Saturday, November 14, 2015

Um canto de amor a um povo (e seu rio)


Na noite do dia 3 de junho de 2007, a câmara municipal de Governador Valadares aprovou por unanimidade que a música Rio Doce, de Zé Geraldo, se tornasse o hino oficial da cidade.
A aprovação do projeto do vereador Paulinho Costa foi aplaudida de pé por todos os presentes e o autor da canção subiu à tribuna para canta-la.
 Foi arrepiante.
 Tratou-se de um daqueles momentos raros que rompem a barreira do tempo e que ainda hoje guardo com muito carinho nas retinas.
 Sim, eu estava lá naquela noite iluminada e jamais me esquecerei.
 Trata-se de uma canção de amor a uma cidade e ao seu povo.
 Uma música que canta as belezas do rio que lhe dá o nome, mas que decanta também o Ibituruna banhando seus pés.
Como se isto não bastasse, a canção aborda ainda a alma emigrante do valadarense, nossa impressão digital gfrudada no mapa do mundo.
 Infelizmente, o então prefeito José Bonifácio Mourão, uma pessoa que respeito muitíssimo, deixou-se pressionar por um grupo de pessoas ligadas ao autor do hino vigente, e que ainda hoje é oficial da cidade.
 Venceu Mourão. Perdeu a cidade.
 Lamentei muitíssimo, porque o prefeito desperdiçou a oportunidade de dar a Governador Valadares um hino que o país inteiro conhece e que o valadarense sabe a letra na ponta da língua.
 Faltou-lhe arrojo, naquele momento.
 Faltou compromisso com sua responsabilidade de promover mudanças relevantes e que colocassem a cidade em um lugar de destaque em todo o país.
 Rio Doce, de Zé Geraldo, representava também isto: mudança!
 Um hino que o país inteiro conhece?
 Qual cidade não quer?
 Ah, prefeito Mourão, se o senhor não tivesse fraquejado.
 Uma pena, sabemos.  Mas ainda podemos reparar este erro.
 Com o absurdo da tragédia do rompimento da barragem de Bento Rodrigues e a contaminação do Rio Doce pela lama e detritos químicos e minerais, o valadarense sofre como jamais sofreu, perecendo também de sede, que até aqui era saciada com as águas do rio que inspirou a canção de Zé Geraldo.
 Convoco as autoridades valadarenses a reviver a questão e que transformem a canção no nosso hino.
 Um hino de resistência e de luta.
 Um hino de amor à nossa cidade e às coisas que nos dizem respeito.
 Um hino de amor ao rio que banha e dá frescor à nossa história.
 Um hino de amor ao valadarense e seu torrão.
 E que esta canção signifique também a recuperação total do rio, que é tão essencial não apenas para os cidadãos de nossa cidade, mas à toda população ribeirinha que sobrevive às suas margens, até desaguar no mar, no estado do Espírito Santo.
E que a canção Rio Doce seja o hino de purificação de suas/nossas águas e signifique um novo capítulo na história da ecologia em nosso país.
 Atenção, Governador Valadares.
 Atenção, senhores vereadores e prefeita Elisa Costa!
 Transformemos Rio Doce no nosso hino de amor a esta cidade e seu rio.
 Eu, que tenho o coração valadarense, canto junto.

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Tuesday, November 10, 2015

Prainha do Xuá




(Em memória do Rio Doce, que virou lama de mineradora)

Aqui, quando faz frio é de rachar a mamona.
E quando faz calor é de cozinhar os miolos.
Sendo assim, de clichê em clichê, vamos nos queixando da vida.
Memória curta, temos nós, eternos insatisfeitos.
Se faz frio, é porque faz frio.
Se neva, é porque neva.
Se chove, é porque chove.
Se faz calor, é porque faz calor.
Criei-me em Governador Valadares, que julgava ser o lugar mais quente do mundo.
Era um Saara sem beduínos, sem camelos, palmeiras, nem tempestade de areia.
No meu coração, Valadares será para sempre um oásis de brisas benfazejas, belas odaliscas e xeiques de riquezas invisíveis.
Como era bonita e quente, aquela minha Gevê!
Tão quente, que um jornalista de passagem pela cidade escreveu um texto de onde chamou “sucursal do inferno”.
Em Valadares vi um sujeito fritar um ovo no capô de um fusca.
Vi o Rio Doce emagrecer, todo ano, sua cintura afinando e produzindo dezenas de praias ao longo de seu curso. A mais famosa delas era a praia do Xuá, agregada a uma ilhota próxima à ponte São Raimundo.
Era para lá que íamos.
Foi naquela ilhota que, menino ainda, vi um índio.
Aliás, um bugre, que é como os adultos a ele se referiam.
No meu desconhecimento de geografia, imaginava que um bugre era alguém vindo de um país distante, talvez na Cordilheira dos Andes, talvez na fronteira da Indonésia ou no Aconcagua.
Bugrelândia? Bugrária?
Seria um bugre, o mesmo que um búlgaro?
Criança, ainda, pensei ter desvendado o mistério: o homem seria de Campinas, terra do Guarani, clube de futebol que tem um bugrezinho como mascote.
E o meu bugre ficava acocorado na porta de um palheiro, debulhando milho e bebendo cachaça, que os brancos davam para ele.
Aquele índio era uma espécie de guardião da ilha, e ali ele plantava algumas coisas e criava galinhas.
Não tinha mulher nem filhos.
Não tinha nada, aquele pobre homem de cabelos lisos e desgrenhados.
Era ali que ele dormia sozinho escutando apenas a música das criaturas da noite e o barulho da correnteza bolinando as pedras.
Era ali o seu reino de um homem só. E sua prisão rodeada de águas.
Quando o calor aumentava na cidade ao ponto de quase explodir os termômetros, o rio ia definhando e formando suas prainhas, o Xuá era o destino de muitos de nós.
Tinha muito de paraíso naquelas areias brancas.
Do fundo de nossas precariedades, aqueles prazeres temporões saciavam uma sede muito maior que a nossa de mar e de amor.
De quebra, ainda nos oferecia uma oportunidade única de socialização.
Farofa geral, meus senhores.
Garrafa de pinga, meio engradado de cerveja em encardidas caixas de isopor, refrigerantes, frango assado e farofa.
Muita farofa.
Confesso que fui useiro e vezeiro. Confesso…
Homens jogavam carteado, mulheres tricoteavam sobre a vida alheia, enquanto as crianças jogavam futebol com uma bola de plástico da marca Pelé. Uma pobreza de não dar dó.
Muitas vezes nos afastávamos dos adultos e saíamos explorando as margens, roubando manga, jambo, jenipapo e ingá dos quintais ribeirinhos.
Não raro, éramos expulsos a tiros de sal.
Uma vez mais, confesso.
Alguns de nós aproveitavam a oportunidade e lançavam a sorte nas pescarias.
Tinha muito piau, lambari, tucunaré, curimatã, bagre e corvina.
Nadávamos, mergulhávamos, pescávamos e passeávamos de pedra em pedra como se não existisse o amanhã.
E, para alguns, não existia mesmo.
Muita gente perdeu a vida se refrescando nas águas traiçoeiras daquele rio.
E se, as mortes ocasionais serviam como alerta para os perigos das águas, elas não eram amedrontadoras o suficiente para nos afastarem de lá.
O medo de morrer afogado terminava antes da missa do sétimo dia.
Tenho imensa saudade das prainhas do Rio Doce.
Tanta saudade que, hoje, vendo o sol e o calor nos transformarem nessas insuportáveis bolas de mau humor, carne e suor, daria qualquer coisa para aportar numa prainha como aquela do Xuá.
Ficaria quietinho, sobre uma pedra lodosa, sentindo as águas do tempo passeando tranqüilas sobre meu corpo, levando meus cansaços, meus pecados, minhas culpas, minhas dores.