Wednesday, September 25, 2013

Bracara Augusta



(Como se lhe escrevesse uma carta)



Depois de tudo, amigo Jorge Pimenta, ficou este meu olhar "esbragaçado", bracarense e nada (nunca mais) será o mesmo.
Eu sei.
Não será mais o mesmo e nem esta nossa amizade, mesmíssima, que já existia muito antes do primeiro contato, do apertar de mãos.
Certas pessoas a gente não conhece.
A gente as re-conhece e elas ficam para sempre.
Como para sempre fica, também, aquela sensação de deja-vu logo à primeira mirada, 'un ange passe', e todas as tardes que se evaporam como éter desde então.
Porque as tardes foram feitas para os amigos compartilharem uma cerveja encostados ao balcão de um bar, dividindo uma fatia de presunto e pão saloio, como se fossem vinho e hóstia, de tão sagrada que é a amizade.
Mas o espaço é navalha.
Espaço e tempo.
E fica agora este oceano entre nós, a separar abraços, proibindo tremoços, secando chopes, enfumaçando a paisagem.
Eles emudecem até os nossos gritos de gol, guardando a camisa encarnada - aquela bandeira balançando ao vento lusitano - que trepidava no cume mais alto de nossas devoções.
O tempo é cruel, sim senhor.
Este tempo que nos irmanou, vida adentro, e que agora parece ter ido morar fora do relógio.
Nada permanece igual depois de mexido, disseste-o tão bem.
E nada - nunca mais - será o mesmo, porque é impossível arrancar este cheiro da Bracara Augusta que veio grudado em minhas retinas, epiderme e roupas.
O cheiro desta cidade que veio dentro de minhas malas e até da bagagem de mão.
Transformou-se o meu olhar turista.
Libertou-se o caminhar cigano.
Hoje reside em mim uma espécie de calma, que emancipa inevitáveis cansaços de homem ainda trabalhador e me remete ao Minho.
O cheiro desta cidade, que agora se incorpora ao meu cheiro, hálito e jeito de ver a vida.
Este cheiro de mofo e tempo, que vive dentro do mosteiro secular.
Este cheiro de cascas de tangerina.
Porque existe, agora, um cheiro bracarense no jeito com que leio a vida.
No jeito com que sinto as coisas.
Uma espécie de aroma de sardinhas se contortorcendo nas brasas ou o vento perfumado que foge da plantação de eucaliptos, na encosta do morro, e vem morar dentro dos nossos pulmões.
E é aqui que tudo fica claro como a memória desta luz perene, solene, luz no vitral atravessando o átrio e iluminando a estufa onde dorme, eterno, São Clemente.
Tudo fica definitivo, como aquela casa abandonada na curva à caminho de seu bairro, os azulejos portugueses sendo domados pela vegetação daninha, lenta e invasora.
Como a água seca da Fonte do Ídolo, as ruínas romanas que moram debaixo de seus pés.
E os seus pés.
E tudo ficou para sempre como as fachadas barrocas das igrejas, o orgulho de ser de Bracara Augusta, o olhar manso de suas gentes e o burburinho dos cafés.
Às vezes, tudo é para sempre, poeta de Mire de Tibães.
Sempre.
Ainda que só de vez em quando.
Foto da "Casa da Curva", de Jorge Pimenta, para quem escrevi e dedico esta crônica.

Sunday, September 22, 2013

O dublê



Dublê é aquele indivíduo que faz as cenas perigosas dos filmes de cinema e televisão.
Acho que toda pessoa deveria ter o direito a um, mocinhos e mocinhas que somos, dos filmes de nossas vidas.
As mulheres, por exemplo, poderiam ter sua dublê naqueles dias do mês.
A dublê sofreria as agruras da TPM e passaria todo o ciclo menstrual no pequeno inferno astral que acomete todas as Penélopes do mundo.
Na gravidez, a dublê seria fundamental.
Enquanto a dublê estivesse engordando, ganhando estrias e tendo desejo de comer doce de jaca às duas da manhã, a mocinha estaria se bronzeando em Bali.
Quando um político tivesse que ir a uma coletiva para explicar um escândalo como o do mensalão, o dublê iria em seu lugar.
O dublê responderia às perguntas irritantes dos jornalistas.
O dublê se constrangeria.
O dublê receberia as vaias na saída.
Enquanto isto, aquele que ele estiver representando poderá estar numa igreja rezando, pedindo perdão a Deus. Ou fazendo mais uma negociata, conforme for a sua vontade.
Ao dublê do goleiro que leva um frango, estariam reservados os apupos.
Ao similar do amante que falha na hora do amor, a frustração, as mãos à cabeça e a obrigatoriedade do bordão "isto nunca me aconteceu antes"...
Ele buscaria a sogra no aeroporto às cinco da manhã. E conviveria com ela pelos próximos cinco meses.
O dublê levaria o pé-no-traseiro, da namorada.
Ele encontraria, na cama, a esposa infiel e seu amante.
Dublê de sujeito casado com mulher feia, ou vice-versa, receberia em dobro.
Vida de dublê não é fácil.
Mas o meu não teria grandes assombrações. Não teria que se atirar de penhascos, saltar de paraquedas ou participar do capotamento de um veículo durante intensa fuga policial.
Mas seria a ele seguir as recomendações do meu médico.
Ele comeria os vegetais e as frutas diariamente.
Ele caminharia os 5 quilômetros receitados todas as manhãs.
Ele faria a dieta.
Ele ficaria abstêmio.
Enquanto isto, eu estaria em meu bar favorito, comendo picanha, lingüiça, bebendo chope gelado e fumando uns cigarrinhos.
Meu dublê amarraria meus sapatos, todas as manhãs.
Ele faria o tratamento de canal, no dentista.
Ele iria ao proctologista todos os anos, fazer ‘aquele exame’ de rotina.
Afinal, já passei dos quarenta.
Ele me representaria em almoços realizados em restaurantes vegetarianos e beberia cerveja sem álcool.
Ele assistiria todas as derrotas do meu time.
No show de Zezé di Camargo e Luciano em Jaguariúna, imposição de um compromisso profissional meu, ele injetaria breganejo nas veias.
Ele votaria em Lula.
Ele faria aula de dança de salão e saxofone, duas frustrações, dois desejos meus, não realizados por mera preguiça.
A coisa só se complicaria um pouco mais para o lado dele, quando chegasse a minha hora de partir dessa pra uma pior.
Enquanto Ele estivesse prestando contas a Deus pelos pecados que cometi, Eu estaria em casa, largadão no sofá, lendo um livro, ou simplesmente exercitando os dedos no controle remoto da televisão.