa fazia divisa com o campo do Esporte Clube Ibituruna, lugar que viria a ter grande importância na minha infância. Ali eu joguei bola, fiz amigos, fraturei ossos e tive grandes alegrias.
O bairro São Raimundo ficava espremido entre a favela do Morro da Orêia - hoje Morro do Paraíso - e o mesmo Rio Doce que me viu nascer. 
Era um lugar de casebres simples, com suas ruas de terra batida e nomes de pedras preciosas e semi preciosas.
Estabelecemo-nos, inicialmente, na rua Turmalina. Ao fim de dois anos, papai ergueria um barraco na Rua Topázio, palco de grandes aventuras com novos amigos, pés empoeirados, camisas remendadas, árvores que falavam vários idiomas, rolinhas da cor de terracota e tizis saltitantes.
No quintal havia laranjeiras, limoeiros, dois pés de manga  e uma horta com pés de couve que chegavam ao céu.
Quando um PM chega a um novo lugar, trata de conhecer as pessoas mais influentes. Líderes comunitários, professores, padres, pastores, comerciantes e políticos estão no alto da lista de contatos importantes para um policial recém-chegado.
Foi assim que papai foi apresentado a Gabriel e Maria do Socorro, proprietários do Bar Chave de Ouro, que ficava localizado no ponto final do ônibus.
O Chave de Ouro era também uma sorveteria que produzia o melhor picolé de coalhada do planeta. 
Dona Socorro fazia deliciosos salgadinhos, Gabriel os vendia. 
Nas prateleiras, reluziam garrafas de jurubeba Leão do Norte, catuaba, conhaques Presidente e Dreher, cachaças sem rótulo e groselha.
Uma mesa de sinuca e outra de totó (pebolim) faziam a alegria de quem gostava de um passa-tempo, enquanto bebericava seus venenos.
Gentis, Gabriel e Maria do Socorro convidaram os Lima para um café da tarde, na casa que ficava adjacente ao comércio da família.
Chegamos, fui apresentado ao filho Wellington, que se tornaria um amigo para a vida inteira. 
Enquanto os adultos se deliciavam com um queimadinho com bolo de fubá, saí pelo quintal  com o garoto, dois anos mais velho que eu.
Foi amor à primeira vista. Afinal, a amizade nada mais é que uma das mais puras formas de amar algu'em.
Wellington e eu saímos correndo por aquele minifúndio, chutando uma bola de plástico que caiu perto de uns destroços de construção.
Chamei-o para ver o que acabara de descobrir debaixo de umas tábuas empilhadas sobre uns tijolos. 
Tratava-se de um ninho de adoráveis criaturas, que capturamos para que se tornassem nossos bichinhos de estimação.
Naqueles dias, por onde eu ia, costumava levar um estojo de madeira do tamanho de uma merendeira, daqueles grandes. Nele, onde deveria estar acondicionado um sortimento de lápis de cor, eu ia colocando pedrinhas redondas que ia encontrando, flores que murchavam durante a noite e 'rebanhos' de melão de São Caetano.
Pegamos os bichinhos, colocamos dentro do estojo para que fossem nossos futuros 'boizinhos' e corremos para o interior da casa com o intuito de os mostrar aos nossos pais.
Cheguei esbaforido à mesa, abri a caixinha e os bichos saíram ziguezagueando entre pratos, talheres e xícaras.
Dona Socorro deu um salto, mamãe não conseguiu segurar um gritinho, misto de nojo e medo. 
Papai fez cara severa. 
Seu Gabriel  soltou uma gargalhada.
Ratos não servem para animais de estimação e transmitem a peste bubônica, eu aprenderia ali.
Lavaram nossas mãos com sabão de coco, passaram uma quantidade industrial de álcool e ganhamos um sermão. 
Os bichinhos, não sei que destino levaram. É provável que não tenham sobrevivido à fúria de Seu Antonio.
Estudaria com o Wellington do primeiro ano primário à oitava série ginasial. Seguimos amigos pela vida e hoje mantemos contato, trocando senvergonhices pelo whatzapp. E vivemos adiando um reencontro, que espero não tardar.
Na semana passada, Penha, irmã de Wellington, postou no Facebook uma foto de Dona Socorro segurando um exemplar de Meninos de São Raimundo, livro que escrevi em parceria com o poeta Bispo Filho.
Emocionei-me muitíssimo.
O tempo passou para todos nós, os cabelos dela ganharam o branco do algodão, mas Dona Socorro conservou os olhos mansos do dia que a vi pela primeira vez.
Essa crônica é um tributo a ela e seu marido Gabriel, que já não se encontra entre nós.
Espero poder abraçá-la em minha próxima ida a São Raimundo. Espero, também, que este abraço não tarde. 
E sei que o episódio do estojo de lápis de cor estará na pauta de nossa prosa saudosa.