Monday, May 31, 2010














Dois Poemas de Manuel Bandeira

Vou-me Embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada


Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha falsa e demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive


E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada


Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar


E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada


Porquinho-da-índia

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira
[namorada.

(Transcrito de Estrela da vida inteira, p. 130)


A Música Que Toca Sem Parar:
há cerca de quinze anos encontrei-me com Geraldo Azevedo em Framingham, Massachussets, à tarde, em um lugar onde ele faria um show, à noite. Já nos conhecíamos de outros carnavais.
Emendamos numa prosa de horas.
Naquele dia falei-lhe de uma canção que ele me confidenciaria, jamais ter cantado em um show.
À noite, ele cantaria esta canção no espetáculo e eu ainda ganharia uma inesquecível dedicatória. Trata-se de uma canção falando de alguém que saiu de sua terra para tentar a sorte em um novo lugar.
De Geraldo Azevedo e Marcus Vinícius, na voz do primeiro, a lindíssima Coqueiros...


Por entre as palmas desse lugar
Por coqueiros de beira mar
Beira os olhos do meu amor
Buscando os meus
Vento a soprar
Quero as águas verdes
E quero enfim
Ser maior do que esse mar
Que avança sobre mim
Sobre a areia quero amar
Mas vou te dizer amor, mulher
Na paisagem do teu corpo
Vou deixar meu sorriso

Entre cirandas e cirandar
A cidade Recife, o sal
Do mar que derramei, chorei
Quando deixei tudo por lá
Entre pedras, ruas, só meu amor
Entre a gente que falava de mim
Que parti
É hoje aqui quis me lembrar
Vendo as praias tão sem cor, enfim
Sem as palmas dos coqueiros meu amor
Eu me lembro

Sunday, May 30, 2010

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Uma Canção Para Dona Glória


Não vi que ela chegara de surpresa, momentos antes de eu emitir aquele sonoro palavrão.
Coisa corriqueira, uma dessas bobagens de trabalho, em que a pressão do “dead line” acaba levando a melhor sobre o bom senso e a razão.
O telefone tocava insistentemente e ninguém atendia.
E eu, que dava os retoques finais num texto qualquer, fui perdendo gradativamente a concentração e a paciência.
Visivelmente - leia-se audivelmente - irritado, gritei de minha sala:
- Atende essa porra aí…
Segundos depois, quando saio da sala para buscar um café, a cara quase caiu no chão, tamanha a vergonha.
Dona Glória estava lá, quietinha, sentada numa posição característica de “vó” (as pernas cruzadas, uma mão sobre o joelho e a outra mão postada em cima), com cara de quem estava fazendo de conta que não havia testemunhado tamanha grosseria.
Bem feito, terão pensado meus colegas de trabalho. Bem feito!
Fiquei desconcertado.
Extremamente desconcertado.
Mas fui lá, e fizemos as apresentações formais.
Dei-lhe um abraço, ganhei outro. Muito mais fundo. Um abraço maior.
No abraço de avó Glória veio o abraço de todas as avós do mundo e uma esperança de que meu dia iria mudar.
Que minha vida iria mudar.
E eu, aquele sujeito estressado que acabara de cometer uma enorme grosseria, senti-me perdoado ao ser abraçado por ela.
Senti na hora que não iria para o paredão.
Que não iria para o pelourinho.
Que não haveria cadeira elétrica, prestação de serviço comunitário ou outro degredo qualquer.
E que meu destempero havia sido compreendido, embora tudo ali tivesse sido devidamente registrado na caderneta de más-ações.
Não cheguei a pedir desculpas, creio eu. Bad boy!
Aquele nosso abraço, que durou alguns segundos e pareceu eternizar-se como uma das coisas boas dessa vida, transpôs-me a um lugar bonito, muito distante dali.
No abraço de vó Glória veio uma sopa de legumes num dia de gripe e febre.
Veio uma bandeja de quindins, brigadeiros e biscoitos de polvilho.
Veio um embrulho colorido com o meu nome escrito, sob uma árvore de natal.
Veio um dia ensolarado.
E um entardecer vermelho, com o sol se derretendo, lentamente, nas águas claras do rio.
Veio o som de um radio ao longe, na hora do ângelus, tocando a Ave-Maria.
Veio a lembrança de um bichinho de estimação que bem poderia ser um coelho branquinho, de olhos encarnados; um gato rajado ou um cãozinho vira-latas, daqueles que nos seguem o tempo inteiro e se deitam ao pé da cama.
Veio a imagem de um campinho de futebol, de gramado verdinho e traves feitas de bambu, com um monte de meninos pretos e brancos e pardos correndo atrás de uma bola alaranjada.
Veio a algazarra de crianças na hora do recreio.
E o canto de uma cigarra.
Veio um carrinho de rolimã desembestado descendo a rua, um embornal recheado de bolinhas de gude, um peão e um ioiô.
Veio um pé de fruta, carregado de delícias de toda cor.
Pitangas vermelhas, cajus amarelos, laranjas douradas.
Carambolas. Jambos. Graviolas. Pequis. Mangas. Cajás.
No abraço dela veio um ‘corguinho’ cheio de lambaris e carás, mandis, traíras, cascudos e piaus.
Veio uma árvore apinhada de passarinhos, canários-do-reino, tizius, sanhaços e bentevís.
Veio o telhado de uma igreja coalhado de andorinhas.
E um solo de curió.
Veio uma estrada de chão cortando a paisagem, e um Jipe Rural em plena trajetória, levantando a poeira.
E veio também uma chuva de verão, respingando tudo, renovando a vida e deixando no ar a fragância de terra molhada.
No abraço de vó Glória veio a primeira comunhão e a roupa nova, a camisa de tergal ainda com cheiro de loja, a calça-curta, o sapato “colegial” e a meia branca até o meio da canela.
Veio também o primeiro dia na escola. E um sorriso orgulhoso no dia da entrega do diploma do curso primário.
Veio um almoço de domingo, em família, com direito a macarronada, frango de “televisão de cachorro”, maionese, e uma soneca coletiva.
No abraço de vó Glória veio ainda uma blusa de lã, que ela mesma teceu, absolutamente compenetrada, gangorreando numa cadeira de balanço.
Veio também a esperança de que eu viesse a ser, no momento certo, e apesar de todas as carências e deficiências, um homem bom.
Um homem que soubesse pedir desculpas.
Que soubesse pedir perdão.
E é o que tento fazer até aqui.
É essa a intenção, apesar de todo o atraso, nessa crônica-pedido-de-desculpas.
Vó Glória, desculpa! Foi mal.
Desde aquele dia, tenho procurado me comportar melhor.


Foto: ternura de criança, Bebel e Cissa... meus dois bebês.

A Música Que Toca Sem Parar:
Egberto Gismonti e Cristiana Legrand, de autoria dele, Cristiana.

Friday, May 28, 2010

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"No centro da cidade, um grito.
Nele morrerei, escrevendo o que a vida me deixar
e sei que cada palavra escrita é um dardo envenenado.
Tem a dimensão de um túmulo e todos os teus gestos
são uma sinalização em direcção à morte.
Mas hoje, ainda longe daquele grito,
sento-me na fímbria do mar. Medito no meu regresso.
Possuo para sempre tudo o que perdi,
e uma abelha pousa-me no azul do lírio
e no cardo que sobreviveu à geada.

Bebo, fumo, mantenho-me atento,
absorto - aqui sentado, junto à janela fechada.
oiço-te ciciar: amo-te, pela primeira vez,
e na ténua luminosidade que se recolhe ao horizonte,
acaba o corpo.
Recolho o mel, guardo a alegria,
e digo-te baixinho:
Apaga as estrelas, vem dormir comigo
no esplendor da noite do mundo que nos foge."

(Al Berto)


A Música Que Toca Sem Parar:
de Gilberto Gil, na voz e violão de Celso Fonseca, Tempo Rei.

Wednesday, May 26, 2010












Dois Poemas de Maria do Rosário Pedreira

1.
Não há mais nenhum nome. Depois de ti
destinaram-me apenas corpos que não amei,
rostos onde não quis pousar os olhos por temor
de os fixar, mãos que eram sempre as sombras
das tuas mãos sob os lençóis. Nunca sequer as vi,

nem toquei esses dedos que, no escuro, celebravam
na minha a tua carne — se outro motivo os trazia,
por mais vago, também não quis ouvi-lo, nunca
o soube. Depois de ti, depois dos outros homens,
é ainda o teu nome que digo, e nenhum outro.


2.
De que me serviu ir correr mundo,
arrastar, de cidade em cidade, um amor
que pesava mais do que mil malas; mostrar
a mil homens o teu nome escrito em mil
alfabetos e uma estampa do teu rosto
que eu julgava feliz? De que me serviu

recusar esses mil homens, e os outros mil
que fizeram de tudo para parar-me, mil
vezes me penteando as pregas do vestido
cansado de viagens, ou dizendo o seu nome
tão bonito em mil línguas que eu nunca
entenderia? Porque era apenas atrás de ti

que eu corria o mundo, era com a tua voz
nos meus ouvidos que eu arrastava o fardo
do amor de cidade em cidade, o teu nome
nos meus lábios de cidade em cidade, o teu
rosto nos meus olhos durante toda a viagem,

mas tu partias sempre na véspera de eu chegar.



Maria do Rosário Pedreira ( Lisboa, 1959 ) é editora e escritora.


A Música Que Toca Sem Parar:
Caetano Veloso gravou para o Songbook de Chico Buarque esta versão de O Que Será (À Flor da Pele). A canção, um clássico do repertório de Chico Buarque e Milton Nascimento.

O que será que será
Que andam suspirando
Pelas alcovas?
Que andam sussurrando
Em versos e trovas?
Que andam combinando
No breu das tocas?
Que anda nas cabeças?
Anda nas bocas?
Que andam acendendo
Velas nos becos?
Estão falando alto
Pelos botecos
E gritam nos mercados
Que com certeza
Está na natureza
Será, que será?
O que não tem certeza
Nem nunca terá!
O que não tem concerto
Nem nunca terá!
O que não tem tamanho...

O que será? Que Será?
Que vive nas idéias
Desses amantes
Que cantam os poetas
Mais delirantes
Que juram os profetas
Embriagados
Está na romaria
Dos mutilados
Está nas fantasias
Dos infelizes
Está no dia a dia
Das meretrizes
No plano dos bandidos
Dos desvalidos
Em todos os sentidos
Será, que será?
O que não tem decência
Nem nunca terá!
O que não tem censura
Nem nunca terá!
O que não faz sentido...

O que será? Que será?
Que todos os avisos
Não vão evitar
Porque todos os risos
Vão desafiar
Porque todos os sinos
Irão repicar
Porque todos os hinos
Irão consagrar
E todos os meninos
Vão desembestar
E todos os destinos
Irão se encontrar
E mesmo padre eterno
Que nunca foi lá
Olhando aquele inferno
Vai abençoar!
O que não tem governo
Nem nunca terá!
O que não tem vergonha
Nem nunca terá!
O que não tem juízo...

Monday, May 24, 2010

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Do Mercado Central de Beagá

Fui ao Mercado Central de Belo Horizonte comprar uma panela de pedra-sabão, que pretendia trazer para New Jersey com a finalidade de incrementar minha modesta moqueca de peixe.
- Mas isto é um trambolho, ponderou meu pai.
E não ficou nisto:
- Você vai carregar um ‘esparrame' destes no avião?
Saí sorrindo, evitando mais uma polêmica entre pai e filho, ciente de que nosso relacionamento estava inaugurando uma nova era na minha não resposta.
Uma vez no destino, acabei não resistindo e comprando um montão de tralhas numa lojinha simpática, não me preocupando com o excesso de peso que a balança da companhia aérea certamente acusaria.
Comprei um pilão de socar alho em madeira de lei, que é um charme.
Adquiri, também, um bule de café, daqueles feitos de esmalte - muito usados nas casas da roça -, juntamente com seis simplórias canequinhas que darão um aspecto jeca-chique à minha modesta cozinha.
Para meu amigo Neném Corrêa, que ganha a vida erguendo casas por aqui, descolei um jogo de marmitas de alumínio, que será muito apreciado por ele, e motivo de gozação de seus pares.
Para Fábio Portugal pensei em trazer um urinol, à guisa da mais ingênua troça.
Desisti, mas os vi lá, em diversos materiais: alumínio, esmalte, ou plástico duro, nas mais variadas cores, pendurados na entrada de um bequinho onde vendiam ainda artigos de umbanda e enfeites feitos de palha e cipó.
Para meu irmão Toninho, que curte velharias decorando a sala de sua casa, comprei um prosaico ferro à brasa, pesadíssimo, que certamente comprometeria minha cota de peso no avião.
E, só não comprei mais coisas, porque fui arrastado por um amigo boquiaberto, que se recusava acreditar que, além da caixa de latinhas de skol e cinco garrafas de cachaça de Salinas já adquiridas, eu falava em incorporar alguns espetos de churrasco em diversos tamanhos.
Queria, também, um cortador de feijão, uma forminha de alumínio apropriada para fazer misto-quente, e um tacho de cobre que seria usado no feitio de doce de leite.
Não fosse pela intervenção desta alma de bom senso, teria adquirido muito mais.
Ah, amigos, como eu gostaria de ter trazido para todos vocês, um pouco do muito existente naquela imensa vitrine de vida, que é o mercado central.
Queria trazer um cheiro de umas douradas carambolas, que vi na banca de uma barraca ao lado de caquis, jambos, pitangas e cajás.
Queria trazer a essência e o perfume de alguns abacaxis maduríssimos, frutas do conde, mexericas e mangas rosa e espada, exuberantes, que vi numa outra loja.
Sem me esquecer de encher uma sacola com jilós, maxixes, quiabos, batata doce, mandioca (enxutíssima!), agrião, taioba, mostarda e limões-capeta e galego.
Para temperar nossas vidas traria uma réstia de alho em forma de trança, um "molho" de coentro e pequenos feixes de alecrim e manjericão.
Numa barraca de aves, compraria uma galinha velha, e preferência do "pescoço pelado", que traria, na esperança de conseguir alguém que nos fizesse uma canja como aquelas da lavra de nossas mães.
Poderia trazer, ainda, uns ovos de codorna, que tomaria batido com cerveja preta da marca Caracu, que também viria camuflada em algum lugar da mala.
E mais umas garrafas de raízes fortes: losna, carqueja, jurubeba e boldo.
Da floricultura eu traria umas hortênsias, umas "flores de visgo", uns copos-de-leite e algumas mudas de mal-me-quer.
Queijos, requeijões, carne-de-sol, linguicinha defumada e paio, que não poderiam ser esquecidos em minha lista.
Mas ficou tudo lá, e destas coisas tantas só posso dar a notícia.
Inclusive minha mala, extraviada pela companhia aérea, e que foi localizada, pela última vez, em algum lugar de minha saudade.

*

Foto surrupiada da internet, bonecas de barro do Vale do Jequitinhonha, abundantes no Mercado Central, em Belo Horizonte.



A Música Que Toca Sem Parar:
De Elomar Figueira de Melo, O Pedido, interpretada por Francisco Aafa.


Já que tu vai lá pra feira
traga de lá para mim
Água da fulô que cheira,
Um novelo e um carrim
Traz um pacote de miss
Meu amigo Ah! Se tu visse
Aquele cego cantador
Um dia ele me disse
Jogando um mote de amor
Que eu havera de viver
Por este mundo e morrer
Ainda em flor


Passa naquela barraca
Daquela mulé resera
Onde almoçamo paca,
Panelada e frigideira
Inté você disse uma loa
Gabando a bóia boa
Das casas da cidade
Aquela era a primeira
Traz pra mim umas brevidades
Que eu quero matar a saudade
Faz tempo que eu fui na feira
Ai saudade...


Ah! Pois sim, vê se não esquece
D'inda nessa lua cheia
Nós vai brincar na quermesse
Lá no riacho d'areia
Na casa daquele homem,
Feiticeiro curador
O dia inteiro é homem
Filho de Nosso Senhor
Mas dispois da meia noite
É lobisomem comedor
Dos pagão que as mãe esqueceu
Do Batismo salvador
E tem mais dois garrafão
Com dois canguim responsador


Ah! Pois sim vê se não esquece
De trazê ruge e carmim
Ah! Se o dinheiro desse
Eu queria um trancelim
E mais três metros de chita
Que é pra eu fazê um vestido
E ficar bem mais bonita
Que Madô de Juca Dido,
Zefa de Nhô Joaquim
Já que tu vai lá pra feira
Meu amigo, tras essas coisinhas
Para mim.




Deu No Estado de Minas

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Guimarães Rosa é homenageado com esculturas em Cordisburgo


Esculturas de Guimarães Rosa, e seus personagens recebem os reparos finais


Uma porta se abre para os sertões, deixa a cultura passar e se transforma em moldura para parte importante da história de Minas. Em 27 de junho, Cordisburgo, na Região Central, a 114 quilômetros de Belo Horizonte, vai ganhar um monumento à altura do seu filho mais ilustre: o médico, diplomata e escritor João Guimarães Rosa (1908-1967), que completaria, na data, 102 anos.
Na Praça Miguilim, a 300 metros do Museu Casa Guimarães Rosa (MCGR), será inaugurado o Portal Grande Sertão, com sete figuras em bronze, em tamanho natural, que retratam o autor de Sagarana e seis vaqueiros, a cavalo, acompanhados de um cachorro. Feitas pelo artista plástico Leo Santana, responsável por trabalhos de destaque na capital e em outras cidades brasileiras, as peças recebem os últimos retoques numa fundição em Contagem, na Grande BH, devendo seguir para Cordisburgo nos próximos dias.

Na quinta-feira, o diretor do museu, Ronaldo Alves de Oliveira, viu o conjunto pela primeira vez e se emocionou: “É um trabalho que tem alma e vai trazer Guimarães Rosa para mais perto de todos”. Com os olhos brilhando, ele contou que Leo Santana se inspirou numa fotografia de 1952, feita durante uma viagem do distrito de Andrequicé, em Três Marias, a Araçaí.

A iniciativa para recriação do cenário, completado por um pórtico de chapa de ferro, de 10,5m de largura x 5,20m de altura, é do governo de Minas, via Secretaria de Estado da Cultura (SEC), que assinou um convênio com a Associação dos Amigos do MCGR e bancou o projeto. Ao ser inaugurado, o portal será entregue à prefeitura local, doadora do espaço público para instalação da futura atração da cidade e responsável pela sua preservação.

O grupo de sertanejos saudados por Guimarães Rosa chama a atenção de quem entra no galpão da Fundição Artística Ana Vládia. “Esse é o nosso maior trabalho até hoje. Foram oito meses de serviço”, diz a proprietária, ao lado do marido, Irineu Rodrigues, enquanto vê o funcionário Gérson Eliezer dos Santos dando acabamento na escultura, de 130kg, do escritor.

Mostrando um leve sorriso, Rosa está de terno, com a famosa gravata-borboleta, uma caderneta de anotações na mão esquerda e a caneta-tinteiro na direita. As demais peças pesam, em média, 400kg e trazem os sertanejos de olhares decididos e fisionomia forte sobre o cavalo. Há homens que olham para a esquerda, para a trás e um que carrega o guieiro ao lado do ambíguo Diadorim, pefrente e para rsonagem de Grande Sertão: Veredas.

De Olinda (PE), onde se encontra a trabalho, Santana diz que retorna a Minas no dia 10 para a montagem das peças em Cordisburgo. “Foi um longo trabalho, que durou três anos e envolveu muita pesquisa de campo, leituras e visita aos lugares percorridos pelo escritor. Minha ideia é mostrar a entrada do cenário de Guimarães Rosa. Estou muito feliz, pois se trata do meu trabalho de maior proporção, e a minha vontade é vê-lo realizado”, diz o artista plástico, que, além da criação, destaca a produção feita pela Paralelo 3 e a fundição.

Santana assina, em BH, as esculturas de Pedro Nava (1903-1984)e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), na Rua da Bahia, no Centro; de Henriqueta Lisboa (1901-1985) e Roberto Drummond (1939-2002), na Savassi; e dos chamados Quatro Cavaleiros do Apocalipse – Fernando Sabino (1923-2004), Otto Lara Resende (1922-1992), Paulo Mendes Campos (1922-1991) e Hélio Pellegrino (1924-1988) –, na Praça da Liberdade, e Tancredo Neves (1910-1985), Ulysses Guimarães (1916-1992) e Teotônio Vilela (1917-1983), na Praça da Assembleia. No Rio, recriou Carlos Drummond de Andrade, no Calçadão de Copacabana, e Ari Barroso (1903-1964), no Bairro do Leme.

Sunday, May 23, 2010

Praca Cronada....

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Ah, Brasil..... só faltou dizer que era framenguista ou atreticano...

ps: presente de José Luís Bré.

Friday, May 21, 2010

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procuro-te no meio dos papéis escritos
atirados para o fundo do armário de vidrinhos
comias uvas no meio da página

a seguir era como se fosse noite
havia olhares que se cruzavam corpos
deambulações pela praia
era noite e alguém se aproximava

eu estava passeando os dedos
pelas nódoas frescas do vinho sobre a mesa o caderno
onde de quando em quando rabiscava um rosto
e listas de nomes que não queria esquecer

paguei o pão o vinho o queijo
levantei-me
tu cortaste-me a fuga vagarosamente preparada
pediste-me um cigarro

na outra página estávamos rindo
estendidos no pobre embarcadouro de madeira
planeávamos atravessar a noite mágica do rio

a página seguinte está em branco
mas lembro-me que te agarrei a mão e disse
todos os cigarros do mundo são para ti


(al berto)


A Música Que Toca Sem Parar:
o ator português Joaquim de Almeida (o Sherlock Holmes do filme baseado no livro O Xangô de Baker Street, de Jô Soares) escreveu este poema e o entregou ao seu compatriota Luiz Represas, um de meus cantores favoritos.
E desta parceria saiu a canção Enquanto Vivos, registrada aqui numa gravação ao vivo, durante espetáculo no centro Cultural de Belém.


Enquanto Vivos

(Joaquim De Almeida e Luís Represas)

Enquanto mortos e vivos
Enquanto
Enquanto vivos ou mortos
Nós somos
Os vivos que querem viver
Por enquanto
Temos os mortos que não tiveram tanto

Enquanto vivos
E vivos assim
Sentimos vozes
Por ti e por mim
Que a noite e o dia
Não cabem no sermos
De sermos o mesmo
De todos os dias

Enquanto caem palavras
Do cimo de torres
Gemidos do fundo de heróis
Vão calando a noite

Crianças de uniforme grande
Limparam o mundo de risos
Deixando espalhados nos cantos
Bocados de paz

Enquanto todos os dias
Nos vendem
O sofrimento de longe
Tão perto
Vão consumindo o azul
E as cores da terra
Sabendo nós que a paz
Não é só o contrário da guerra

Enquanto vivos
E enquanto formos
Grita a vontade
De deixarmos vivos
Os cheiros e as imagens
Que sentimos
E não só lemѢranças
Deixadas em arquivo

Enquanto morrem as arvores
O verde
Torna-se terra de corpos
De guerras.
Queremos tambores e guitarras
Voando nas ruas
Com a alegria da vida
Que não devia ter fim

Thursday, May 20, 2010

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Planejamento de férias


Estou indo de férias ao Brasil.
O tempo é curto, mas preciso correr trecho.
Se der, quero ir de uma ponta à outra em poucos dias e terei pouca ajuda.
Vou de carro, na asa de um passarinho, no lombo de um cavalo, vou até a pé, se preciso for. Mas eu vou.
Quero ir a São Paulo comer um pastel de feira, daqueles bem quentes e que, à primeira mordida, secam o topete da gente com o seu vapor.
Para acompanhar, um caldo de cana de cor duvidosa, quase uma água que acabou de lavar um pé sujo na poeira do estradão.
Em Sampa, ainda, passarei pelo Museu de Arte Moderna para ver um único trabalho: O Mulato.
Ficarei petrificado – me babando inteiro -, à frente de um dos quadros mais lindos que alguém um dia pintou.
Adoro Portinari.
De lá vou ao Rio de Janeiro.
Quero ver as moças bonitas – quase sereias - se refestelando nas areias da praia.
Sob o sol escaldante chuparei um picolé de limão, daqueles que refrescam até a alma do freguês.
Picolé de limão é mais gostoso no calor carioca.
Quando escorrer a tarde, vou fazer uma via-sacra pela Lapa.
Com um pouquinho de sorte, poderei conferir o violonista Yamandu Costa dando uma canja de final de noite num palquinho de um bar qualquer.
Numa viela do Pelourinho, em Salvador, ficarei observando uma baiana típica vendendo acarajé em seu tabuleiro.
Participarei, batendo palmas, de uma legítima roda de capoeira no Farol da Barra.
Tomarei banho em Itapoã.
Sentarei o corpo cansado nas escadarias da igreja do Bonfim, e de lá zarparei até Olinda.
Revigorado pela brisa de Olinda, subirei e descerei ladeiras vendo o verde do mar.
Em Recife reencontrarei amigos queridos e darei um cachê a dois violeiros que se destroem num furioso repente.
Após a peleja do diabo com o dono do céu, sentaremos, os três, para uma cerveja e mais prosa.
Irei dormir em Natal, após umas caipiróscas no Chaplin.
Mas irei amanhecer em Maceió, molhando meus pés nas águas da Pajuçara.
No mercado do Ver o Peso, em Belém, ficarei maravilhado com os frutos da Amazônia.
Peixes, frutas legumes, gente se esbarrando nos corredores, cheiros, matizes, texturas, tudo se misturando.
Tirarei uma fotografia na frente do teatro Nacional, em Manaus, lugar que sempre quis conhecer.
Deslizarei de canoa entre os igarapés de uma cidade pequena das cercanias da capital, e pescarei um peixe grande, daqueles que não cabem na fotografia, mas que realçam a mentira do pescador.
Adormecerei numa rede em Fortaleza, olhando a lua de uma varanda na praia do Futuro. Mas acordarei cedinho, com a volta dos jangadeiros do mar.
À Santa Catarina vou pra beber.
E pra comer marreco recheado.
Vou pra Blumenau, cidade de gente bonita – Vera Fisher nasceu lá - e acolhedora. Pernoitarei numa pousada de Serra e acordarei com o cantar dos galos.
Em Curitiba farei uma saudável caminhada no Parque Birigui.
De lá vou ao bairro do Pilarzinho, onde quero ser fotografado à frente da casa onde viveu Paulo Leminski, um de meus poetas favoritos.
Quero chegar a Cuiabá no meio da tarde.
Mas antes da chuva.
De lá esticarei até Campo Grande, onde apanharei um jipe que me levará a um pedaço do pantanal.
Presentearei meus olhos com as cores mais bonitas da fauna e da flora do Brasil.
Para Brasília eu não vou. O tempo anda sempre embaçado por lá.
Mas passarei em Goiânia para um arroz sem pequi, fruta da qual só me apetece o cheiro.
Em Vitória do Espírito Santo abraçarei meu amigo Tavares Dias.
E de lá seguirei para Minas Gerais, lugar onde nasci e até hoje bate o meu coração.
E o que eu vou fazer em Minas pode virar assunto para uma crônica inteira, aqui mesmo, neste minifúndio de papel.


A Música Que toca Sem Parar:
essa cantiga é "lugar" onde uma marimba toca dentro do meu coração.
Minha Sereia (gravação original de 1981), do alagoano Carlos Moura, na voz do próprio.

Wednesday, May 19, 2010


















Arte Poética

Se o poema não serve para dar o nome às coisas
outro nome e ao silêncio outro silêncio,
se não serve para abrir o dia
em duas metades como dois dias resplendecentes
e para dizer o que cada um quer e precisa
ou o que a si mesmo nunca disse.

Se o poema não serve para que o amigo ou a amiga
entrem nele como numa ampla esplanada
e se sentem a conversar longamente com um copo de vinho na mão
sobre as raízes do tempo ou o sabor da coragem
ou como tarda a chegar o tempo frio.

Se o poema não serve para tirar o sono a um canalha
ou ajudar a dormir o inocente
se é inútil para o desejo e o assombro,
para a memória e para o esquecimento.

Se o poema não serve para tornar quem o lê
num fanático
que o poeta então se cale.

António Ramos Rosa, in Sema, 1980

* António Ramos Rosa, fotografia de Gisela Rosa, Outubro de 2008

A Música Que Toca Sem Parar:

Do Songbook de Chico Buarque, de sua autoria e na voz de Eugénia Melo e Castro, Tanto Mar.
Ao piano, o trespontano Wagner Tiso.

Tuesday, May 18, 2010

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O presente maior


O que dar de presente a um menino no dia de seu aniversário?
Das minhas recordações da infância salta uma bola de futebol, presente de uma tia de Belo Horizonte.
Cresci achando ter ganhado menos presentes do que mereci.
Adulto, entendi que recebi muito mais do que puderam me dar.
O que dar a um filho, menino, no dia de seu aniversário?
Um futuro brilhante?
Um lugar garantido em Princeton, quando ele crescer?
Um poema?
Uma canção?
O gol da vitória numa final de campeonato na escola?
Um dez em matemática?
Um pai e uma mãe honestos e de bom coração?
Estes últimos são, a meu ver, um presente imprescindível. Tudo o mais, vem junto, a reboque, dentro dos limites de cada um.
Eu, se pudesse, daria uma professora carinhosa e meiga, quase uma extensão da avó.
E um carrinho de madeira, com capô de lata e rodas recortadas de uma velha sandália havaiana.
Um peão, uma pipa e um carrinho de rolimã.
Um embornal com um estilingue e muitas bolinhas de gude.
E frutas maduras, cheirosas, suculentas, tiradas diretamente do pé.
Daria ainda manhãs de grama orvalhada.
Uma estrela que nunca se apaga. E uma fogueira de São João.
Daria férias inesquecíveis na fazenda.
E um piau prateado, daqueles que dançam no extremo da linha que pende da ponta da vara de pescar.
Daria ainda um passeio no lombo de um cavalo troteiro.
E a visão confortante, ao longe, de uma chaminé fumegando na paisagem.
Construiria uma estrada margeada por flores silvestres, margaridas, cravos, lírios e jasmins.
Daria um conselho de avô.
Um biscoito da avó.
Um mergulho no riacho.
Uma ducha na cachoeira.
Uma lua cheia.
Noites sem pesadelos, sem bruxas malvadas ou dragões cuspindo fogo.
Chuvas?
Só se fossem as de verão, cantando “sol e chuva, casamento de viúva”.
E o ar com cheiro da terra molhada e um arco-íris, com seu pote de ouro, bem no fim.
Daria-lhe ainda uma festa de aniversário coalhada de balões coloridos num dia ensolarado, bem no começo da primavera.
E um bolo de chocolate com uma vela numeral em cima, além um coral de amiguinhos do peito, puxando um desafinado mas entusiasmado, ‘parabéns’.
Mas os tempos mudaram, eu sei.
E hoje só se fala em videogames, bicicletas cibernéticas, rollerblades, Ipods, celulares, roupas de grife, viagens a Disney e bonecos de super-heróis, daqueles que lançam raios laser de seus olhos.
Não existe nada de errado nisto.
Mudaram os tempos e as prendas que damos aos meninos.
O que não podemos mudar é aquilo que acredito ser o presente maior.
No meu relicário, que é onde guardo as coisas de maior valor, estão o respeito e a admiração por um cara que sempre me deu muito mais do que pôde dar:
O amor pelo filho, esse sim, é um presente que dura para sempre. Herdei do meu como lição.
O resto, todo o resto, também é importante.
Mas é coisa menor.
Bem menor.
Grande é a infância.


Fotografia de Bruno Ganz extraída de um momento do filme Asas do Desejo, de Wim Wenders.

A Música Que Toca Sem Parar:
Branca Lima e Chico Buarque, letra dele e melodia do saudoso Sivuca, João e Maria.

Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava o rock para as matinês

Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país

Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Vem, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido

Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim?

Monday, May 17, 2010

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TRADUZIR-SE
(Poema de Ferreira Gullar)

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?


*


A Música Que Toca Sem Parar:
Raimundo Fagner e Chico Buarque, esta mesma Traduzir-se, musicada com competência por Raimundo Fagner.

Sunday, May 16, 2010

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Um pequeno problema de DNA

José Luiz Bré é um dos maiores percussionistas brasileiros.
Acompanhando Renato Braz ou tocando projetos solos, ele é um dos mais inventivos músicos de sua geração.
É mineiro de Bicas, tem uma memória paquidérmica e um senso de humor admirável. Nossa amizade bissexta - só nos vemos uma vez a cada número xis de anos - nos permite muitas risadas toda vez que nos encontramos.
E o Bré, sabedor deste meu gosto pela nostalgia, deste pezinho meu preso no ontem, enviou-me na semana passada, um e-mail com algumas perguntas, que passo agora aos leitores deste blog, que estão convidados a também responder.
Ele escreveu:

Responda com sinceridade: você já tomou Q-Suco?
Você bebia Grapette?
Sua primeira bebida alcoólica foi Cuba Libre?
Já comeu goiabada cascão?
Você tomou leite que vinha em garrafa de vidro com tampinha de alumínio?
Já se tratou com Cibalena, Biotônico Foutoura e Leite de Magnésia Philips?
Você cuidou de suas espinhas adolescentes com pomada Minâncora?
Sua mãe usava Violeta Genciana para cuidar de seus machucados?
Seu pai usava aparelho de Gillete com lâminas removíveis?
Sua mãe tinha secador de cabelos com touca ?
Ela usava Leite de Colônia ou de Rosas?
Você jogava bilboquê?
Usava tampinha de guaraná para fazer distintivo de polícia?
Soltava bombinha de quinhentos, em época de festa junina?
Já andou de carrinho de rolimã?
Brincou de queimado?
Você lembra quando o Ronnie Von jogava a franjinha de lado cantando Meu Bem?
Você assistia Perdidos no Espaço e Bonanza?
Você sabia de cor a música de Bat Masterson ?
Sabe quem foi Phantomas?
Quem foi Ted Boy Marinho?
Você assistia ao Repórter Esso, ao Toppo Giggio?
Assistia Vila Sésamo?
Sabe quem foi Johnny Weismuller?
Assistiu ao Vigilante Rodoviário?
Conheceu Odorico Paraguassu?
Você se lembra o que era compacto simples e o que era um compacto duplo?
Você já teve um Bamba? Se lembra do Vulcabrás 752? Usava japona?
Quando estudava, os graus eram: primário, admissão, ginásio e científico?
Você chamava revista em quadrinhos, de gibi?
Sua mãe tinha caderneta no armazém ?
Você usou bomba de flit ? Já andou de Simca Chambord? Conheceu o Aero Willys, o Kharman Guia? Já andou de Vemaguete? Já usou gasolina azul no seu carro?
Sua mãe usava cera Parquetina? Ou, o sabão em pó Rinso?
Você se recorda da televisâo com seletor de canais rotativo?
Quando chovia você saía calçando galochas?
Se você respondeu SIM para pelo menos 30% das questões, está mesmo com um probleminha (mesmo que não admita) de DNA: Data de Nascimento Avançada.

Ao final, Bré mandou um abraço, mas não muito apertado, sugerindo que eu já deveria estar sofrendo de reumatismo, artrite, artrose e outros males.
Ele acertou.
Eu usarei esta meia-crônica para deixá-lo sabedor de que respondi afirmativamente a 100% das perguntas que enviou.



A Música Que Toca Sem Parar:

Todo Menino É Um Rei, tendo Zé Luiz Bré na percussão e Renato Braz ao vocal.

A composição é de e Nelson Rufino e Zé Luiz.


Todo Menino É Um Rei



Todo menino é um rei
Eu também já fui rei
Mas quá!
Despertei!

Todo menino é um rei
Eu também já fui rei
Mas quá!
Despertei!


Por cima do mar da ilusão
Eu naveguei! Só em vão
Não encontrei
O amor que eu sonhei
Nos meus tempos de menino
Porém menino sonha demais
Menino sonha com coisas
Que a gente cresce e não vê jamais

Todo menino é um rei
Eu também já fui rei
Mas quá!
Despertei!

A vida que eu sonhei
no tempo que eu era só
Nada mais do que menino
Menino pensando só
No reino do amanhã
A deusa do amor maior
Nas caminhadas sem pedras
No rumo sem ter um nó

Saturday, May 15, 2010

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Três Poemas de António Ramos Rosa



*

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.


*

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
tranformá-la num pão
tranformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra

*

Sim, quero dizer sim ao inacabado
que é o princípio de tudo
e o que não é ainda,
sim ao vazio coração que ignora
e que no silêncio preserva o sim do início,
sim a algumas palavras que são nuvens
brancas e deslizam amplas
sobre um mundo pacífico,
sim aos instrumentos simples
da cozinha,
sim à liberdade do fogo
que adensa o vigor da consciência,
sim à transparência que não exalta
mas decanta o vinho da presença,
sim à paixão que é um ajuste ao cimo
de uma profunda arquitectura íntima,
sim à pupila já madura
que se inebria das sombras das figuras,
sim à solidão quando ela é branca
e desenha a matéria cristalina,
sim às folhas que oscilam e brilham
ao subtil sopro de uma brisa,
sim ao espaço da casa, à sua música
entre o sono e a lucidez, que apazigua,
sim aos exercícios pacientes
em que a claridade pousa no vagar que a pensa,
sim à ternura no centro da clareira
tremendo como uma lâmpada sem sombra,
sim a ti, tempestade que iluminas
um país de ausência,
sim a ti, quase monótona, quase nula
mas que és como o vento insubornável,
sim a ti, que és nada e atravessas tudo
e és o sangue secreto do poema.



António Ramos Rosa
Os Quatro Elementos
Edições Asa, 2004


A Música Que Toca Sem Parar:
Chico Buarque e Milton Nascimento compartilham Cálice, da autoria de Chico Buarque e Gilberto Gil.


Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...(2x)

Como beber
Dessa bebida amarga
Tragar a dor
Engolir a labuta
Mesmo calada a boca
Resta o peito
Silêncio na cidade
Não se escuta
De que me vale
Ser filho da santa
Melhor seria
Ser filho da outra
Outra realidade
Menos morta
Tanta mentira
Tanta força bruta...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

Como é difícil
Acordar calado
Se na calada da noite
Eu me dano
Quero lançar
Um grito desumano
Que é uma maneira
De ser escutado
Esse silêncio todo
Me atordoa
Atordoado
Eu permaneço atento
Na arquibancada
Prá a qualquer momento
Ver emergir
O monstro da lagoa...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

De muito gorda
A porca já não anda
(Cálice!)
De muito usada
A faca já não corta
Como é difícil
Pai, abrir a porta
(Cálice!)
Essa palavra
Presa na garganta
Esse pileque
Homérico no mundo
De que adianta
Ter boa vontade
Mesmo calado o peito
Resta a cuca
Dos bêbados
Do centro da cidade...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

Talvez o mundo
Não seja pequeno
(Cálice!)
Nem seja a vida
Um fato consumado
(Cálice!)
Quero inventar
O meu próprio pecado
(Cálice!)
Quero morrer
Do meu próprio veneno
(Pai! Cálice!)
Quero perder de vez
Tua cabeça
(Cálice!)
Minha cabeça
Perder teu juízo
(Cálice!)
Quero cheirar fumaça
De óleo diesel
(Cálice!)
Me embriagar
Até que alguém me esqueça
(Cálice!)

Thursday, May 13, 2010


















Amara, embaixadora do Brasil


Leio com espanto em meu próprio jornal a situação de Amara Guimarães, doente e abandonada num hospital de Nova York. Terei que visitá-la urgentemente.
Se existe uma pessoa que jamais mereceria estar em situação semelhante, essa pessoa é Amara Guimarães.
Ela não merece a frieza de uma cama de hospital.
Ela não merece a solidão.
Amara Guimarães, que é um dos melhores astrais que conheci nesta vida.
Tem uma alma florida, esta mulher.
Uma alma com o matiz das plumas das araras vermelhas e azuis de sua terra.
Alma azul-turquesa do mar de Olinda.
Alma doce do melado dos canaviais.
Alma airosa da brisa do entardecer em sua Recife.
Alma com o frescor da sombra dos coqueiros balançando ao vento.
Alma com o burburinho do Capibaribe e do Beberibe, sangue de suas veias.
Alma de tapioca, de frevo e de maracatu.
Amara Guimarães, tudo de bom.
Brasileira, brasileiríssima, há muito que veio para a América.
Quando?
Só ela sabe.
Eu costumava brincar, dizendo que ela fora cozinheira num dos navios da armada de Cristóvão Colombo.
E ela ria, divertida, como sempre.
Acho que, na vida, ela só conheceu o riso. Ou tenha chorado pouco.
Por isto semeou tanta alegria e bondade por aí.
Amara, maravilhosa pessoa.
Fecho os olhos e posso vê-la, momentaneamente, flanando serena numa paisagem bonita que existe em algum lugar de minha memória, talvez lá em sua terra natal.
Há muito que não a vejo em pessoa, materializada, carne e osso diante de mim.
Meses?
Talvez mais de um ano. Nós que nos víamos com frequência.
E, sempre que nos víamos, era muito bom.
Cobria-me de abraços e beijos e perguntava se eu já estava ‘aprendendo a escrever’ em português.
Grande figura!
Atarracadinha e divertida, aquela nordestina aguerrida que fez e faz história por aqui é uma braçada de alecrim.
Sempre enfiada numa camisa do Flamengo, ou da seleção brasileira - duas de suas grandes paixões -, é uma espécie de embaixadora itinerante do Brasil neste país.
Uma embaixadora sem embaixada, embora seu apartamento no Greenwich Village já tenha acolhido centenas de brasileiros sem um teto ou o que comer.
Amara é assim, meio madre Teresa, meio Carmem Miranda.
Meio Sérgio Mendes, meio Gisele Bundchen.
Meio Zé Carioca, meio Pelé.
Pelé, aliás, de quem ganhou a amizade.
E é costume do Rei parar para lhe dar atenção e mimos, sempre que eles se reencontram, herança ainda dos tempos do New York Cosmos.
Pouca gente divulgou tanto o Brasil e suas coisas como Amara.
Por onde ela andou e anda, aí caminhou e caminha, um pedaço bonito do Brasil.
E é por estas e outras que acho que o governo brasileiro deveria não apenas ampará-la e socorrê-la neste momento de grande necessidade - através do consulado -, mas também lhe prestando uma merecida homenagem em vida.
Sei que isto lhe faria muito feliz.
O amor dela pelo Brasil é tão grande, que muitas vezes vi-a trocar os pés pelas mãos, chegando mesmo a cometer gafes engraçadas.
Lembro-me de um episódio em que saímos do Sob’s (bar novaiorquino) com um grupo de amigos, e começamos a perambular pelo Village, buscando um bar para tomar a saideira.
Fomos parar em um especializado em música country, na Thompson Street.
Mesas e cadeiras rústicas, o chão coberto de serragem, chapéus e botas de couro e pedaços de uma diligência pendurados na parede, e um cantor desfiando canções de Willie Nelson, Dolly Parton e Hank Williams Jr.
Num dado momento do final da noitada, o cantor diz-se aberto a sugestões da platéia.
Amara atravessou o salão, foi até ele e cochichou algo ao seu ouvido.
O cantor abriu os braços, franziu a testa e acenou a cabeça negativamente.
Nossa heroína virou-lhe as costas com cara de braba, saiu pisando alto, fez-nos pagar a conta e obrigou que deixássemos aquele recinto “i-me-di-a-ta-men-te!”
Lá fora, explicou-se:
- Não dá pra fica num lugar em que o cantor nunca ouviu falar de Tom Jobim e da Garota de Ipanema.


A Música Que Toca Sem Parar:
Cazuza, dele e de Leoni, Manhatã


Cheguei aqui num pé de vento
Já tenho carro e apartamento
Sou brasileiro mandigueiro
Tô aqui pelo dinheiro
Virei chicano, índio americano
Blusão de couro, os States são meus

Agora eu vivo no dentista
Como um bom capitalista
Só tenho visto de turista
Mas sou tratado como artista
E até garçon me chama de sir
Oh! Baby, baby, só vendo pra crer

Eu andando pela neve
Em pleno Central Park
Com as estrelas do cinema
Faço cenas no metrô
Com meus tênis All Star
Deixando as louras loucas
Com meu latin style
Não sou mais paraíba
Sou South American
Aqui em Manhatã
Aqui em Manhatã

E quando a saudade aumenta
Descolo um feijão com pimenta
E um Hollywood no chinês
Lá na Rua 46
Virei chicano, índio americano
Blusão de couro, os States são meus

Eu fumando um baseado
Em frente a um policial
Aqui tudo é tão liberal
Vou xingando em português
Depois, gasto o meu inglês
Deixando as louras loucas
Com meu baticulelê
Não sou mais paraíba
Sou South American
Aqui em Manhatã
Aqui em Manhatã

Tuesday, May 11, 2010

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"A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;


a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;


a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas."


Nuno Júdice, in 'Teoria Geral do Sentimento"


A Música Que Toca Sem parar:
Ney Matogrosso interpreta Mal Necessário, bela canção de Mauro Kwitko.

Sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher
Sou a mesa e as cadeiras deste cabaré
Sou o seu amor profundo, sou o seu lugar no mundo
Sou a febre que lhe queima mas você não deixa
Sou a sua voz que grita mas você não aceita
O ouvido que lhe escuta quando as vozes se ocultam
Nos bares, nas camas, nos lares, na lama.
Sou o novo, sou o antigo, sou o que não tem tempo
O que sempre esteve vivo, mas nem sempre atento
O que nunca lhe fez falta, o que lhe atormenta e mata
Sou o certo, sou o errado, sou o que divide
O que não tem duas partes, na verdade existe
Oferece a outra face, mas não esquece o que lhe fazem
Nos bares, na lama, nos lares, na cama.
Sou o novo, sou o antigo, sou o que não tem tempo
O que sempre esteve vivo
Sou o certo, sou o errado, sou o que divide
O que não tem duas partes, na verdade existe
Mas não esquece o que lhe fazem
Nos bares, na lama, nos lares, na lama
Na lama, na cama, na cama

Sunday, May 9, 2010

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Destino de ribeirão

Começou perfeito o dia. Céu azul, sol brilhante refrescado pela brisa da manhã nas montanhas mineiras.
E o avião da Total faz o percurso BH-Governador Valadares com suavidade.
Voa baixinho e eu posso ver, lá embaixo, o Rio Doce rasgando a terra, deslizando em direção ao seu destino.

E o meu destino? – penso eu.
- Terei eu o destino invertido de um rio?

A viagem marca o meu retorno à cidade que me viu crescer, e um turbilhão de pensamentos de todas as espécies se misturam em mim.
Lembranças de infância, incertezas infanto-juvenis, espinhas, cheiros, dores, sabores, arrepios, imagens, tudo muito embolado.
O rosto colado no plástico transparente da janela da aeronave, a tudo pressente.
Nele, vejo refletida uma metade da minha face, e consigo decifrar abundantes mechas de cabelos brancos brotando das têmporas.
Passaram-se 44 anos, desde que coloquei meus pés em Valadares pela primeira vez; 23 desde que saí da rodoviária para perseguir um sonho e não sei exatamente quantos outros, desde que pisei lá pela derradeira vez.
E, nesse momento, estou retornando à cidade para receber o título de Cidadão Valadarense, gesto generoso da Câmara Municipal para com este escriba de rasa estirpe.
Sinto-me animado e feliz.
A aeromoça oferece um refresco, peço um uísque.
Ganho um sorriso cúmplice e um generoso copo de Johnny Walker Red e duas pedras de gelo.
São 9:30 da manhã.
Da janela vejo fumaça saindo de uma chaminé numa casa de fazenda e pequenas nuvens gentis. Fecho os olhos e vejo um menino correndo atrás de uma bola de futebol.
É meio estranho, o menino.
Odeia matemática.
Aprecia os livros de literatura e as aulas de geografia e história.
Sobe e desce o morro do cemitério, banha-se nas águas do rio, pesca lambaris, rouba mangas, sobe no coqueiro, corre de camisa aberta – vela ao vento -, tem dor-de-garganta e delira de febre, o menino.
Joga bola com seus amiguinhos Meyer, Julinho, Mita, Gagau, Ney, Marquinhos, Beto Porquinho, Klinger, Ferreirinha, Balinha, Jerfinho...
O menino vê o E. C. Ibituruna jogar.
Vibra com os gols de Janjão e com as defesas do goleiro Nêga.
Ele come pastel de vento no ponto final da rodoviária, anda no último assento do ônibus da Viação Novo Cruzeiro, assiste às missas do padre João, mata passarinho com estilingue e tem medo de ir paro o inferno.
O menino vira rapaz num piscar de olhos, anda pelas ruas seguindo o perfume das moças e os acordes do violão nas serestas.
Era um tempo de serestas, sorrisos e festas e muita, mas muita, incerteza.
Na plataforma número oito da rodoviária o rapaz apanhou um ônibus para a capital.
De lá embarcaria para Nova York, no dia 8 de abril de 1984.
E tudo o que se passou a seguir - quase 24 anos - se resume nesse frio na barriga, neste arrepio, que percorre o corpo inteiro no exato momento em que o avião da Total faz manobra em frente ao pico do Ibituruna, nessa manhã mais que perfeita.

Desço do avião e (juro!) piso num tapete vermelho.
Eu sei que à frente, logo após cruzar o portão que leva ao saguão do aeroporto, estaremos nos reencontrando, nascente e ribeirão.


* Ilustrando a crônica, foto do Pico do Ibituruna, o Rio Doce aos seus pés.


A Música Que Toca Sem Parar:
de e na voz de Zé Geraldo, Rio Doce.
Zé Geraldo e eu, histórias tão parecidas e tão distintas, irmanados na vida, cidadãos adotados numa mesma noite.
A música, cuja letra posto aqui, foi feita em homenagem a Governador Valadares, cidade que nos adotou.
E foi finalista do Festival MPB 80, da Rede Globo, o último grande festival de canção popular em terras brasileiras.


Rio Doce

Deposito em suas águas meu grande segredo
Parto pra cruzar fronteiras, engrossar fileiras

Compor meu enredo
Deixo suas margens ricas sob a sombra lírica da Ibituruna
Una, pobre sabiá que perdeu seu canto de frases ligeiras

Por ver se apagar a ilusão ardente
Tão inconseqüente da paixão primeira

Oh! Meu Rio Doce, doce são os seios da morena flor
Cor do seu Ipê
Que vive sob as gameleiras, pés de jenipapo

Junto de você
Leva essa morena no seu leito manso
Faz o seu remanso se vestir de azul

Que eu tô levando a minha mocidade
Pras velhas cidades e praias do sul
Tô levando a minha mocidade pras velhas cidades
E praias do su..ul

Oh! Meu Rio Doce, doce são os seios da morena flor
Cor do seu Ipê
Que vive sob as gameleiras, pés de jenipapo

Junto de você
Leva essa morena no seu leito manso
Faz o seu remanso se vestir de azul
Que eu tô levando a minha mocidade

Pras velhas cidades e praias do sul
Tô levando a minha mocidade pras velhas cidades
E praias do su..ul

Que eu tô levando a minha mocidade
Pras velhas cidades e praias do sul

Friday, May 7, 2010

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Três Poemas de Daniel Faria


Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto o deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti."


§


Procuro o trânsito de um homem que repousa em ti
Como se desvia um homem do seu coração para seguir viagem
Como deixa ficar tudo e acrescenta à sua herança

Procuro conhecer os símbolos, os marcos miliares
Diurnos, como se lêem
Sinais de fumo e o ângulo dos pombos – e todas as coisas
Que nos chegam da distância

Procuro saber como se fecham os pés dentro dos teus
Percursos
Como se põe descalço um homem que necessita
De atravessar-se
E desejo outra vez desdobrada a tua palavra cheia
De estrelas

Para que as recorte, para que as ponha no silêncio
Vivas
Na minha boca e nas minhas mãos
Em chamas


§


Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio de incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim

E bebe



O poeta Português (Baltar, 1971) Daniel Faria morreu após um acidente doméstico no mosteiro de Singeverga(nas cercanas da cidade do Porto), onde era noviço, em 1999.
Tinha apenas 28 anos de idade.
É considerado por muitos o maior poeta português de todos os tempos.


A Música Que Toca Sem Parar:
Zé Miguel Wisnik canta, Tempo Sem Tempo, de sua autoria

vê se encontra um tempo
pra me encontrar sem contratempo
por algum tempo
o tempo dá voltas e curvas
o tempo tem revoltas absurdas
ele é e não é ao mesmo tempo
avenida das flores
e a ferida das dores
e só então
de sopetão
entro e me adentro no tempo e no vento
e abarco e embarco no barco de Ísis e Osíris
sou como a flecha do arco do arco-íris
que despedaça as flores mais coloridas em mil fragmentos
que passa e de graça distribui amores de cristais totais sexuais celestiais
das feridas das queridas despedidas
de quem sentiu todos os momentos

Wednesday, May 5, 2010

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Essas Mães Interioranas


Para minha mãe, Rute
Eu quis escrever um poema homenageando minha mãe.
E não só a minha. A intenção era homenagear todas as mães.
Mas o poema acabou não saindo, como não tem saído nenhum outro verso da fábrica inativa, que tem sido esse baleado coração.
Dona Marocas, dona Ercília, dona Dozinha, dona Filhinha, dona Lola, dona Esmeralda, dona Niquinha e dona Rute, a minha, eram, todas, maravilhosas.
Lembro-me claramente daquelas senhoras em meus primeiros anos em São Raimundo, lugar onde me criei.
Dona Cilinha cantava no coro da igreja.
Dona Marocas - mãe das moças mais bonitas - era sábia, dava conselhos, e não carregava nenhuma tristeza no olhar.
Dona Ercília ajudava os pobres.
Dona Dozinha estava sempre de mau humor.
Seu marido virou garimpeiro e foi viver no Pará.
Dona Lola freqüentava uma igreja de crentes.
Dona Niquinha cuidava do jardim.
Dona Vilma plantava hortaliças.
Dona Esmeralda chorava às escondidas.
Dona Filhinha mentia compulsivamente.
Dona Socorro fazia biscoitos.
Dona Ireni aprendeu a cortar cabelo.
Dona Isaura estudava à noite. De dia vendia laranjas no ponto final do ônibus.
Dona Maria era a melhor amiga de dona Conceição.
Que era esposa de Expedito, que era maquinista de trem.
Dona Laura, de tão elegante, parecia mulher da capital.
Quando ela andava pelas ruas deixava um cheiro de alfazema no ar.
Estava sempre assim, refrescada, pronta para o calor do inferno nas tardes de Governador Valadares.
Dona Ana era calada.
Dona Angélica alfabetizava meninos.
Dona Joana criava cabritos. Seu único filho morreu atropelado por um caminhão scânia vabis.
Dona Rita organizava a novena.
Dona Juraci cresceu senhora de terras, teve gado, era filha de doutor.
Envelheceu pobre e feliz, concubinada com um vaqueiro, ex-empregado de seu pai.
Dona Jandira teve filho prefeito, outro vagabundo e um outro meio artista.
Dona Lourdes era viúva.
Não teve a mesma sorte de dona Adelaide, que se casou pela segunda vez.
Dona Cássia foi abandonada pelo esposo.
Ela, que na juventude quis ser cantora e atriz, teve um filho que fugiu de casa e uma filha meretriz. Mudou-se para São Paulo e dela ninguém nunca mais ouviu.
Dona Selma lavava roupas para fora.
Assim como dona Auxiliadora e dona Idalina.
Dona Norma conversava com o vento, aprisionava passarinhos e fazia tricô na varanda da casa até escurecer.
Dona Teresa dançava catira.
Dona Ivonete sabia bordar.
Suas filhas eram costureiras.
Seu marido, alfaiate.
Dona Rute lidava com um garoto meio louco, que queria sobreviver das palavras que bebia do Rio.
Maravilhosas, aquelas mulheres.
Lindas, marcantes, cada uma do seu jeito. Como esquecê-las?
Com o avançar da idade elas acabaram virando outra coisa.
Se na infância eram nossas heroínas, com o passar dos anos viraram santas.
E, como tal, merecem que todo filho lhes construa um altar enfeitado com as flores do amor eterno e ponteada de oferendas feitas da mais profunda gratidão.
Tenhamos, ainda que momentaneamente, poderes papais.
Santificadas sejam, portanto, as nossas mães.
Santifiquemos.
Santificai.




Foto:
Mães da Praça de Maio, em Buenos Aires, exigindo informação sobre seus filhos seqüestrados pela ditadura militar que governou o país entre 1976 e 1983.

A Música Que Toca Sem Parar:
Gal Costa canta Mãe, da lavra de Caetano Veloso


Palavras, calas, nada fiz
Estou tão infeliz
Falasses, desses, visses não
Imensa solidão
Eu sou um Rei que não tem fim
E brilhas dentro aqui
Guitarras, salas, vento, chão
Que dor no coração
Cidades, mares, povo, rio
Ninguém me tem amor
Cigarra, camas, colos, ninhos
Um pouco de calor
Eu sou um homem tão sozinho
Mas brilhas no que sou
E o meu caminho e o teu caminho
É um nem vais nem vou
Meninos, ondas, becos, mãe
E só porque não estais
És para mim que nada mais
Na boca das manhãs
Sou triste, quase um bicho triste
E brilhas mesmo assim
Eu canto, grito, corro, rio
e nunca chego a ti

Tuesday, May 4, 2010

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Os amigos


Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura


Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis


Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor"


O autor destes versos é José Tolentino Mendonça (Machico, ilha da Madeira, 15 de Dezembro de 1965), um Padre, Teólogo e poeta português.

A Música Que Toca Sem Parar:
Renato Braz (que aparece na foto), cantando de Zeca Baleiro, Bambayuque.

Monday, May 3, 2010

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Só mia quando eu respiro

Não consigo curar uma bronquite que me persegue há aproximadamente oito anos. Ela vem e vai, geralmente nos meses de maio e outubro e retorna, todo janeiro, esquecendo-se de que costumo estar de férias neste período, comprometendo o que deveria ser apenas total descompromisso e ameno desfrutar.
Este ano a bendita parece ter vindo pra ficar. Veio mais robusta, mais chata, mais inconveniente!
Chegou antes, no final de setembro, e me transformou numa companhia, no mínimo, incômoda.
Tenho tossido os brônquios, os bofes, e um pedaço da alma também.
Já troquei de atitude, de medicamento, de médico, mas há mais de dois meses me arrasto por aí. E isto tudo, sem falar do “gato” preso dentro do peito, felino invisível que produz um desagradável “miado”.
Mas ele só mia, quando eu respiro...
No último final de semana, a bronquite fez pacto com uma gripe e juntas me nocautearam. Dois contra um é covardia.
Foi uma gripe daquelas que desmontam o vivente.
Cama, febre, muita tosse e a incontida vontade de voltar à infância, buscando refúgio no colo da mãe.
Poucas coisas combinam tanto quanto gripe e colo de mãe. E canja de galinha. E um animal de estimação por perto, que pode ser um cãozinho vira-lata, daqueles que se deitam ao pé da cama e lambem a mão da gente.
Quando eu era menino, confesso, gostava de ficar dodói.
Ganhava mimos, cafunés e a atenção absoluta de Dona Rute.
- Este menino não está comendo direito.
- Chega a estar com olheiras, coitadinho.
E lá vinha o termômetro, o chá de laranjeira, a canja, os bolinhos de chuva, os abraços mornos e tudo de bom. Tem hora que dá vontade de entrar no túnel tempo e parar ali naquele ponto da infância, bem antes do primeiro cigarro.
Falando em primeiro cigarro, fumei a vida inteira. Parei faz pouquinho.
Comecei menino ainda, com cigarros feitos de papel, partindo depois para o Continental sem filtro, conhecido mata-rato daqueles felizes idos. Quando comecei a ganhar um dinheirinho, aderi ao Hollywood, cuja propaganda mostrava carros velozes, barcos esportivos e muita gente bonita. “Ao sucesso”, dizia o reclame na televisão.
Nestes dias do politicamente correto, devem ter mudado o anúncio para algo do tipo:
Hollywood: à bronquite!
À enfisema!
Ou, ao câncer.
É que, nos últimos tempos, o Ministério da Saúde do Brasil obrigou a indústria do tabaco a publicar em seus maços os perigos e conseqüências que o fumo traz.
E, como se não bastasse anunciar que o Ministério da Saúde Adverte que Fumar é prejudicial à Saúde, resolveram estampar fotografias absolutamente chocantes, de pessoas esquálidas no leito da morte, bocas irrecuperavelmente estragadas, e muito mais.
E o Ministério da Saúde Adverte ainda que fumar causa câncer no pulmão; Fumar causa mau hálito, perda dos dentes e câncer de boca; Fumar causa impotência sexual; Crianças que convivem com fumantes têm mais asma, pneumonia, sinusite e alergia; Nicotina é droga e causa dependência; Quem fuma não tem fôlego para nada; Fumar na gravidez prejudica o bebê; Fumar causa infarto do coração. E muito mais.
Em minha última ida ao Brasil, vi um sujeito, que perde os pulmões mas não perde a piada, devolvendo ao garçon o maço de cigarros, ao ver que nele havia a advertência de que fumar causa impotência sexual.
- Pode trocar por um que dá câncer, que não tem problema.
E o garçon foi lá e trocou.
***
A Música Que Toca Sem Parar:
Oração ao Tempo, de Caetano Veloso, na voz maranhense de Rita Ribeiro.