Saturday, April 28, 2012

Nas asas de um vento

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Eu sempre adorei as frases de para-choques de caminhão.
Vejo tanta poesia nelas.
Vejo tanto.
Vejo bom humor, religiosidade, sabedoria, paixão pela vida e por uma profissão que nem sempre é apreciada e bem vista pela sociedade.
Os caminhoneiros cortam o país de norte a sul o ano inteiro, de noite e de dia, para que não falte comida nas nossas mesas, para que o progresso se alastre e  a integração  nacional seja consumada.
O caminhoneiro diz muito de si na frase que adota para apresentar o seu caminhão aos passantes.
A frase de para-choque é uma espécie de cartão de visitas.
Pela frase, dá para saber um bom bocado da personalidade do motorista .
Dá pra saber se ele é religioso, romântico, edipiano, se é ligado na família ou se é um bon-vivant.
Abundam as frases religiosas, trechos de música do cancioneiro popular romântico e aquelas que professavam o amor por uma mulher , pela mãe ou pelos filhos.
O algoz do caminhoneiro é quase sempre a sogra, o guarda rodoviário, o banco detentor das duplicatas de pagamento do veículo, ou colegas ruins de volante.
O caminhoneiro é amigo de Jesus Cristo e São Cristovão.
E de Nossa Senhora Aprecida, padroeira do Brasil.
Foi nas placas das Mercedes 11-13 e 15-19, nos fenemês e nos Scania Vabis que eu aprendi que Caçador e Rio Negrinho ficavam em Santa Catarina; que Arcoverde e Caruaru existiam em Pernambuco e que Vacaria, Bagé, Pelotas e Novo Hamburgo não eram paisagens de um outro país.
Descobri que em São Bernardo do Campo fabricavam carros.
E que em Santa Catarina congelavam aves.
Eu aprendia geografia nas placas dos caminhões, e descobria a diversidade do povo de meu país.
Naqueles caminhões vinham morenos e índios do norte e nordeste.
E louros que vinham do sul.
Os que vinham do norte traziam na fala a melodia de um baião.
Traziam o cheiro do mar da praia de Iracema, a secura do Cariri e o perfume de um acarajé.
Traziam caminhões abarrotados de abacaxi, mangas das margens do São Francisco e uma fé em Padre Cícero Romão.
Os que vinham do sul traziam automóveis na barriga dos caminhões-cegonha.
Traziam peças gigantescas feitas de aço e ferro.
Traziam aves e bois e porcos congelados em baús frigoríficos.
Traziam um sotaque diferente, fandangos, chulas e polcas.
Traziam erres e esses.
Traziam vírgulas.
Traziam um que de que já haviam visto neve e que nem eram de lá, do sul do meu país.
E eu, rapazote, naquele entrocamento de tantos Brasis e de mim próprio, era um menino que não sabia para onde ir.
Se ia ou se ficava, era o vento que balançava a minha sorte.
Se para o norte ou para o sul, para algum lugar uma parte de mim já havia partido.
Para o sul ou para o norte, foi o vento que me levou.

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Monday, April 23, 2012

Curiango


João-sem-braço, gritam os moleques na rua.

Ele baixa a cabeça – envergonhado  -, come a poeira do chão com os olhos, aquelas duas ilhotas de jabuticaba cercadas de sangue pisado por todos os lados.
Falta-lhe o braço esquerdo. Sobra-lhe arrependimento.
O homem prossegue desequilibrado em sua rota, ziguezagueante, o corpo pendendo para os lados, metade gravidade, metade alumbramento. É assim todos os dias.
E o nome dele nem é João.

A certidão atesta que Antônio José Dos Santos nasceu num dia de Santo Antônio, em Galiléia, quase na divisa do Espírito Santo.
Daria a saber que  sua família foi subindo à margem direita do Rio Doce, até fincar estaca em Valadares.
O pai morreu novo, afogado, durante uma pescaria, neste mesmo rio. 
Dizem que ele estava bêbado, e que a cachaça corre nas veias da família há várias gerações.
Desde então, Maria Quitéria foi virando aquele  caquinho de mulher, viúva jovem ainda, com a má-sorte amalgamada num barraco de terra batida na encosta do morro, e com um filho para criar.
Trabalhava  em casas de pessoas pouco menos miseráveis do que ela. 
Sabia fazer biscoitos e cozinhar trivialidades.
Lavava, passava, consolava as patroas.
Todas as noites chorava a ausência de seu homem e a única diversão que conhecia era ir à igreja aos domingos, onde passava horas a fio confessando pecados que não eram seus.

Antônio cresceu fazendo bicos.
Escola, ele não teve.
Namorada, não conseguiu.

Ele não havia nascido para o amor. 

Era tão feio, que passou a ser chamado de Curiango, uma ave de plumagem pardo-amarelada finamente pintada de preto e com manchas pretas maiores, rêmiges pretas com fita branca.

Curiango capinava um quintal aqui, fazia um serviço de servente de pedreiro ali, caiava muros, ajudava nos carretos em troca de qualquer coisa.
Chegou a fichar na Cerâmica: um salário-mínimo , meio expediente no sábado  e o domingo de folga pra rebater as dores no corpo, porque o serviço era pesado.
Muito pesado.
Durante 12 horas por dia ele  moldava telhas do tipo cumbuca e tijolos lajota, que os caminhões levavam e o deixavam pensando que estava ajudando a construir uma cidade. Um país.

No sábado, quando saía da Cerâmica - a pele negra ainda esbranquiçada do pó de argila -, ele encostava o umbigo no balcão da venda do albino Zé Roque e pedia uma branquinha, e um pedaço de chouriço de porco.
E pedia outra dose, e mais outra e outra mais.

Após a décima pinga, Curiango começava a conversar com um amigo imaginário, que ele próprio dizia ser o diabo.
Seus olhos ficavam esbugalhados, o semblante se encarguilhava e ele balbuciava frases incompreensíveis, gesticulando, explicando, fazendo-se se entender e entendendo, maneando a cabeça positiva ou negativamente, conforme a prosa se desenrolava entre os dois.
Os clientes da casa se acostumaram à cena. Havia até quem -  por educação - cumprimentasse os dois.
Foi no balcão daquele vendeirim, que Curiango escutou a estória de um homem que sobreviveu a um atropelamento e nunca mais precisou trabalhar.
    
“A indenização da Vale do Rio Doce foi maior que o prêmio da loteria mineira”, teria sussurrado o diabo.
    
O diabo, aquela má-influência, aquela péssima companhia.
    
Desde que começaram a andar juntos, Curiango não quis mais trabalhar. Só queria saber de beber com o amigo. E, como não tinha mais salário e o diabo anda sempre duro, esmolava por cachaça:
   
-          Ô, me paga uma pinga aí ? – pedia a qualquer um que entrasse no estabelecimento.
Todos os dias, com ou sem dinheiro, chegava na venda logo pela manhã e começava a beber e a falar sozinho.
    
Sozinho, não: com o “companheiro”.


    
Naquele sábado, porém, Curiango chegou desacompanhado.
    
Havia feito a capina de um quintal da Rua Ametista e ganhado o do vício.
   
-   Bota uma branquinha aí, Zé Roque!
    
E mais uma. E mais outra. E outras tantas mais.
   
Olhou para as mãos calejadas e franziu a testa. Duas bolhas haviam arrebentado pelo peso da enxada. E ele foi ficando incomodado.
   
A todo instante, olhava para a porta, mas o amigo não chegava.
Devia ser umas duas horas da tarde, um calor infernal, o sol a pino, quando ele pediu a saideira.
Vazou pela porta, a camisa branca e suja completamente desbotoada, sumiu na curva da rua em direção ao caminho do trem.

Respirou fundo, fez um nome do pai e deitou-se paralelamente à linha férrea, abrindo os braços como um Jesus Cristo embriagado e negro, o braço esquerdo trespassando um dos trilhos até a altura do sovaco.
       A locomotiva foi se aproximando em altíssima velocidade, crescendo aos olhos, o maquinista perplexo, gritando desesperado, puxando os freios e apitando na esperança de que Curiango saísse daquele transe e se levantasse.
Tudo em vão.
Do outro lado dos trilhos, o amigo imaginário sorria. 
Diabolicamente, como é de seu feitio.


* Ilustração, "O Escravo - Personagem de Paraty", de Luciano Osório


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Friday, April 20, 2012

O Presente Maior


(Para os meninos Hique, Pepê e Dedé)

O que dar de presente a um menino no dia de seu aniversário?
Das minhas recordações da infância salta uma bola de futebol, presente de uma tia de Belo Horizonte.
Cresci achando ter ganhado menos presentes do que mereci.
Adulto, entendi que recebi muito mais do que puderam me dar.
O que dar a um filho, menino, no dia de seu aniversário?
Um futuro brilhante?
Um lugar garantido em Princeton, quando ele crescer?
Um poema?
Uma canção?
O gol da vitória numa final de campeonato na escola?
Um dez em matemática?
Um pai e uma mãe honestos e de bom coração?
Estes últimos são, a meu ver, um presente imprescindível.
Tudo o mais, vem junto, a reboque, dentro dos limites de cada um.
Eu, se pudesse, daria uma professora carinhosa e meiga, quase uma extensão da avó.
E um carrinho de madeira, com capô de lata e rodas recortadas de uma velha sandália havaiana.
Um pião, uma pipa e um carrinho de rolimã.
Um embornal com um estilingue e muitas bolinhas de gude.
E frutas maduras, cheirosas, suculentas, tiradas diretamente do pé.
Daria ainda manhãs de grama orvalhada.
Uma estrela que nunca se apaga.
E uma fogueira de São João.
Daria férias inesquecíveis na fazenda.
E um piau prateado, daqueles que dançam no extremo da linha que pende da ponta da vara de pescar.
Daria ainda um passeio no lombo de um cavalo troteiro.
E a visão confortante, ao longe, de uma chaminé fumegando na paisagem.
Construiria uma estrada margeada por flores silvestres, margaridas, cravos, lírios e jasmins.
Daria um conselho de avô.
Um biscoito da avó.
Um mergulho no riacho.
Uma ducha na cachoeira.
Uma lua cheia.
Noites sem pesadelos, sem bruxas malvadas ou dragões cuspindo fogo.
Chuvas?
Só se fossem as de verão, cantando “sol e chuva, casamento de viúva”.
E o ar com cheiro da terra molhada e um arco-íris, com seu pote de ouro, bem no fim.
Daria-lhe ainda uma festa de aniversário coalhada de balões coloridos num dia ensolarado, bem no começo da primavera.
E um bolo de chocolate com uma vela numeral em cima, e um coral de amiguinhos do peito, puxando um desafinado mas, entusiasmado, ‘parabéns’.
Mas os tempos mudaram, eu sei.
E hoje só se fala em videogames, bicicletas cibernéticas, rollerblades, Ipods, celulares, roupas de grife, viagens a Disney e bonecos de super-heróis, daqueles que lançam raios laser de seus olhos.
Não existe nada de errado nisto.
Mudaram os tempos e as prendas que damos aos meninos.
O que não podemos mudar é aquilo que acredito ser o presente maior.
No meu relicário, que é onde guardo as coisas de maior valor, estão o respeito e a admiração por um cara que sempre me deu muito mais do que pôde dar:
O amor pelo filho, esse sim, é um presente que dura para sempre. Herdei do meu como lição.
O resto, todo o resto, também é importante.
Mas é coisa menor.
Bem menor.
Grande é a infância.



Ilustração, "Infância", quadro de Marina Jardim.

Thursday, April 12, 2012

Das coisas simples da vida


Algum dos leitores combinou - em priscas eras - “Capadinho à Meia” com algum amiguinho ou amiguinha na escola?
Tudo bem.
Não vou forçar a barra.
Só quem é do interior e já “trintou“ nesta vida, irá saber do que estou falando.
Capadinho à Meia visava copiar, à moda dos meninos, o tratado que os adultos tinham de criar porcos à meia.
Na versão adulta, funcionava assim:
A porca do senhor José paria seus leitões e esses leitões eram levados para a casa do senhor João.
Este, por sua vez, “capava” os suínos para que tivessem uma engorda mais rápida. Cabia a ele criá-los.
Era sua total responsabilidade alimentá-los, curá-los de eventuais doenças até que alcançassem o peso ideal. Uma vez “no ponto”, os animais eram vendidos ou abatidos.
No primeiro caso, cada um levava a metade do dinheiro obtido.
No segundo caso, cada sócio ficava com uma banda do bicho.
Entre as crianças, o contrato referia-se ao lanche do recreio na escola.
O “compadre” que escutasse o seu par dizer “Capadinho à Meia”, deveria, imediatamente e sem reclamar, repartir ao meio, a merenda.
Esquisito, né?
Nem tanto.
Estranho mesmo era, no início da juventude, a carteirinha de sapo, uma cartolina impressa em tipografia, contendo os seguintes dizeres:
“O portador deste documento tem direito de roubar fruta no pé, dar palpite em jogo de sinuca, omitir durante a confissão, filar cigarro dos amigos e xingar juiz em partida de futebol”.
E os apelidos do interior?
Impagáveis, todos eles.
Melhor mesmo, só alguns nomes.
O humorista Chico Anysio, por exemplo, jurava que o meio campo do seu time de coração, o Ferroviário do Ceará, era composto por Redondo, Peru e Cacetão.
No Ibituruna de São Raimundo tínhamos Fubica, Piriá, Pilão, Caieira e o treinador Pé-Chato, todos apelidos.
Tinha também Atanagiba, Aristeu e Docival, do jeitinho que atestavam suas respectivas certidões de nascimento.
Nos botequins do bairro, duplas engraçadas como Almir Boca-Rosa e Walmir Tanguinha, parceiros de sinuca.
No salão de dança tinha Jandira Tanajura e Maria Cobrinha, especialistas em forró.
Registre-se na lista os amedrontadores Pedrinho Capeta, Cláudio Saci e Antônio “Lubizôme’.
Não posso me esquecer dos “insetos” Formigão e Muriçoca. Nem dos “pacíficos” Marcos Pombinha e Antenor Calça-Frouxa.
Tinha também os pouco atraentes Antõin Curiango e Reginaldo Caburé.
Na zona boêmia, Rita Cafubira e Adelaide Copo-Sujo.
A namorada de meu amigo Paulo Canjiquinha atendia pela alcunha de Beth Arrebenta-Beiço.
Tudo porque abrira com um golpe de cotovelo, a boca de um bêbado que tentou agarrá-la na saída de um baile no clube San Remo.
Meu padrinho se chamava Deobaldino.
Sua esposa era Sidonília.
No meio de tanta espirituosidade, nenhum caso é tão pitoresco como o dos inapartáveis José e Sebastião.
José de Arimatéia Santos era negro, tão reluzente, que caiu nas graças do povo como Zé Cromado.
Seu grande amigo Sebastião Soares Pollozi, era o único albino dos sete irmãos.
Na infância era chamado de ‘Vermêio’ e Cabelo-de-Fogo. Na juventude, ganhou o definitivo Tião ‘Fuliado’.
Eles queriam dizer que ele era “folheado a ouro”.
É bom deixar claro que Zé Cromado e Tião ‘Fuliado’, eram “atrelados” desde meninos, mas tinham lá suas diferenças.
Um era atleticano, o outro cruzeirense.
Um era MDB, o outro ARENA.
Um era seresteiro.
O outro só falava em samba.
Ambos trabalhavam na cerâmica e eram compadres no batismo de seus filhos.
Cromado e Fuliado devem andar por lá até hoje.
Trocando farpas durante o carteado ou pescando no rio, discordando no futebol e na política, mas inseparáveis como dois siameses gerados fora da genética, através desta maravilha não-científica chamada amizade.


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Monday, April 9, 2012

Dois Poemas de João Cabral de Melo Neto





















Tecendo a Manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã.
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.



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Alguns Toureiros

Eu vi Manolo Gonzáles
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.

Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.



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Tuesday, April 3, 2012

A nova cara da velha América






















Prepare-se, América.
Prepare-se para o que você já é, e que ainda não se deu conta.
Prepare-se para assumir seus traços indígenas, os cabelos escuros e o semblante hispânico.
Prepare-se para recalcular a estatura e rever os seus valores.
Você já não é mais tão loura.
Você já não é tão branca.
Nem tão santa.
Já não é tão alta e, presumidamente, tão forte, tão indestrutível...
Você humanizou-se e ainda não caiu a ficha.
O 11 de Setembro restitui-lhe o dom e a graça da mortalidade e isto é uma bênção, e não uma maldição, como querem fazer crer esses republicanos sem mãe, sem pai, e agora sem pátria.
Aprenda com seus erros, América.
Reprograme-se com os seus acertos.
Essa foi, sempre foi, afinal, a sua maior virtude.
Mas a vaidade está lhe fazendo desvirtuar, perder-se de si.
Esta vaidade que sempre foi a sua maior inimiga.
Portanto, chega de arrogância, de petulância, e de tanto mal-querer.
Seus olhos já não são tão claros.
E você não se olha mais no espelho.
Você ficou mais bonita, morena, sabia?
Você é aquela atriz que já não consegue os papéis mais glamourosos e sim, os mais expressivos.
Alguém precisa lhe lembrar de que você não é Scarlet Johansen, mas sim, Meryl Streep.
Assim sendo, você terá que engolir esse orgulho saxônico, essa agressividade, esse rancor - sabe Deus de que, de onde e de quem - , e essa empáfia escondida por detrás de uma temência cristã que já não convence a ninguém.
Nem a Deus.
Você é tão pecadora, quanto qualquer outra santa.
Você, que bebe, que fuma e que traga.
Você, que deveria saber os riscos que corre.
Você, que despreza seus imigrantes e que os humilha, como se pisasse em vermes.
É que você se tornou uma mulher esnobe e que se esqueceu de que não nasceu, exatamente, em berço de ouro.
Afinal, seu sangue nunca foi exatamente azul, América.
Você sempre foi do proletariado, ainda que o negasse e negue.
Os mexicanos de hoje, são os irlandeses de ontem.
Os asiáticos de hoje são os italianos de anteontem.
Você, que sempre foi luta e suor, por mais que finja amnésia nestes dias em que se parece um socialite glamourosa, mas falida.
Nós somos loucos de amor por você.
Observe que nós, latinos, já não não somos esses seres inferiores que você finge não ver.
Nós já somos você, ou parte daquilo que você é e que se nega, por mais que não se tenha dado conta.
Nós, os latinos, que você tanto despreza e abomina, e que já somos o que existe de melhor em você. Olhe para nós, América!
Tome o esporte como exemplo. Nós enchemos os vossos estádios. Estamos em todos os lugares.
Robyn Regehr, destaque da defesa do Buffalo Sabres, da liga americana de hockey é pernambucano do Recife.
Tom Brady, quaterback dos Patriots e uma das grandes figuras do esporte americano é americano da gema, é verdade, mas é casado com uma brasileira do Rio Grande do Sul, e tão icônica quanto o marido famoso.
Gisele Bundchen, de sua graça. E ela lhe deu um filho tão americano como aquele que assinava Franklin, esse menino Benjamin.
O chicano Mark Sanchez, é o badalado quarterback dos Jets.
No basquete aqui da região de Nova York, outro chicano, Brook Lopez, é o pivô dos Nets.
Nas telas, a exuberante atriz Jessica Alba é mestiça: ela é um bocado dinamarquesa, um bocado francesa e muito mexicana.
É mexicaníssima como Salma Hayek, uma das mais respeitadas atrizes de Hollywood.
Assim como eram os pais de Robert Rodriguez, um dos mais inventivos diretores do cinema dos dias de hoje.
No beisebol, o mais americano de todos os esportes, vemos que os Rivera, os Reyes, Pujols, Rodriguez e Santanas, estão na prateleira mais alta.
Sem estes jogadores, a liga americana não teria a mesma graça e nem força que tem.
Jean-Michel Basquiat, um dos maiores artistas nascidos neste país, era filho de um haitiano e uma porto-riquenha.
Jerry Garcia, líder do Greatfull Dead - uma das maiores bandas do americaníssimo rock and roll -, era mestiço: descendia de galegos, irlandeses e suecos.
Assim como tantos outros homens e mulheres que se destacaram e se destacam neste país.
O que muitos puretas se recusam a ver e admitir é que os latinos estão trazendo muito mais do que mão de obra confiável e barata para o país.
Eles estão trazendo novas cores, novos sonhos americanos nascidos de outras Américas.
Eles estão retemperando a culinária local com especiarias e novos aromas.
Eles estão colorindo os céus deste país.
Estão fazendo frutificar os campos e abrindo novas estradas.
Eles estão renovando, reinventando, redescobrindo.
Que foi o que Cristovão Colombo, um latino, fez por todo o continente em 1492.
Tanto tempo depois, em 2012, esta velha América andava mesmo precisando ser redescoberta.

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Sunday, April 1, 2012

 
 
A música é tamanha, cabe em qualquer medida...
Na sua mão sobe o ar ao infinito, de lá treme.
A música por um lado vê-se, por outro não se vê.
Nada da música se improvisa por acaso.
A música corre nas gargantas e pode ser tocada com um só dedo.
A música mostra-se feia para os seus pares e bela para os seus ímpares.
A música emudece por vezes os cantores e deixa-os a sós nos camarins à esper...a do amigo do carrasco.
A música não é a mesma quando ouvida de longe ou quando ouvida de perto.
A música não tem explicações a dar a si mesma. Isso explica tudo.
A música dá asas a quem voa, a quem tem asas para voar.
A música faz aos poemas aquilo que os poemas quiseram fazer dela: render-se. E aos outros propõem; rendam-se. Tréguas e batalhas sem ordem de aviso.

A musica referenda a liberdade? Sim ou não?
A música depende de um botão da liberdade e desunha-se a mostrar os efeitos de num dedo a voz humana.
A musica faz orelha moucas.
A música não se esquece no silêncio, por isso nos lembramos dela. Permanece em mais que um som.
A música vai por vezes mais alto e de uma torre afunda o eco no centro da terra.
A música aguenta-se de pé, dorme sentada, dança e escorrega na cama.
A música pausa e pausa, faz das malas a viagem mas se acena, já de longe, a música atira os seus poemas ao mar e recebe-os nas ondas do dia seguinte, nas garrafas outro povo.
A música perdeu muitos bons poemas no vento contrário, quem sabe era bons.
A música é uma cópia de uma cópia, cara aberta vai ao fundo e vem à tona por respiração.
A música é uma revolução de estilos, é do passarinho herdeira orfã.
A música é orfã.
Quando nasceu os seus pais tinham morrido há pouco. É orfã.

A música esfrega os dedos em tudo o que der som.
A música nunca teve em si mesma uma moral, pensa que não pensa e que não perdura.
Diz-se que faz muito bem ouvi-la alguém que pense e que perdure por ela.
A música não tem barreiras mas o amor por ela, sim.
A música prepara-se, destroçada, mas vaidosa para confessar tudo ao cair do sol.
A música chora e ri ao mesmo tempo, uma criança por razões não exactamente compreensíveis.
A música quer ser perfeita, sempre que por escolha é imperfeita. Por talento dá-se a todas a bondade, a presunção, ressentimento e mais não fosse a quatro tempos.
A música de repente é a mesma nota repetida e outras vezes. A música mede-se com caneta e gravador. É maior e é menor.
A música quando se encontra já lá está.
A música nasceu antes de nós termos nascido com ela.
A música segue a sua sombra e pela sombra é fácil, não há espelho. Ou é ritmo ou é pausa. Ambos dúbios mas reconhecíveis.

A música é feita à janela e aberta vê-se da rua.
A música eriça-se ao menor vento, arranha-se a si mesma, ladra ao ar, risca a terra. Gosta mesmo.
A música quando a chuva cai com barulho de entre as nuvens vê-se o mar em dia de acalmia o que não é explicável nem por norma nem por excepção dos deuses. Digamos que são os sons em dia de ofertório.
A música vai de rio e desagua. Aquece a água doce, rebenta no mar salgado, larga os seus bichos no mar.
A música tem duas mãos, é tocada com um só peito, um só dedo. Da música sobe o ar ao infinito. A música tem um só dedo e um só dedo.
A música tem um só dedo e um só dedo.
Nada da música se improvisa por acaso.

 (Sérgio Godinho)