Saturday, December 21, 2013

Alencar, o rei da mentira


É claro que já menti nessa vida, mas nunca disse um ‘eu te amo’ que não tivesse sido verdadeiro.
Cazuza dizia que mentiras sinceras lhe interessavam.
Escorados nesse mote, muitos de meu convívio demoraram a acordar para uma realidade melhor.
Outros continuaram dormindo.
À medida que fui amadurecendo, passei a evitar os pequenos deslizes.
Mentir por mentir, jamais.
Mas tem gente que mente por costume e o faz de tal maneira, que as mentiras se transformam em doentias verdades. São os casos patológicos.
Estes não aprenderam ainda que a verdade é tinta permanente.
É cinzel esculpindo na pedra.
Já a mentira é um paliativo.
É o rabisco da vara na areia.
E não apenas o antônimo da verdade.
A verdade pode machucar, é ferro em brasa, que marca para sempre o couro do gado.
Mas a mentira vai mais fundo, tem vocação de punhal.
A verdade pode provocar dor, mas com o tempo traz alívio e luz.
A mentira, não.
Com a mentira vem o rancor, a quebra da confiança e o desprezo.
Que fique claro: mentir e omitir são duas coisas completamente diferentes.
A omissão pode ser uma atitude com resquícios de covardia.
Mas a mentira é 100% covarde.
Conheci muito mentiroso nessa vida. Mas nenhum com a eloqüência e a cara-de-pau de um caminhoneiro de São Raimundo, o Alencar.
Mentia para impressionar, ou para tirar vantagem de situações completamente irrelevantes. A maior parte do que falava era ficção barata.
Segundo seus relatos, havia percorrido o trecho Valadares - Belo Horizonte, 360 quilômetros de estrada esburacada e perigosa em fantásticas três horas.
E com o caminhão cheio de bois.
Num outro dia, aparecia no bar, pagava cachaça para todo mundo e dizia que estava comemorando os treze pontos feitos na loteria esportiva. O tempo passava e ele continuava vivendo de aluguel e comprando fiado no armazém de Zé Barbudo.
Segundo Alencar, o pára-choque amassado de seu caminhão era a prova material de que havia atropelado uma onça enorme, quase chegando a São Paulo.
   - Não deu para aproveitar nem o couro, fartava-se.

Se viajava ao Rio, dizia ter almoçado na casa de Roberto Carlos e era amigo de Zico, do Flamengo. Era o rubro-negro, o rapaz. E gostava de música romântica.
Com o passar do tempo, ficou estigmatizado e ninguém mais acreditava nele.
Como começaram a ignorá-lo, resolveu se assumir mentiroso e mandou pintar, com as cores do Mengão, nos dois pára-lamas traseiros de seu caminhão Mercedes 1113, os seguintes dizeres:
Alencar, o rei da mentira!
E foi acolhido de volta.

Em todo lugar onde estivesse, a roda se fechava em torno dele e as estórias fantásticas eram garantia de entretenimento. Afinal, Alencar tinha um tio astronauta que fora à lua duas vezes, um primo que namorara a miss Brasil (uma certa Marta Rocha), e um conhecido que estudara com o ex-presidente Getúlio Vargas.
Não raro, mentia atendendo a pedidos.

Numa destas ocasiões, cruzou com a viatura da polícia rodoviária na entrada de um posto de gasolina. Os dois carros ficaram lado a lado e um patrulheiro pediu:
- Ô Alencar, conta uma mentirinha aí.
Alencar pediu desculpas, mas disse que não podia.
- Estou indo pedir socorro em Valadares. Teve um acidente a 30 quilômetros daqui e tem gente ferida espalhada pelos dois lados da estrada.
Os patrulheiros nem se despediram. Ligaram as sirenes e seguiram, em alta velocidade, na direção do horrível acidente.
Duas horas depois retornaram ao posto de gasolina e lá estava o Alencar, comendo uma picanha e bebendo uma Brahma bem gelada com outros dois caminhoneiros.
Um dos patrulheiros foi até a mesa e, de dedo em riste, mandou o seu recado nervoso:
- Escuta aqui, Alencar! Dessa vez você passou dos limites! Que brincadeira de mau gosto foi essa de dizer que tem um acidente cheio de mortos e feridos perto daqui?!
Alencar deu uma garfada na parte gorda da picanha e respondeu, impávido:
Uai, mas você não pediu para eu contra uma mentira?
E todos caíram na gargalhada. Inclusive os guardas rodoviários.

Ninguém imaginou, no entanto, que Alencar ainda pagaria caro pelo seu estilo de vida.
Numa madrugada, acordou a mulher e disse que estava enfartando.
A patroa ajeitou melhor o travesseiro, resmungou qualquer coisa e continuou a dormir.
Dois dias depois ele foi enterrado, humildemente, sem as pompas normalmente reservadas a um rei.

Friday, December 6, 2013

Trinta coisas que esqueci sobre mim mesmo


(Para Suzana Guimarães, precursora da lista das 30 coisas)


A poeta baiana Tânia Contreiras lançou-me o desafio para que entrasse em uma espécia de corrente inicada nas redes sociais e enumerasse 30 coisas a meu respeito.
Eu jamais diria não a ela, que é uma pessoa muito presente em minha vida, amiga ímpar, a quem eu não diria não mesmo se estivesse me pedindo um rim.
Portanto, aí vão as 30 coisas das quais às vezes eu mesmo me esqueço:

1) Tenho que beber pelo menos três uísques antes de entrar em um avião.
2) Quando menino fui atropelado por um jipe e salvo de um afogamento por um ladrão. Que eu me lembre, em três outras oportunidades a morte passou de raspão.
3) Adoro pão com linguiça e arroz com rapa.
4) Gosto de cozinhar. Muitas vezes, cozinho para não pirar.
5) Adoro futebol. Cruzeirense de ir ao estádio. De "ver" o jogo pelo rádio.
6) Fui "vencedor" de um único concurso literário em minha vida.
    Foi uma 'tarefa' no grupo Escolar Maria Ortiz, em Barra do Cuieté-MG; a redação "Meu Brinquedo favorito" venceu "o ponto" para a equipe Azul, do terceiro ano primário.
7) Quando cheguei aos Estados Unidos trabalhei de pasteleiro (fazia pastéis de Belém em uma padaria portuguesa).
   Fui também lava-pratos, ajudante de cozinheiro, garçom, funcionário de empresa-de transportes e servente de pedreiro. Aliás, o pior servente de pedreiro que a construção civil de New Jersey já conheceu.
08) Comecei a escrever coisas visitando um pistoleiro de aluguel condenado a 380 anos de prisão, em um presidio de Juiz de Fora. Eu tinha 18 anos.
09) Meu pai não queria que eu vivesse de escrevinhações. Fez de tudo para que eu fosse militar, como ele. Na contra-mão mão de sua vontade, minha mãe presenteou-me com uma Olivetti portátil, que ela pagou em 12 “suadas” prestações na falecida Mesbla.
10) Sofro quando tenho que usar terno e gravata.
11) Não gostaria de ficar careca.
12) Fui pai pela primeira vez aos 16 anos de idade.
13) Tenho três filhas.
14) Casei-me com uma moça bonita.
    Casei ao meio dia, em Curitiba, o sol estava a pino e tive cãimbras durante o sermão do padre.
15) Toda vez que alguém me chama de “jovem”, acho que esta pessoa está tentando me vender um par de quixutes.
16) Adoro Portugal. Pudesse, iria várias vezes por ano a Portugal.
     Tenho vários ossos lusitanos em meu corpo.
17) Eu me sinto mais mineiro do que qualquer outra coisa.
     Muito mais do que brasileiro ou americano, eu sou mi-nei-ro. De Minas Gerais.
18) Se tivesse que fazer uma tatuagem, tatuaria o triangulinho vermelho da bandeira de Minas Gerais no bíceps.
19) Cheguei aos Estados Unidos aos 21. Tenho 51. Vivi toda a vida adulta no estado de Nova Jersey.
20) Quando comecei a escrever queria ser uma espécie de Augusto dos Anjos menos pessimista. Depois queria ser Drummond e depois, Roberto Drummond.
21) O livro Hilda Furacão, de Roberto Drummond, é dedicado a mim. Também a mim, que fique claro. O que me honra da cabeça aos pés.
22) Tive uma produtora de shows de MPB com dois grandes amigos nos EUA. Fizemos coisas que julgo importantes por aqui.
23) Sofro quando entro em um lugar e está tocando axé, breganejo, pagode ou "fanque". Este é um dos motivos porque vou pouco aos restaurantes brasileiros de Newark.
24) Parei de fumar no dia 1º de dezembro de 2011, após escalar - de carro - um poste da South Street. Carro e cara se arrebentaram.
   Parei como forma de agradecimento pela oportunidade de continuar entre os vivos. Eu era fumante desde 1980.
25) Eu não gosto de ir a festas de crianças, nem de ir à Disney com minhas filhas.
   Não fui. Não vou. Não irei.
   É por estas e outras que ainda morarei no inferno.
26) Não gosto de praia. Nem de carnaval.
27) Acho as obras de Niemeyer uma bobagem. A forma não segue a função.
28) Tenho preguiça mental de falar inglês. Minha tecla SAP está quase sempre desligada.
29) Entre 2011 e 2013 tive muita vontade de voltar pra Minas Gerais e ir morar numa casa de montanha e ser feliz para sempre.
    Esta vontade está passando. Já passou.
30) Tenho os melhores amigos que o afeto pode comprar.