Thursday, November 30, 2017

Blues fúnebres


(W.H. Auden)
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Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.

Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto — um laço no pescoço —
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.

Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.

É hora de apagar estrelas — são molestas —
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.

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(Traduzido pelo poeta e escritor Nelson Ascher e um dos poemas de José e Ana, meus musos de Itaúna)

Sunday, November 26, 2017

Das estranhas invenções do homem



(Para o João)


“A maioria dos homens vive vidas de silencioso desespero” 
― Henry Thoreau

As mãos espalmadas escondendo o rosto é o gesto universal dos que sentem vergonha, dos que temem a derrota e não encontram forças para virar o placar adverso antes que se apaguem as luzes.  
É o medo do fracasso, que se aproxima rapidamente como uma matilha faminta diante de um corpo ferido. 
Cruel é o homem, lobo de si, com suas matilhas vorazes, rondando em círculos numa coreografia invísivel, tendo ao centro a indefesa presa, ele próprio.
O homem tem fome de homem.
Ele tem sede do próprio sangue.
O homem, com sua cartilha de metas inatingíveis e suas missões kamikazes.
O criador da ilusão do sucesso, seus truques sujos e atalhos ilícitos.
O inventor do fracasso e do desespero.
O criador da culpa.
O tecelão da corda.
O criador do laço.
Ferreiro que deu forma ao cano dos revólveres.
O mixologista dos coquetéis letais .
Artesão da vergonha e seu gesto universal, esse das mãos espalmadas cobrindo a face.
Como o faz o goleiro, desesperado na hora do gol. 
Do zagueiro que jogou para o fundo das próprias redes a bola branca, fugaz pomba da felicidade.
Do adolescente que não conseguiu caber em um mundo cada vez mais atrofiado e em que a barra de exigências está cada vez mais alta.
Do adulto soterrado por notas promissórias.
Do pai que não consegue colocar o pão sobre a mesa.
Da mãe que não se perdoa pelos falhanços dos filhos e os assume como se fossem seus.
É quando se escuta o barulho ensurdecedor do fracasso.
E que som seria este?
Que estranho barulho teria o desespero causado pela sensação do fracasso?
O de uma fruta que passou do ponto de maturação e se espatifou contra o chão?
O canto esganiçado de uma gralha?
O apito de um cargueiro se afastando no cais?
Ou o rufar de um trovão?
Ele pode ser estridentemente silencioso, mas pode soar como um trem carregado de tesouros minerais, deslizando sobre os trilhos em direção a um porto distante.
Não raro, aparece o paliativo da corda e seu convidativo laço.
Não raro, o fundo do poço, que esconde debaixo dos pés de quem chega a ele, um traiçoeiro alçapão.
Não raro, o cano frio entre os lábios.
O dedo no gatilho.
A coragem extrema, que não é o avesso da covardia.
O clique.
O bang.
A poça gelatinosa.
E o fim.
Não, não deveria ser o fim.
Mas a cortina do espetáculo barato da vida se fecha mesmo assim.

Tuesday, November 14, 2017

Memórias de armazém


(Para Iara Carvalho e Fátima Pereira, filhas de vendeiros, e que contribuíram para esta crônica)

Uma ou duas portas de frente para a rua. Às vezes, um banco de madeira para quem quisesse permanecer. Dentro, algumas montras feitas por marceneiro, balcão com vitrines transparentes, prateleiras, um rádio sempre ligado e a imprescindível balança Filizola. Este era o cenário do universo maravilhoso dos armazéns que ainda hoje habitam o imaginário de quem viveu há não muito tempo no interior do Brasil.
Para a população não era chamado de armazém. Era a venda.
Ah, as vendas de antanho...
Os supermercados e shopping centers nos roubaram tanto de intimidade e poesia... Tanto!
Na 'venda' que habita a minha saudade tinha rapadura, lápis sem ponta e com ponta, e com borracha na ponta. Tinha tabuadas, cadernos da marca tilibra, convencionais ou de caligrafia.
E um baleiro giratório sobre o balcão com balas sortidas e chicletes ping-pong e ploc.
A granel estavam disponíveis do alpiste ao açúcar, farinhas de trigo, mandioca e milho, feijão de várias cores e amendoim com casca.
Tinha também arroz, milho, canjiquinha e canjicão. E farelo para alimentar os porcos.
Pão?
De doce e de sal, ao gosto do freguês, e ficavam expostos na vitrine, junto com umas delícias como a maria-mole, o suspiro, as cocadas e o pé de moleque, esses últimos geralmente preparados pela esposa do proprietário.
A banana era vendida em cachos ou a dúzia: prata, maçã, caturra e ouro. Tudo era embrulhado em papel pardo e bem amarrado com barbante de algodão.
Jabuticaba era vendida ao litro. Laranjas e mexericas a dúzia ou ao cento.
Em alguns meses do ano era possível encontrar pitanga, seriguela, jambo e fruta do conde.
Aquilo pendurado na parede não era um extintor de incêndio, e sim, uma bisnaga de salame, que o atendente ia cortando de acordo com o apetite e orçamento do freguês.
Havia também uma espécie de trapézio pendendo do teto, onde eram dispostas as linguiças semidefumadas de boi, porco e mista.
Para os meninos havia bolas de borracha Pelé e Tostão. A Pelé era de cor escura, enquanto a Tostão era branca, assim como as "dente de leite", que queimavam e deixavam hematomas em quem se atrevesse a ficar na frente.
Para chutá-las era providencial adquirir um conga, um kichute ou um bamba maioral.
Havia caminhões artesanais feitos de lata de óleo de cozinha reciclada e pneus de sandálias havaianas jogadas fora.
Tinha peteca confeccionada com palha de milho e penas de galinha. E cromos para os álbuns de figurinha e 'caixinhas de segredo', que se comprava sem saber o que vinha dentro.
Bonecas de pano e matéria plástica, que viravam os olhos quando colocadas na horizontal, brincando de dormir.
Havia também times inteiros de futebol de botão, piões de madeira e soldadinhos de chumbo sempre prontos para épicas batalhas.
O Rio Doce corria pertinho e havia chumbada, linha de nylon e anzóis de todos os tamanhos. E varas de pescar feitas de bambu e ubá. Além do chumbinho para as espingardas de pressão.
E um sortimento de bolinhas-de-gude - que no interior de Minas chamávamos de biroscas -, que parecia saído da arca de algum tesouro. Eu era muito ruim de birosca.
Na venda era possível comprar manivela feita de ripa de madeira, que era usada para dar linha aos papagaios e pipas. E papel em todas as cores, para a confecção daquelas magníficas aves de seda.
Para as donas de casa tinha anil de clarear a roupa, linhas de diversas espessuras, botões de vários tamanhos, agulhas, alfinetes e dedal.
Impossível não sentir o cheiro forte recendendo de um canto detrás da porta. Era lá que ficava o tambor de querosene, que muitas famílias usavam para alimentar os lampiões e lamparinas, que também eram vendidos ali.
O combustível era disponibilizado em vasilhames reciclados. A clientela humilde podia pedir corozena ou criozena, que dava no mesmo. O balconista não reparava.
Outros itens de odor desagradável eram a naftalina - eficaz no combate às traças - e a creolina, usada para curar 'bicheiras' em animais, desinfetar galinheiros ou eliminar as pulgas.
Havia detefon para as baratas e neocid para os piolhos, duas pragas que driblavam o extermínio.
Como contraponto tinha aqua velva, seiva de alfazema, trim para passar no cabelo, talco, pomada minâncora para o 'cecê' e assaduras, e o ortodoxo polvilho granado, antídoto para o chulé.
Em determinados lugares era comum encontrar fichas de telefone e pedras de isqueiro.
Canivete, palha e fumo de rolo eram comodidades obrigatórias nos armazéns.
Da barriga da geladeira Prosdócimo ou Cônsul saíam a milenar coca-cola, fanta, crush, grapette e mirinda, sempre geladinhas. E a garapa de cana, com sua tradicional cor de água de pé de andarilho.
A turma da birita era clientela pontual.
Aposentados, desocupados e trabalhadores em fim de expediente encostavam seus umbigos no balcão para uma branquinha da roça ou uma brahma chopp com véu de noiva. Como acompanhamento, um naco de chouriço de sangue, linguiça da roça ou um torresmo sequinho, daqueles que ficavam em sacos de estopa. Ali a prosa corria solta, discutiam as injustiças do futebol e os rumos da nação.
Uma das maiores atrações das vendas, no entanto, eram as cadernetas. Numa era pré-cartão de crédito e débito era comum os clientes levarem os produtos e 'pendurarem' a conta para ser quitada depois.
São páginas bonitas e simples de um tempo tão distante, que parece ter ocorrido em outra encarnação. O que não me impede de fechar os olhos e sentir cheiros, sabores, e escutar vozes e canções vindas do rádio do armazém. São pedaços de um período bonito de minha vida, memórias embrulhadas em papel de pão.

Sunday, November 5, 2017

Pequeno rascunho sobre as lonjuras


(Para José e Ana, tecelões de lonjuras) 



Os estrangeiros dizem que a saudade é um termo exclusivamente brasileiro. Eu não concebo que um finlandês não a sinta. Que um indiano não sofra dessas lonjuras. 
Talvez seja apenas uma questão semântica, mas não consigo olhar para uma pessoa, independente do seu lugar de origem, sem imaginar que dentro dela exista uma saudade. 
Saudade de pessoas e lugares. 
De um tempo bom em suas vidas. 
De um dia especial ou de um marco pessoal nas suas respectivas histórias.
O norte-americano fala apenas que 'sente falta', mas não seria essa falta, essa bolha dentro da carcaça peitoral, a saudade da qual nós, lusófonos, tanto sentimos e falamos?
Embora não haja nenhum estudo científico que comprove, este profundo estado de melancolia que às vezes nos acomete é parte do DNA humano. 
Por mais que alguns ainda não tenham encontrado a sua definição e que lhes falte a palavra exata, ela nasce no indivíduo e é guardada no coração, como aquele som que mora na barriga das caixinhas de música .
Ela pode ser um jardim, mas pode ser também um abismo.
E dorme abraçada ao amor.
É poesia e canção.
Mas pode ser autoflagelo.
Nostalgia e privação.
Ela é distância geográfica e física.
E é mote para muita inspiração.
Pode ser uma ocorrência em um tempo que passou e não voltará. Um amor correspondido, a pré-orfandade ou a pré-viuvez.
Pode ser um arrepio, um déjà vu.
Que fique bem claro: tempo e saudade são filhos do mesmo pai, mas não são irmãos.
A saudade é irmã da impossibilidade.
É prima da aflição.
Ela pode acontecer em decorrência de um amor de adolescência ou de uma paixão de verão.
Pode ser fantasma recorrente de alguém que passou e fez tocar um frevo dentro do peito, mas que se dissolveu na paisagem ou evaporou.
Pode fazer tocar um tango de pequenas ruínas ou grandes tragédias.
E decretar no minifúndio dos afetos um perene estado de desesperança. 
Dizem que a saudade e a solidão caminham de mãos dadas, mas posso garantir que podemos nos sentir sozinhos no meio de uma multidão. 
Não que a solidão não seja chão propício para essas vertigens. Isso é que não.
Ela pode ser uma dor fina, como a raiz exposta de um dente, incomodando, trucidando devagarinho. Em alguns momentos pode se tornar insuportável e pedir um uísque ou outro analgésico.
A saudade é alguém que passou, mas que continua "aqui".
Alguém que o destino prometeu, mas não veio, e que mesmo sem ter vindo não se foi completamente.
Ela pode ser um lugar que ficou no passado e que hoje, por mais que revisitado, já não é a mesma coisa.
Mudam os lugares, mudam as pessoas. E o reencontro nem sempre é feliz.
Saudade, que é nome de cemitério e de flor.
É rima em poema e prêmio de consolação.
Restou a saudade, dizem os tristes.
Pobres tristes...
Sentimos saudades até de nós próprios, ou não sentiríamos um aperto quando recordamos dos dias em que tudo podíamos e nada nos parecia impossível.
Há quem sinta saudade da vida de solteiro.
Da infância e adolescência, sem as preocupações que afligem os adultos.
Saudade de visitar um amigo, um almoço em família ou de passar férias num determinado lugar.
Confesso que sinto saudade.
Saudade de muitas coisas e de algumas pessoas.
Saudade, principalmente, do que ainda não vivi. 
Saudade de Casablanca e Havana, lugares que não fui. 
Saudade de caminhar de mãos dadas pelas ruas de Praga e de Granada, terra de García Lorca.
Saudade de tomar um café numa esplanada de Roma ou de colher um girassol na beira de uma estrada da Toscana, como me prometeu o destino.
Eu não consigo - e nem quero - esconder que ando sentido uma vertiginosa saudade do futuro.