(Como se lhe escrevesse uma carta)
Depois de tudo, amigo Jorge Pimenta, ficou este meu olhar "esbragaçado", bracarense e nada (nunca mais) será o mesmo.
Eu sei.
Não será mais o mesmo e nem esta nossa amizade, mesmíssima, que já existia muito antes do primeiro contato, do apertar de mãos.
Certas pessoas a gente não conhece.
A gente as re-conhece e elas ficam para sempre.
Como para sempre fica, também, aquela sensação de deja-vu logo à primeira mirada, 'un ange passe', e todas as tardes que se evaporam como éter desde então.
Porque as tardes foram feitas para os amigos compartilharem uma cerveja encostados ao balcão de um bar, dividindo uma fatia de presunto e pão saloio, como se fossem vinho e hóstia, de tão sagrada que é a amizade.
Mas o espaço é navalha.
Espaço e tempo.
E fica agora este oceano entre nós, a separar abraços, proibindo tremoços, secando chopes, enfumaçando a paisagem.
Eles emudecem até os nossos gritos de gol, guardando a camisa encarnada - aquela bandeira balançando ao vento lusitano - que trepidava no cume mais alto de nossas devoções.
O tempo é cruel, sim senhor.
Este tempo que nos irmanou, vida adentro, e que agora parece ter ido morar fora do relógio.
Nada permanece igual depois de mexido, disseste-o tão bem.
E nada - nunca mais - será o mesmo, porque é impossível arrancar este cheiro da Bracara Augusta que veio grudado em minhas retinas, epiderme e roupas.
O cheiro desta cidade que veio dentro de minhas malas e até da bagagem de mão.
Transformou-se o meu olhar turista.
Libertou-se o caminhar cigano.
Hoje reside em mim uma espécie de calma, que emancipa inevitáveis cansaços de homem ainda trabalhador e me remete ao Minho.
O cheiro desta cidade, que agora se incorpora ao meu cheiro, hálito e jeito de ver a vida.
Este cheiro de mofo e tempo, que vive dentro do mosteiro secular.
Este cheiro de cascas de tangerina.
Porque existe, agora, um cheiro bracarense no jeito com que leio a vida.
No jeito com que sinto as coisas.
Uma espécie de aroma de sardinhas se contortorcendo nas brasas ou o vento perfumado que foge da plantação de eucaliptos, na encosta do morro, e vem morar dentro dos nossos pulmões.
E é aqui que tudo fica claro como a memória desta luz perene, solene, luz no vitral atravessando o átrio e iluminando a estufa onde dorme, eterno, São Clemente.
Tudo fica definitivo, como aquela casa abandonada na curva à caminho de seu bairro, os azulejos portugueses sendo domados pela vegetação daninha, lenta e invasora.
Como a água seca da Fonte do Ídolo, as ruínas romanas que moram debaixo de seus pés.
E os seus pés.
E tudo ficou para sempre como as fachadas barrocas das igrejas, o orgulho de ser de Bracara Augusta, o olhar manso de suas gentes e o burburinho dos cafés.
Às vezes, tudo é para sempre, poeta de Mire de Tibães.
Sempre.
Ainda que só de vez em quando.
Ainda que só de vez em quando.
Foto da "Casa da Curva", de Jorge Pimenta, para quem escrevi e dedico esta crônica.