Monday, February 28, 2011

3 Poemas de Luis Cernuda



















Monólogo de faroleiro


Como preencher-te, solidão,
Senão contigo mesma.
Em menino, entre as pobres guaridas da terra,
Quieto num canto escuro,
Procurava em ti, grinalda acesa,
Minhas auroras futuras e furtivos nocturnos,
E em ti os vislumbrava,
Naturais e exactos, também livres e fiéis,
À minha semelhança,
À tua semelhança, eterna solidão.

Depois perdi-me pela terra injusta
Como quem busca amigos ou ignorados amantes;
Diferente do mundo,
Fui luz serena, desenfreado anelo,
E na chuva sombria ou no sol evidente
Queria uma verdade que te atraiçoasse,
Esquecendo em meu anseio
Como as asas fugitivas criam sua própria nuvem.

E ao velar-se a meus olhos
Com nuvens sobre nuvens de outono transbordado
A luz daqueles dias em ti mesma entrevistos,
Neguei-te por bem pouco;
Por amores vulgares, nem certos nem fingidos,
Por calmas amizades de poltrona e aparência,
Por um nome de reduzida cauda num mundo fantasma,
Nauseabundos como os autorizados,
Úteis somente para o elegante salão sussurrado,
Em bocas de mentira e palavras de gelo.

Por ti encontro-me agora o eco da antiga pessoa
Que fui,
Que eu próprio manchei com aquelas traições juvenis;
Por ti encontro-me agora, constelados achados,
Limpos de outro desejo,
O sol, meu deus, a noite rumorosa,
A chuva, a intimidade de sempre,
O bosque e seu hálito pagão,
O mar, o mar, belo como o seu nome;
E sobre todos eles,
Corpo escuro e esbelto,
Encontro-te a ti, ó solidão tão minha,
E dás-me força e debilidade,
Como à ave cansada os braços da pedra.

Debruçado na varanda olho insaciável as ondas,
Oiço suas escuras maldições,
Contemplo seus brancos afagos;
E erguido de um berço vigilante
Sou na noite um diamante que gira a avisar os homens,
Por quem vivo, mesmo quando os não vejo;
E assim, longe deles,
Esquecidos já seus nomes, amo-os em multidões,
Roucas e violentas como o mar, minha morada,
Puras perante a espera de uma revolução ardente
Ou rendidas e dóceis, como o mar sabe ser
Quando chega a hora do repouso que sua força conquista.

Tu, verdade solitária,
Transparente paixão, minha solidão de sempre,
És um imenso abraço;
O sol, o mar,
A escuridão, a estepe,
O homem e seu desejo,
A multidão irada,
- Que são senão tu mesma?
Por ti, minha solidão, procurei-os um dia;
Em ti, minha solidão, amo-os agora.


***

Não dizia palavras,
Aproximava apenas um corpo interrogante,
Porque ignorava que o desejo é uma pergunta
Cuja resposta não existe,
Uma folha cujo ramo não existe,
Um mundo cujo céu não existe.
Entre os ossos a angústia abre caminho,
Ergue-se pelas veias
Até abrir na pele
Jorros de sonho
Feitos carne interrogando as nuvens.
Um contacto ao passar,
Um fugidio olhar no meio das sombras,
Bastam para que o corpo se abra em dois,
Ávido de receber em si mesmo
Outro corpo que sonhe;
Metade e metade, sonho e sonho, carne e carne,
Iguais em figura, iguais em amor, iguais em
desejo.
Embora seja só uma esperança,
Porque o desejo é uma pergunta cuja resposta
ninguém sabe.


***

Não é o amor quem morre,
somos nós mesmos.


Inocência primeira
Abolida em desejo,
Olvido de si mesmo em outro olvido,
Ramos entrelaçados,
Para quê viver se desapareceis um dia?


Só vive quem olha
Sempre ante si os olhos da aurora,
Só vive quem beija
Esse corpo de anjo pelo amor levantado.


Fantasmas da dor,
Ao longe, os outros,
Os que esse amor perderam,
Como lembrança em sonhos,
Correndo as tumbas
Abraçam outro vazio.


Por aí vão e gemem,
Mortos em pé, vidas sob a pedra,
Agredindo a impotência,
Arranhando a sombra
Com inútil ternura.
Não, quem morre não é o amor.


A Música Que Toca Sem Parar:
de Fagner e Zé Ramalho e na interpretação de ambos, esse invento espanholado como Luís Cernuda... Filhos do Câncer.

Hoje quero sentir-me, quando deitar-me nas pedras
Como um lagarto que dorme, na incoerência das eras
Sentar-me-ei entre feras e sentirei no seu hálito
A solução das esperas e um sofrimento esquálido
Adormecendo as uvas, reconstruindo em favas
Aconteceram as chuvas, redespertaram em lavas
Compareceram em chamas, estrangularam as falas
Carbonizaram miúdos, perpetuaram-se em galas

Filhos de freud, filhos de marx
Filhos de brecht, filhos de bach
Filhos do câncer, filhos de getúlio
Filhos do carbono, filhos de lampião

Se fosse fácil todo mundo era
Se fosse muito todo mundo tinha
Se fosse raso ninguém se afogava
Se fosse perto todo mundo vinha
Se fosse graça todo mundo ria
Se fosse frio ninguém se queimava
Se fosse claro todo mundo via
Se fosse limpo ninguém se sujava
Se fosse farto todos satisfeitos
Se fosse largo tudo acomodava
Se fosse hoje todo mundo ontem
Se fosse tudo nada aqui restava
Se fosse homem junto com mulher
Se cada bicho fosse como vou
Se fosse tudo claro pensamento
Nesse momento nada se criou

Wednesday, February 23, 2011

Nós, os novos jetsons

.



















A internet provocou uma revolução somente comparada à industrial.
A revolução industrial nasceu na esteira do liberalismo econômico, da acumulação de capital e uma série de invenções, como o motor a vapor e foi sendo abraçada aos poucos.
Nasceu na Inglaterra, no século XVIII e foi se alastrando pelo mundo, acarretando em profundas mudanças nos campos social e econômico.
Em anos mais recentes, algumas inovações foram fazendo parte de nosso cotidiano, transformando-nos, todos, em pessoas saídas de um capítulo dos Jetsons, aquelas histórias em quadrinhos que fizeram muito sucesso nos gibís e na Televisão a partir da década de 60. Hoje, aqueles Jetsons tornaram-se quase obsoletos.
Lembro-me de minha cara embasbacada quando me deparei com a primeira transmissão via fax.
Eu não conseguia conceber o fato de uma pessoa manuscrever uma carta num país, e a caligrafia aparecer exatamente como foi desenhada, instantaneamente, do outro lado, a milhares de milhas de distância.
O telefone celular foi outro invento que me encafifou bastante, no início.
Quando adquiri meu primeiro aparelho, senti-me o próprio Batman, ligando para o coronel Cintra do bojo de seu batmóvel. Sim, eu sei: falar ao celular enquanto se dirige, dá multa. Em Nova York dá até perda de pontos na carteira de motorista.
Eu era feliz antes do telefone celular, admito, mas hoje não sei se seria feliz sem ele.
E os telefones celulares estão chegando a um nível de sofisticação que chega a chocar.
Hoje é possível ligar o aquecimento da casa usando, a milhas de distância, o celular.
Com o celular, o usuário pode ver o jogo do time do coração, ler o jornal do dia e checar os emails, esta nova modalidade de correspondência surgida com a internet.
Entre as inovações mais absurdas acopladas ao celular está o GPS, aquele sistema que “sabe o mundo de cor”.
Graças a isto, milhões de pessoas já não se perdem entre o ponto A e o ponto B.
Fosse eu enumerar todas as funções de um telefone celular de agora, precisaria de uma crônica inteira. Pararei por aqui, atendo-me à internet, que agregou ao telefone celular muitas destas novidades tecnológicas
A origem da internet data dos anos 1960, num órgão chamado Fundação Nacional de Ciência. O governo Americano, numa iniciativa conjunta com a inciativa privada, começou a sua comercialização a nível empresarial nos anos 80. Uma década depois, ganharia o mundo e se transformaria numa grande coqueluche mundial, facilitando a vida das pessoas e criando uma nova realidade, muito aquém da virtual inicialmente apregoada.
O virtual e o real transformaram-se na mesma coisa. Já nem se confundem.
Em 2009, um terço da população mundial já fazia uso da internet e foram profundas as mudanças comportamentais e mercadológicas, surgidas desta nova possibilidade.
Algumas indústrias não resistiram ao surgimento dela, é verdade, e desapareceram quase que completamente, extinguindo-se como dinossauros.
Outras, como a do jornalismo, tentam se adaptar a este novo momento, com suas versões online.
Alguns mercados, como o da música e dos filmes, ainda procuram não cair no buraco negro do fracasso. Mas ainda não acharam o fio da meada da salvação, e as gravadoras de música e os distribuidores de filmes em DVD parecem distantes de enxergar luz no final do túnel.
Os hábitos das pessoas também mudaram.
Muita gente se conheceu nas salas de bate-papo surgidas na internet. A internet desmistificou o amor.
Muita gente também se separou, com o aparecimento destas mesmas salas de bate-papo e das chamadas redes sociais.
Nas últimas semanas, no entanto, é que a força da internet pode ser sentida em toda a sua pujança.
Numa parte do Oriente Médio, pedaço do globo onde ditadores oprimem o povo controlando a Imprensa como se fosse um braço das forças armadas, a internet surgiu como uma válvula de escape. E salvação.
Hosni Mubarak foi apeado do poder após 30 anos de opressão ao povo egípcio. Sua queda foi tramada e difundida pela internet como uma morte anunciada.
Desesperado, Mubarak ordenou que fosse interrompido o serviço de internet em todo o país, mas já era tarde demais.
Esta semana, Muammar Gaddafi, o coronel que manda e desmanda na Líbia desde 1969, vive a mesma situação que seu colega recém-deposto.
Desafiante, Gadaffi diz que não abdica do poder e que só sairá após ter gastado sua última bala.
E o mundo inteiro acompanhará este momento pelo mesmo meio, que serve agora de instrumento para a libertação do povo líbio.


A Música Que Toca sem Parar:da trilha sonora de uma destas novelas da Globo, esta canção de Cazuza na voz de Lulo Scroback... Modernidade.

Quando foi quando éramos intactos
Projectos imaturos
Fomos modernos
Nos couberam ternos, gravatas e moldura
Cultura e inferno.

Fossemos eternos quando era primeiro
Primeiro e certeiro amor
Era indolor querer tudo
Íamos na vida cada fome a cada fama.

Nos couberam ternos, gravatas e moldura
Cultura e inferno
Quando foi quando éramos intactos
Projectos imaturos
Fomos modernos.

Fossemos eternos quando era primeiro
Primeiro e certeiro amor
Era indolor querer tudo
Íamos na vida cada fome a cada fama.

E a grama era verde
O nosso vale e os nossos 1000 metros de medo

Intactos, projectos imaturos e modernos
Cultura e inferno

Fossemos eternos
Gravatas e moldura, ternos
Que nos couberam.

Fossemos eternos quando era primeiro
Primeiro e certeiro amor
Era indolor querer tudo
Íamos na vida cada fome a cada fama.

E a grama era verde
O nosso vale e os nossos 1000 metros de medo.

E a grama era verde
Nosso vale e os nossos medos.
E a grama era verde
O nosso vale e os nossos 1000 metros de medo

Thursday, February 17, 2011

O Mundo Quase Perfeito de Sabé

.






















Lá vai São Francisco
Pelo Caminho…

No que vou me lembrando do poema-oração homenageando São Francisco de Assis, não posso deixar de evocar a presença de um novo “velho amigo” de Newark. Trata-se de Sabeh Aur, o bom e malandro Sabé, do estacionamento da Monroe Street.
Antes que me venham acusar de estar fazendo uma comparação incabível, quero deixar claro que Sabé está longe de ser um santo. Longe disto.
Ele é o protótipo do anti-santo.
Talvez fosse anjo, daqueles anjinhos barrocos que ilustram os cartões disponíveis nas papelarias: riso de canto de boca, descarado, e aquele eterno jeito de quem acabou de aprontar alguma.
É aquele sujeito que passou a vida inteira abusando da matéria que Deus lhe deu.
Espiritualidade, com ele, ganha uma outra dimensão, mais materialista e simplista.
Bebendo destilados profusamente desde muito moço e fumando feito uma chaminé, década após década, costuma dizer que tem uma saúde de leão.
Há mais de 25 anos só consome cigarros da marca Saratoga, considerada pelos tabagistas como o mais genuíno dos mata-ratos. Fortíssimo!
Saratoga para Sabé é brisa.
E é na brisa que ele vive a sua vida.
Stress, na sua opinião, é frescura de sujeito rico e metido a besta.
Aos sessenta e nove anos de idade continua gostando da vida que leva, e acha o dinheiro gasto em médico e farmácia “o dinheiro mais mal empregue do mundo”.
- Se o médico me manda parar de beber e fumar eu troco de médico na hora, ele diz.
E ele continua desfiando esse raciocínio estranho, defendendo a tese de que o dinheiro bem gasto é aquele do qual se desfruta e que proporciona prazer.
Ele curte bons restaurantes, moças de todas as idades, carteados, inferninhos, risos de amigos, cortinas de fumaça abafando a noite, anedotas de todas as classes e feitios.
Sabé é um excelente contador de piadas.
Assistir ao final de mais uma noite de boemia e testemunhar o espetáculo do sol surgindo novinho em folha é, na sua opinião, o grande show da vida.
- Esse é que é o verdadeiro Fantástico. Fala lá pro pessoal da TV Globo!
Não sei se Sabé mora com algum filho ou se tem uma namorada. Sei que é viúvo e vejo-o quase todos os dias no estacionamento em que trabalha.
Impressiona-me o esmero com que cuida dos carros, perfilados de acordo com o hábito do freguês.
Se o cliente sai mais cedo, seu automóvel estará infalivelmente perto do portão. Sob sua guarda, qualquer veículo ganha status de preciosidade.
Fora o capricho com que desempenha suas funções e a boa prosa, o que mais me chamou a atenção em sua personalidade foi o senso de compaixão e amor pelos animais.
Veio daí a evocação ao nome de São Francisco.
Não há cachorro empesteado ou gato “maltrapilho”, que não seja acolhido por Sabé em sua Fortaleza na Monroe Street. Sabe lá Deus quantos são, os animais abrigados por ele.
Pretos, pardos, estropiados, mancos, são muitos…
Num cantinho bem cuidado do estacionamento, ele colocou uma caixa de papelão em que uma cadela velha, cega e repulsiva aos olhos da maior parte das pessoas, passa seus dias comendo e dormindo na companhia de um gato de aspecto similar.
No mundo quase perfeito de Sabé, cachorro e gato são irmãos e aprenderam a conviver harmoniosamente debaixo do mesmo teto. São mais que amigos.
Comem, bebem e brincam, dando um exemplo aos homens de que é possível viver em paz.
- Gasto 150 dólares em comida para eles todos os meses, e estou até pensando em colocar a despesa em minha próxima declaração de imposto de renda, diverte-se.
Até pouco tempo, eu achava que tratava-se apenas de um velho boêmio com quem eu me encontrava pela madrugada nos primeiros anos de delírio em minha vida americana. Ledo engano.
Desde que lhe confiei o carro e começamos a conviver mais de perto, muita coisa mudou. Este seu amor pelos bichos, principalmente os deserdados e sem pouso, comoveram-me muitissimo e me fizeram olhar para ele com olhos mais reverentes. Olhos do mais profundo respeito.
Santo, sabe-se, Sabé não é. Sei muito bem.
Mas ver a felicidade com que os bichos o saúdam, toda vez que ele aparece na porta do estacionamento, faz-me crer que ele consegue fazer, à sua maneira, um mundo melhor para se viver.

Nota: Escrevi e publiquei esta crônica-homenagem para Sabeh Aur em setembro de 2002. Republico hoje, fevereiro de 2011.
Na semana passada ele nos deixou.
A Música Que Toca Sem Parar:
Mozambique Marrabenta Star , Nwahulwana.

Monday, February 14, 2011

3 Poemas de Casimiro de Brito













o poema

Poemas, sim, mas de fogo
devorador. Redondos como punhos
diante do perigo. Barcos decididos
na tempestade. Cruéis. Mas de uma
crueldade pura: a do nascimento,
a do sono, a da morte.

Poemas, sim, mas rebeldes.
Inteiros como se de água, e,
como ela, abertos à geometria
de todos os corpos. Inteiros
apesar do barro e da ternura
do seu perfil de astros.

Poemas, sim, mas de sangue.
Que esses poemas brotem
do oculto. Que libertem o seu pus
na praça pública. Altos, vibrantes
como um sismo, um exorcismo
ou a morte de um filho.



In
Jardins de Guerra
Assírio & Alvim, 1974

**

Esta manhã não lavei os olhos -
pensei em ti.

*

Se o teu ouvido se fechou à minha boca
poderei escrever ainda poemas de amor?
A arte de amar não me serve para nada.

*

Um fogo em luz transformado.
Subitamente, a sombra.

*

Há dias em que morro de amor.
Nos outros, de tão desamado,
morro um pouco mais.


In
Arte de Bem Morrer
Roma Editora, 2008

**


O interrogatório de Rosa Luxemburgo


O interrogatório
de Rosa Luxemburgo
durou apenas algumas horas. Ela sabia
tão bem como os seus carcereiros
que palavras ali já não existiam. Caída
na batalha
contra o nervo vital do Estado; banhada
em sangue
e quase sem sentidos,
Rosa,
frágil camarada,
pediu aos caçadores seus assassinos
agulha e linha. E, silenciosamente,
com uma pistola apontada à têmpora,
coseu a bainha da saia que se encontrava
descosida. Pouco depois
o cadáver
foi lançado à água.


A Música Que Toca Sem Parar:
Desengano, música de Lula Cortes, um pernambucano que admiro muitíssimo. Música resgatada do baú de minhas memórias.

Toda vez que olho o desengano
Nas frases do canto fosco dessa juventude
Sinto meu sorriso magro,
Meu rosto suado se encarquilhar
E quando franzo a testa,
E são suo o rosto cor de madrugada
E quando me deprimo e curvo os ombros pra pensar

Penso nos martíos,
Todos os delírios loucos que vivenciamos
E vejo por quanto anos nos aventuramos querendo voar
Voar pra sair de perto,
De todo deserto desses abandonos,
E constatando o desengano se despedaçar.

Desfeito em pedaços,
Sigo no encalço desse sonho
Vejo meu sorriso magro,
Coração amargo se atrapalhar
Quando franzo a testa,
E são suo o rosto cor de madrugada
Quando abro os olhos, olhos claros para o mar.

Thursday, February 10, 2011

Naquele Segundo, Em Algum Lugar

.















Escutei no radio que o próximo ano vai ter um segundo a menos. O que não é grave.

Sou da opinião de que chegar um segundo atrasado a qualquer lugar ou ocasião não é o fim do mundo. Afinal, é "apenas" um segundo.

Mas os cientistas se juntaram e, na passagem do ano, lá foram acertar o relógio oficial do planeta.
Dizem que é porque a Terra foi se atrasando bocadinho atrás de bocadinho no seu giro diário, até completar um segundo no último dia de dezembro.

No final, foi preciso o homem dar um jeitinho.

Não é a primeira vez que isto acontece, o que para mim é igualmente irrelevante.

No outro dia vi o personagem de um filme alemão definhando, sofrendo horrores numa cena em que contemplava o suicídio, refletindo o óbvio, de que a vida inteira de uma pessoa corresponde a um mero segundo na história da humanidade.

Mais do que isto seria presunção, disse eu – estranho maluco - ao homem que penava dentro do aparelho de televisão.
Mas ele não me escutou.

Até aquele momento eu não havia pensado no assunto com semelhante enfoque. Afinal, cada existência é do tamanho que é, como sempre vi.

Sessenta segundos se juntam para compor um minuto e sessenta iguais redundam em uma hora. Vinte e quatro destas compõem um dia.

Sete destes e teremos uma semana.

Quatro semanas perfazem um mês.

E doze meses, juntos, somam um ano.

Cem destes últimos fazem um século.

Simples!

E assim caminha a humanidade, dia após dia. Ano após ano.

E não se fala mais nisto.

Mas, ontem, tarde da noite, ao levantar-me da cama para buscar um copo d’água, passando pela janela ao fim do corredor, olhei pela vidraça a noite limpa e testemunhei uma estrela mudando de lugar.

Linda, a cena! Fazia um tempão que não via uma daquelas.

E aquilo me deu uma pontinha de alegria, afinal, o exercício do viver ainda nos oferece pequenos e grandes milagres de grande beleza. Só é preciso que estejamos atentos.

Um segundo é precioso demais.

Coisas grandiosas acontecem em um segundo, pensei com meus botões.

E coisas banais, também, não sejamos tão poeticamente ingênuos.

E foi assim que eu fiquei ali, debruçado sobre o parapeito da janela, meio insone, meio acordado, meio dormindo, meio despertado, namorando aquela estrela e pondo-me a imaginar que, naquele exato segundo em que ela se deslocara, em algum lugar do mundo uma nova vida nascia.

E que, naquele mesmo segundo, no hemisfério oposto, uma pessoa respirava pela última vez.

Naquele exato momento, em algum lugar do mundo alguém comia um pedaço de pão.

Alguém sentia fome.

Um outro não tinha o que comer.

Naquele exato segundo, em algum quadrante de algum lugar, alguém fazia sexo.

Alguém penava com a solidão.

Alguém se frustrava.

Alguém dizia não.

Alguém pensava em alguém, que talvez pensasse noutro alguém.

Alguém sentia frio.

Alguém se banhava no mar.

Alguém viajava num táxi.

No instante em que aquela estrela fugidia de uma noite de dezembro mudava de lugar, uma mulher era humilhada e uma outra se libertava de sua maldição.

Naquele exato segundo uma criança era negligenciada.

Num outro lugar, uma outra brincava de videogame.

E uma terceira não tinha com o que brincar.

Em algum lugar da Terra alguém usava o banheiro.

Alguém tinha náusea.

Alguém bebia café.

Alguém se drogava com barbitúricos.

Alguém rezava.

Alguém pintava os lábios de batom.

Em alguma paisagem do mundo uma pessoa sentia a chuva molhar seus cabelos sem imaginar que, longe dali, uma outra tostava por prazer a sua pele ao sol.

Naquele exato segundo, em algum lugar, alguém buscava a cura para uma doença, enquanto uma outra pessoa tentava criar um vírus capaz de destruir milhões.

Em algum lugar alguém vendia armas.

Alguém vendia drogas.

Alguém vendia a salvação.

Naquele momento, em algum lugar do mundo, um escritor escrevia uma crônica sem grandes atrativos ou maiores novidades.

E alguém lia.

Naquele segundo.

Em algum lugar do mundo.

Via-se da janela uma estrela mudando de lugar.





A Música Que Toca Sem Parar:

Estrelas, de Oswaldo Montenegro , dividindo os vocais com Zé Alexandre:



Pela marca que nos deixa
A ausência de som que emana das estrelas
Pela falta que nos faz
A nossa própria luz a nos orientar
Doido corpo que se move
É a solidão nos bares que a gente frequenta
Pela mágica do dia
Que independeria da gente pensar
Não me fale do seu medo
Eu conheço inteira sua fantasia
E é como se fosse pouca
E a tua alegria não fosse bastar
Quando eu não estiver por perto
Canta aquela música que a gente ria
É tudo que eu cantaria
E quando eu for embora, você cantará

Sunday, February 6, 2011

Recebi Por Email...

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Despedida do Trema

(Lucas Nascimento)



Estou indo embora. Não há mais lugar para mim. Eu sou o trema.Você pode nunca ter reparado em mim, mas eu estava sempre ali, na Anhangüera, nos aqüiféros, nas lingüiças e seus trocadilhos por mais de quatrocentos e cinqüentas anos.
Mas os tempos mudaram. Inventaram uma tal de reforma ortográfica e eu simplesmente tô fora. Fui expulso pra sempre do dicionário. Seus ingratos! Isso é uma delinqüência de lingüistas grandiloqüentes!...
O resto dos pontos e o alfabeto não me deram o menor apoio... A letra U se disse aliviada porque vou finalmente sair de cima dela. Os dois pontos disseram que sou um preguiçoso que trabalha deitado enquanto eles ficam em pé.
Até o cedilha foi a favor da minha expulsão, aquele C cagão que fica se passando por S e nunca tem coragem de iniciar uma palavra. E também tem aquele obeso do O e o anoréxico do I. Desesperado, tentei chamar o ponto final pra trabalharmos juntos, fazendo um bico de reticências, mas ele se negou, sempre encerrando logo todas as discussões. Será que se deixar um topete moicano posso me passar por aspas?... A verdade é que estou fora de moda. Quem está na moda são os estrangeiros, é o K, o W "Kkk" pra cá, "www" pra lá.
Até o jogo da velha, que ninguém nunca ligou, virou celebridade nesse tal de Twitter, que aliás, deveria se chamar TÜITER. Chega de argüição, mas estejam certos, seus moderninhos: haverá conseqüências! Chega de piadinhas dizendo que estou "tremendo" de medo. Tudo bem, vou-me embora da língua portuguesa. Foi bom enquanto durou. Vou para o alemão, lá eles adoram os tremas. E um dia vocês sentirão saudades. E não vão agüentar!...
Nos vemos nos livros antigos. Saio da língua para entrar na história.

Adeus,
Trema.

Wednesday, February 2, 2011

Três Poemas de Antonio Machado
















Tomai atenção


Tomai atenção:
um coração solitário
não é um coração.



Todo o amor é fantasia

Todo o amor é fantasia
- ele inventa o ano, o dia,
a hora e a melodia;
inventa o amante e, mais,
a amada. Não prova nada,
contra o amor, que a amada
não existisse nunca.


A Música Que Toca sem Parar:
Joan Manuel Serrat musicou este poema de Antonio Machado... e o que era clássico da palavra escrita, passou a ser um clássico da palavra cantada: La Saeta.
Em 1981, Fagner foi à Espanha e gravou a canção em dois idiomas (português e espanhol), fazendo duetao com Serrat.



Disse uma voz popular
Quem me empresta uma escada
Para subir ao altar
Para tirar os cravos
De jesus, o nazareno

Oh! la saeta el cantar
Al cristo de los gitanos
Siempre con sangre en las manos
Siempre por desenclavar

Cantar del pueblo andaluz
Que todas las primaveras
Anda pediendo escaleras
Para subir a la cruz

Cantar de la tierra mia
Que hecha flores
As jesus de la agonia
Que es la fie mis mayores

Oh! no eres tu mi cantar
No puedo cantar ni quiero
A esse jesus del madero
Sino al que anduvo en la mar

.