Monday, January 21, 2019

A voz que permaneceu em mim


Ele cruzava a cidade com um sistema de som improvisado - aquela caixa de marimbondo enorme  - sobre o Vemaguet da família, e saía pela periferia e ruas do centro anunciando a perda de alguém. 

Sua voz anasalada, quase cômica, dava a saber:
   "Noootaaaaa de falecimeeentôôôô.
   Faleceu na noite de ontem, 11 de janeiro, de parada cardíaca, o Sr. José da Silva Pereira.
   Faleceu durante o sono, deixando a viúva Conceição Alves da Silva e quatro filhos. O enterro será amanhã, às 9 horas da manhã, no cemitério Santa Rita.
    A família enlutada agradece".

Mudavam os mortos e as causa mortis, as viúvas e os órfãos, só a voz de João Dornelas permanecia.
Assim como o seu bordão.

Quando não anunciava defuntos pelas ruas de Governador Valadares era um esforçado vereador.
A voz de João Dornelas nunca mais saiu de mim.
Rapazote, eu morria de medo de sabê-lo recitando o meu nome pelas ruas da cidade.
Que tardasse, pedia eu.
Que eu vivesse mais do que Jesus Cristo e ultrapassasse os trinta e três.
Ou, que chegasse aos quarenta, como o meu pai naqueles dias.
Afinal, eu ainda queria ter carteira de trabalho assinada, conhecer Porto Seguro e comprar um automóvel.
Queria também ir a Porto Alegre para tremer de frio escutando uma milonga e possuir uma casa na Ilha das Araújos.
Adoraria ver o Cruzeiro se sagrar campeão brasileiro e da Libertadores.
E viver um grande amor, além de aprender a dançar boleros.
O tempo passou e eu ainda não fui a Porto Alegre ou Porto Seguro.
Não aprendi a dançar, porque nasci com dois pés esquerdos, mas há poucos dias ensaiei uns passinhos sem música e remocei vinte anos.
A casa da Ilha dos Araújos talvez nãofrutifique, pelo fato do meu coração jamais ter saído de São Raimundo.
O tempo passou muito depressa, depressa demais, contraí dívidas materiais e afetivas que nem sei se darei conta de pagar, mas descobri que João Dornelas virou nome de rua e escola do ensino médio, o que me deixou pensativo:
    Quem terá anunciado a morte de João Dornelas?"
    Teria ele deixado uma gravação anunciando o próprio fim?
    Sua morte foi anunciada por um filho, um neto, ou outro parente que tenha herdado o negócio da família?
    E, agora que ele se foi, quem dá voz aos mortos em Governador Valadares?
    Quem?
Ele e seu timbre único fazem parte de um imaginário que insiste em permanecer em mim.
Um imaginário que não envelheceu, apesar de pressentir que estou bem mais próximo de onde está João Dornelas, hoje, do que estava quando escutava seus anúncios macabros pelas ruas da cidade.
Ele está guardado em meus tímpanos - e sob a minha pele -, como os radialistas Luiz Alberto Teixeira, o Beto Tranca-Rua; e Maninho, um tetraplégico que tinha voz de anjo.
Se os anjos falassem, teriam a voz de Maninho, que fazia a cidade sonhar com dias felizes na frequência da Rádio Por um Mundo Melhor. 
As moças suspiravam com aquela voz. Os moços a invejavam.
Um dia vi Maninho chupando um picolé nas imediações da Praça Serra Lima.
Estava em sua cadeira de rodas e transpirava na tarde modorrenta de uma cidade em chamas.
Era um cadeirante olhando para o cruzamento da avenida Minas Gerais com rua Afonso Pena e eu entendi ali, naquele momento, que o homem da voz de anjo era tão humano quanto eu.
Ele sentia calor e gostava de picolés, como eu.

Da Governador Valadares da segunda metade dos anos 1980 eu carrego, até hoje, a eletricidade das manhãs de domingo na pracinha. 

Ficariam outras vozes.
Era ali que a minha geração se encontrava para trocar abraços, recitar poemas e beber cerveja.
Ali eu escutava Adão O'hara e Rita de Cáscia. Escutava Nídio Porto e outros crooners dos conjuntos locais gorjeando repertórios que ainda hoje tocam na minha saudade.
Ficou também a voz do vento balançando os coqueiros e o barulho dos trovões sobre o telhado da casa de meus pais.
Ficou o murmúrio do Rio Doce avisando que estava indo para o Oceano Atlântico.
Ficou o 'vapo-vapo' dos vagões da CVRD contrabandeando nossas riquezas minerais.
Mas ficou, principalmente, o fantasma da voz de João Dornelas insinuando meu nome, anunciando a proximidade do fim.

Que tarde, bato três vezes na madeira.
Que tarde muito.

E que a vida espiche, sem pressa, dentro de mim.

Tuesday, January 8, 2019

Eu respirei em Istambul


Eu não estava muito interessado em estudar. 
Naqueles dias do início dos anos setenta, a escola era, para mim, uma oportunidade de socialização e lazer. 
Jogava bola com os meninos, apaixonava-me platonicamente pelas professoras e o dever de casa ficava para depois.
O sistema de ensino do Brasil daquele período consistia em quatro anos do curso primário, admissão, quatro anos de ginasial e três de colegial - ou científico -, que é como alguns chamavam o segundo grau. Depois viriam o vestibular e a universidade.
Após termos cumprido o curso primário, passávamos por uma espécie de purgatório, batizado de admissão.
Terá existido nesta vida algo mais inútil que a admissão? 
A admissão era o dente do siso do ensino brasileiro. Não servia para nada e ainda doía de vez em quando.
Felizmente, o ministério da Educação acabou com a admissão dois anos antes de eu começar a cursar o ginasial. Ainda bem. Mas dei com a cara na parede tão logo me matricularam no Ginásio Duque de Caxias. Não gostei do que vi, nem do que ouvi.
Português, matemática, educação moral e cívica, educação física, educação artística, geografia e história: o curso ginasial se resumia a essas matérias. 
Fui um aluno medíocre.
Naquilo que me dizia respeito, a matemática era complicada e a língua portuguesa ora seduzia, ora amaldiçoava.
A professora de história era uma pessoa triste, que semeava nuvens escuras. 
Ministrava aulas sinistras, sombrias, com o cheiro mofado das bibliotecas. E muito da dor que rescendia de um casamento infeliz.
Não demorou muito para eu entender que educação moral e cívica era uma imoralidade. 
Vivíamos uma ditadura militar e nos obrigavam, crianças quase inocentes, a entrar em fila para cantar o hino nacional.
Éramos patéticos meninos (e meninas) calçando congas fedorentos, cabelos cortados rente ao couro, enfiados em uniforme azul-marinho.
Quando chegava o dia 7 de setembro, desfilávamos de calças curtas para homens grisalhos com seus ombros salpicados de estrelas.
Rufavam bumbos, surdos, taróis e pratos. 
Batíamos o pé.
Seguíamos em passo de ganso, rumo a lugar nenhum.
Bandas marciais ventavam marchinhas ufanistas e outros absurdos pseudopatriotas.
Não sabíamos da barra pesada daqueles tempos. 
Nada sabíamos. 
Afinal, aquele era um país que 'ia para a frente'.
Tempos milagrosos, em que Deus, cidadão brasileiro, operava milagres verde-amarelos. 
Tempos em que o presidente da república mandava até na escalação da seleção de futebol.
Tempos de Dario Peito de Aço e do AI-5.
Tempos de Sérgio Paranhos Fleury e de vidas desperdiçadas nos porões da ditadura.
De bom nos meus quatro anos de ginásio, ficaram as aulas de geografia e a atenção de Cely Domingues de Carvalho, a segunda numa linhagem de professoras que ainda hoje educam e ajudam a preparar as crianças de Governador Valadares para o futuro.
Foi com a tia Cely que aprendi onde ficam Istambul, Zagreb e Nairóbi, três esquisitices minhas. 
Em suas aulas, o imaginário florescia à medida que eu ia tomando gosto pela matéria.
Ela nos emprestava asas, e eu podia amanhecer tomando um chá em Londres, ou terminar o dia sob as luzes deslumbrantes de Paris.
Com ela, fui para lá de de Marrakesh.
Aprendi que a Holanda é repleta de diques e que gôndolas românticas cruzam os canais de Veneza.
Graças à tia Cely eu poderia comer, em Zurique, um pedaço de queijo suíço todo furadinho como uma fotografia da lua. 
E tive a certeza de que a seleção de João Saldanha jogaria a final da Copa do mundo no Estádio Azteca, na cidade que tinha o mesmo nome do país do qual era a capital.
Aprendi ainda onde ficava a Transilvânia - terra do conde Drácula - e que na friorenta Escócia ficava o lago Ness, que abrigava um monstro jamais capturado.
Esta semana, tanto tempo depois, fiquei sabendo que a tia Cely viajou para um lugar de onde jamais havia falado em suas aulas. 

O Céu - que é para onde vão aqueles que semeiam o bem - ainda não foi incorporado ao mapa-múndi.