Saturday, December 21, 2013

Alencar, o rei da mentira


É claro que já menti nessa vida, mas nunca disse um ‘eu te amo’ que não tivesse sido verdadeiro.
Cazuza dizia que mentiras sinceras lhe interessavam.
Escorados nesse mote, muitos de meu convívio demoraram a acordar para uma realidade melhor.
Outros continuaram dormindo.
À medida que fui amadurecendo, passei a evitar os pequenos deslizes.
Mentir por mentir, jamais.
Mas tem gente que mente por costume e o faz de tal maneira, que as mentiras se transformam em doentias verdades. São os casos patológicos.
Estes não aprenderam ainda que a verdade é tinta permanente.
É cinzel esculpindo na pedra.
Já a mentira é um paliativo.
É o rabisco da vara na areia.
E não apenas o antônimo da verdade.
A verdade pode machucar, é ferro em brasa, que marca para sempre o couro do gado.
Mas a mentira vai mais fundo, tem vocação de punhal.
A verdade pode provocar dor, mas com o tempo traz alívio e luz.
A mentira, não.
Com a mentira vem o rancor, a quebra da confiança e o desprezo.
Que fique claro: mentir e omitir são duas coisas completamente diferentes.
A omissão pode ser uma atitude com resquícios de covardia.
Mas a mentira é 100% covarde.
Conheci muito mentiroso nessa vida. Mas nenhum com a eloqüência e a cara-de-pau de um caminhoneiro de São Raimundo, o Alencar.
Mentia para impressionar, ou para tirar vantagem de situações completamente irrelevantes. A maior parte do que falava era ficção barata.
Segundo seus relatos, havia percorrido o trecho Valadares - Belo Horizonte, 360 quilômetros de estrada esburacada e perigosa em fantásticas três horas.
E com o caminhão cheio de bois.
Num outro dia, aparecia no bar, pagava cachaça para todo mundo e dizia que estava comemorando os treze pontos feitos na loteria esportiva. O tempo passava e ele continuava vivendo de aluguel e comprando fiado no armazém de Zé Barbudo.
Segundo Alencar, o pára-choque amassado de seu caminhão era a prova material de que havia atropelado uma onça enorme, quase chegando a São Paulo.
   - Não deu para aproveitar nem o couro, fartava-se.

Se viajava ao Rio, dizia ter almoçado na casa de Roberto Carlos e era amigo de Zico, do Flamengo. Era o rubro-negro, o rapaz. E gostava de música romântica.
Com o passar do tempo, ficou estigmatizado e ninguém mais acreditava nele.
Como começaram a ignorá-lo, resolveu se assumir mentiroso e mandou pintar, com as cores do Mengão, nos dois pára-lamas traseiros de seu caminhão Mercedes 1113, os seguintes dizeres:
Alencar, o rei da mentira!
E foi acolhido de volta.

Em todo lugar onde estivesse, a roda se fechava em torno dele e as estórias fantásticas eram garantia de entretenimento. Afinal, Alencar tinha um tio astronauta que fora à lua duas vezes, um primo que namorara a miss Brasil (uma certa Marta Rocha), e um conhecido que estudara com o ex-presidente Getúlio Vargas.
Não raro, mentia atendendo a pedidos.

Numa destas ocasiões, cruzou com a viatura da polícia rodoviária na entrada de um posto de gasolina. Os dois carros ficaram lado a lado e um patrulheiro pediu:
- Ô Alencar, conta uma mentirinha aí.
Alencar pediu desculpas, mas disse que não podia.
- Estou indo pedir socorro em Valadares. Teve um acidente a 30 quilômetros daqui e tem gente ferida espalhada pelos dois lados da estrada.
Os patrulheiros nem se despediram. Ligaram as sirenes e seguiram, em alta velocidade, na direção do horrível acidente.
Duas horas depois retornaram ao posto de gasolina e lá estava o Alencar, comendo uma picanha e bebendo uma Brahma bem gelada com outros dois caminhoneiros.
Um dos patrulheiros foi até a mesa e, de dedo em riste, mandou o seu recado nervoso:
- Escuta aqui, Alencar! Dessa vez você passou dos limites! Que brincadeira de mau gosto foi essa de dizer que tem um acidente cheio de mortos e feridos perto daqui?!
Alencar deu uma garfada na parte gorda da picanha e respondeu, impávido:
Uai, mas você não pediu para eu contra uma mentira?
E todos caíram na gargalhada. Inclusive os guardas rodoviários.

Ninguém imaginou, no entanto, que Alencar ainda pagaria caro pelo seu estilo de vida.
Numa madrugada, acordou a mulher e disse que estava enfartando.
A patroa ajeitou melhor o travesseiro, resmungou qualquer coisa e continuou a dormir.
Dois dias depois ele foi enterrado, humildemente, sem as pompas normalmente reservadas a um rei.

Friday, December 6, 2013

Trinta coisas que esqueci sobre mim mesmo


(Para Suzana Guimarães, precursora da lista das 30 coisas)


A poeta baiana Tânia Contreiras lançou-me o desafio para que entrasse em uma espécia de corrente inicada nas redes sociais e enumerasse 30 coisas a meu respeito.
Eu jamais diria não a ela, que é uma pessoa muito presente em minha vida, amiga ímpar, a quem eu não diria não mesmo se estivesse me pedindo um rim.
Portanto, aí vão as 30 coisas das quais às vezes eu mesmo me esqueço:

1) Tenho que beber pelo menos três uísques antes de entrar em um avião.
2) Quando menino fui atropelado por um jipe e salvo de um afogamento por um ladrão. Que eu me lembre, em três outras oportunidades a morte passou de raspão.
3) Adoro pão com linguiça e arroz com rapa.
4) Gosto de cozinhar. Muitas vezes, cozinho para não pirar.
5) Adoro futebol. Cruzeirense de ir ao estádio. De "ver" o jogo pelo rádio.
6) Fui "vencedor" de um único concurso literário em minha vida.
    Foi uma 'tarefa' no grupo Escolar Maria Ortiz, em Barra do Cuieté-MG; a redação "Meu Brinquedo favorito" venceu "o ponto" para a equipe Azul, do terceiro ano primário.
7) Quando cheguei aos Estados Unidos trabalhei de pasteleiro (fazia pastéis de Belém em uma padaria portuguesa).
   Fui também lava-pratos, ajudante de cozinheiro, garçom, funcionário de empresa-de transportes e servente de pedreiro. Aliás, o pior servente de pedreiro que a construção civil de New Jersey já conheceu.
08) Comecei a escrever coisas visitando um pistoleiro de aluguel condenado a 380 anos de prisão, em um presidio de Juiz de Fora. Eu tinha 18 anos.
09) Meu pai não queria que eu vivesse de escrevinhações. Fez de tudo para que eu fosse militar, como ele. Na contra-mão mão de sua vontade, minha mãe presenteou-me com uma Olivetti portátil, que ela pagou em 12 “suadas” prestações na falecida Mesbla.
10) Sofro quando tenho que usar terno e gravata.
11) Não gostaria de ficar careca.
12) Fui pai pela primeira vez aos 16 anos de idade.
13) Tenho três filhas.
14) Casei-me com uma moça bonita.
    Casei ao meio dia, em Curitiba, o sol estava a pino e tive cãimbras durante o sermão do padre.
15) Toda vez que alguém me chama de “jovem”, acho que esta pessoa está tentando me vender um par de quixutes.
16) Adoro Portugal. Pudesse, iria várias vezes por ano a Portugal.
     Tenho vários ossos lusitanos em meu corpo.
17) Eu me sinto mais mineiro do que qualquer outra coisa.
     Muito mais do que brasileiro ou americano, eu sou mi-nei-ro. De Minas Gerais.
18) Se tivesse que fazer uma tatuagem, tatuaria o triangulinho vermelho da bandeira de Minas Gerais no bíceps.
19) Cheguei aos Estados Unidos aos 21. Tenho 51. Vivi toda a vida adulta no estado de Nova Jersey.
20) Quando comecei a escrever queria ser uma espécie de Augusto dos Anjos menos pessimista. Depois queria ser Drummond e depois, Roberto Drummond.
21) O livro Hilda Furacão, de Roberto Drummond, é dedicado a mim. Também a mim, que fique claro. O que me honra da cabeça aos pés.
22) Tive uma produtora de shows de MPB com dois grandes amigos nos EUA. Fizemos coisas que julgo importantes por aqui.
23) Sofro quando entro em um lugar e está tocando axé, breganejo, pagode ou "fanque". Este é um dos motivos porque vou pouco aos restaurantes brasileiros de Newark.
24) Parei de fumar no dia 1º de dezembro de 2011, após escalar - de carro - um poste da South Street. Carro e cara se arrebentaram.
   Parei como forma de agradecimento pela oportunidade de continuar entre os vivos. Eu era fumante desde 1980.
25) Eu não gosto de ir a festas de crianças, nem de ir à Disney com minhas filhas.
   Não fui. Não vou. Não irei.
   É por estas e outras que ainda morarei no inferno.
26) Não gosto de praia. Nem de carnaval.
27) Acho as obras de Niemeyer uma bobagem. A forma não segue a função.
28) Tenho preguiça mental de falar inglês. Minha tecla SAP está quase sempre desligada.
29) Entre 2011 e 2013 tive muita vontade de voltar pra Minas Gerais e ir morar numa casa de montanha e ser feliz para sempre.
    Esta vontade está passando. Já passou.
30) Tenho os melhores amigos que o afeto pode comprar.


Sunday, November 17, 2013

Aquele dedinho


Quando estamos tristes, tudo fica pior.
É como quando estamos com um dedo do pé machucado e temos aquela impressão de que sempre o estamos batendo pelos cantos por onde passamos.
Não percebemos que sempre o batemos, mas que não o sentimos doer porque ele só dói quando realmente está machucado.
Infelizmente, quando entramos nestes dias plúmbeos em que o corpo inteiro se transforma num grande dedinho machucado, ficamos expostos demais, sensíveis demais, fragilizados demais.
Um engarrafamento no trânsito torna-se uma calamidade de proporções tsunâmicas, a derrota do time de coração trucida tanto quanto a perda de um ente querido, e por aí vai.
Só dói quando eu respiro, posso afirmar.
Por isso tento aprender a respirar mais miudinho.
Ando meio assim ultimamente, de braço dado com a tristeza, enamorado dela, mas pensando numa possibilidade de fugir do altar.
Dona Tristeza que fique solteira.
Meu médico falou em depressão. Recusei o diagnóstico.
Onde é que já se viu filho de soldado com dona de casa deprimido?
Depressão é coisa de bacana.
Ando triste. E pronto.
E não adianta culpar a descoberta de que Obama não é Superman, que os impostos aumentaram e as benesses escassearam, e que o verão foi um arremedo ou que ganhamos mais uma nova ruga e acumulamos fios brancos entre os cabelos que restaram.
Não tem jeito.
Às vezes penso que nascemos com esse gene da dor, e que passamos a vida inteira tentando dar-lhe um nó.
Inventamos paixões, as transmutamos em amor, fazemos filhos, depositamos neles a esperanças de que sejam tudo aquilo que jamais seremos, devoramos livros, viajamos pelo mundo, pregamos diplomas na parede, nos empanturramos de lagosta e vinho.
Quando não dá para tanto, mastigamos couve e arrotamos caviar.
Tudo para driblar o gene da dor. E nem sempre conseguimos, obviamente.
Quem não tem o suficiente para pagar o analista – ou não acredita nisto -, tenta arranjar um amigo.
Conversar faz bem, eu sei. Mas anda cada vez mais difícil encontrar alguém que nos escute mais do que tenha por dizer.
Na falta de grana para o analista ou de um amigo para chorar em seu ombro, dei de falar sozinho.
Mas nem eu mesmo tenho tido paciência para tantas lamentações.
Religião, não. Obrigado.
Deus deve estar com a agenda cheia. E a fila é enorme.
E, pegar fila é outra coisa que deprime qualquer cristão. Mesmo cristãos não tão cristãos assim, como esse do dedinho machucado que batuca no teclado deste computador.
Reaprendo, na marra, a ‘catilografar’ com o dedo indicador.
E assim termino mais um texto.
E assim eu venço mais um dia.
Pode ser que amanhã já não doa tanto.
Pode ser até que já não doa mais.

Tuesday, November 5, 2013

A Mão de Deus em Tibães




(Para Jorge e Anabela)

No aeroporto Francisco de Sá Carneiro, na cidade do Porto, uma voz conhecida faz um “boo” ao pé-do-ouvido, no que me toca o ombro.
Quase dou um pulo, gato velho, ainda sonolento pelas sete horas de travessia do Atlântico e visivelmente baqueado pelas cinco horas de con-fuso horário.
Abraço o parceiro Bispo Filho e ele diz que me reconheceu pelas costas e que eu estou ficando careca, com um cocoruto de frade.
Não foi um começo auspicioso.
Primeiro, meu parceiro de escrevinhações há três décadas, tenta me assustar com um “boo” ao pé-do-ouvido.
Em seguida, assusta-me, de fato.
Vou ao banheiro do saguão do aeroporto, olho-me no espelho assim, meio de ladinho, e constato: estou realmente perdendo cabelo, ali na região extrema do topo.

A caminho da cidade de Braga, na província do Minho, norte de Portugal, somos reminiscência e olhar na paisagem.
Instalamo-nos no hotel Mercure, no centro da cidade, e somos recepcionados à noite pelo poeta Jorge Pimenta e sua bela família.
Bom vinho, boa prosa, excelente comida.
Conheço bem esta casa.
Sinto-me parte deste clã desde que estive na cidade pela primeira vez,  em 2011,  com a esfarrapada desculpa de assistir a um concerto de reunião de uma banda portuguesa.
No que vamos devorando um delicioso arroz de camarão preparado por Anabela (precedido pela antológica alheira de caça, que se registre), vamos tomando conhecimento do nosso roteiro de atividades nos dias que se seguem.
Bispo Filho tem encontro marcado com médicos bracarenses dia sim, dia não. Precisa de acompanhamento em um procedimento iniciado no Brasil. E eu ainda tenho que escrever uns textos para o Brazilian Voice.
Nos intervalos, passeios inesquecíveis por Braga e Guimarães, entrevistas na imprensa local, vinho, presunto, pudim Abade de Priscos, água das Pedras Salgadas e dolce far niente.
O lançamento de Meninos de São Raimundo está marcado para as 21 horas da noite de sexta-feira, 13 de setembro, no Mosteiro de Tibães, em seu recém-inaugurado espaço cultural, no lugar onde um dia foi uma cavalariça.

Eder Asa, amigo mineiro que residiu em Braga, informa-me pela internet que fizemos uma escolha arriscada.
A livraria FNAC, dentro do maior shopping center da região, bem no centro da cidade, é garantia de público. E aquilo ficou martelando minha cabeça, como um sino de igreja anunciando um funeral.
Optamos pelo mosteiro ao invés da livraria e agora é tarde demais.

No dia do lançamento, passo a tarde em Tibães.
A antiga Casa-Mãe da Congregação Beneditina Portuguesa, situa-se a 6 kms a noroeste de Braga, rodeado por plantações de uva e milho. Trata-se de uma imponente construção de 900 anos e que enche os olhos, um lugar erguido para a devoção a Deus e seus silêncios.
Retono ao hotel no início da noite, tomo um banho demorado e encontro-me com Bispo Filho no saguão.

Chegamos ao mosteiro às 20:45, quinze minutos antes da hora marcada e apenas quatro carros ocupam o grande estacionamento.
Faço as contas: um carro é do padre, outro do sacristão, o nosso, e é provável que aquele último, um Renault com placa de Paris, seja de um turista.
Bate uma agonia imensurável e as palavras de Éder Asa reverberam cada vez mais alto, deixando-me resignado com o fato de que o lançamento de nosso tão esperado livro, está fadado ao fracasso logo em sua primeira noite.
Faltam apenas cinco minutos para a hora marcada e observamos um clarão bem ao longe.
Na estrada sinuosa, feita de pequenos sobe-desces, uma espécie de tobogã de asfalto margeado pela vegetação, o olhar se ilumina.
Vemos o primeiro farol de automóvel vindo em nossa direção.

E atrás daquele farol, vem um novo farol.
Seguido de um outro e mais outro e outro mais.
E outros tantos faróis.
Formam um comboio inesquecível, iluminando a noite até pararem, um por um, bem pertinho de nós.
Vamos entrando pela porta principal do mosteiro, revigorados, e as pessoas vão se sentando até que não sobra um único assento vazio na platéia preparada especialmente para a noite do lançamento de Meninos de São Raimundo em Portugal.
Tomamos nosso lugar à mesa e o pião começa a girar.
Um arrepio gostoso toma conta de nós.
Somos tratados como filhos da terra, meninos de Braga, que acabam de testemunhar e viver um pequeno milagre.
E o afeto se multiplica.
Como pães.




Thursday, October 10, 2013

Carta Não Enviada a Um amigo Distante



Newark, um dia qualquer do outono de 2007


 

Zé de São Raimundo,
hoje tive muita saudade de você.
E tive saudade da gente naquele espaço-tempo, e de tudo aquilo em que acreditávamos.

Saudade da nossa juventude e de você com aquele cabelo djavaneado, besuntado de creme japonês, formigueiro andante pelas ruas de Governador Valadares.
Saudade das minhas camisas floridas - vela aberta ao vento -, fita do Senhor do Bonfim no pulso esquerdo, e a incerteza pulsando naquele coração que flertava com o futuro mais oculto.

Num tempo em que vivíamos na poesia, ingênuos, incautos, verdes, nós acreditávamos que sobreviveríamos da palavra e que encontraríamos no ritual de esculpir verbos um meio de vida e sobrevida.
Ledo engano, Zé, como tantos outros.

Achávamos que um governo petista resolveria os problemas maiores do nosso país.
Víamos em Lula a figura de um novo Messias e por incontáveis momentos reconhecemos em José Dirceu a sabedoria de um rei Salomão.
Fomos logrados, meu caro amigo. Feliz ou infelizmente, o tempo é o senhor de todas as verdades.

O PT caiu na vala comum e sei que já não acendemos velas para a estrela solitária.
Perdemos a inocência ao sabor das decepções.
Viver é doce e é amargo, é esta a lição tirada.
E assim vamos somando e subtraindo, botando e tirando coisas do embornal.

Das coisas que me caíram do alforje, a sua amizade e presença constante, estão entre as que mais me fazem falta.
Perdi um referencial, um espelho no qual eu via refletir minha vontade de mudar o mundo. Baixei os braços, Zé.
Quixote sem Sancho, hoje eu toco na banda apenas pelo dever de cidadão. O que é louvável e me deixa honrado da cabeça aos pés. Mas transformei-me num contente.

Mais um.

Sinto falta de nossa amizade. Sinto falta de você em meu cotidiano conflituoso, briguento. Faz me falta o ofício de sonhar. Faz-me falta a luta.
Ao meu modo, venho vencendo a peleja pelo pão e pelo conforto. Tenho consciência disto. E gratidão.
Sempre tive certeza de que conquistaria isto (mesmo nos dias mais chuvosos!) e, apesar de minha preguiça, indisciplina e limitações mais gritantes, o fracasso já não é uma possibilidade, posto que estou no lucro faz muito tempo.

Mas, eu lhe confesso, caro amigo, que de vez em quando, adormeço com o céu azul de Minas Gerais nas retinas. E sonho com as muriçocas de São Raimundo, os lambaris da Biquinha, o ardido da pinga de Coroaci, a névoa aos pés da santa anunciando a chuva e a água cor de barro do 'rião' que ainda desliza em direção ao Espírito Santo e ao mar.

Quimera?
Quem me dera, amigo Zé.

Quero te ver em breve, se a vida assim nos permitir. Vá guardando a cachaça, que eu providencio o tira-gosto para a prosa da boa.

Vê se não some mais.

Abraço e amizade perene do

 

Roberto.

 

Wednesday, September 25, 2013

Bracara Augusta



(Como se lhe escrevesse uma carta)



Depois de tudo, amigo Jorge Pimenta, ficou este meu olhar "esbragaçado", bracarense e nada (nunca mais) será o mesmo.
Eu sei.
Não será mais o mesmo e nem esta nossa amizade, mesmíssima, que já existia muito antes do primeiro contato, do apertar de mãos.
Certas pessoas a gente não conhece.
A gente as re-conhece e elas ficam para sempre.
Como para sempre fica, também, aquela sensação de deja-vu logo à primeira mirada, 'un ange passe', e todas as tardes que se evaporam como éter desde então.
Porque as tardes foram feitas para os amigos compartilharem uma cerveja encostados ao balcão de um bar, dividindo uma fatia de presunto e pão saloio, como se fossem vinho e hóstia, de tão sagrada que é a amizade.
Mas o espaço é navalha.
Espaço e tempo.
E fica agora este oceano entre nós, a separar abraços, proibindo tremoços, secando chopes, enfumaçando a paisagem.
Eles emudecem até os nossos gritos de gol, guardando a camisa encarnada - aquela bandeira balançando ao vento lusitano - que trepidava no cume mais alto de nossas devoções.
O tempo é cruel, sim senhor.
Este tempo que nos irmanou, vida adentro, e que agora parece ter ido morar fora do relógio.
Nada permanece igual depois de mexido, disseste-o tão bem.
E nada - nunca mais - será o mesmo, porque é impossível arrancar este cheiro da Bracara Augusta que veio grudado em minhas retinas, epiderme e roupas.
O cheiro desta cidade que veio dentro de minhas malas e até da bagagem de mão.
Transformou-se o meu olhar turista.
Libertou-se o caminhar cigano.
Hoje reside em mim uma espécie de calma, que emancipa inevitáveis cansaços de homem ainda trabalhador e me remete ao Minho.
O cheiro desta cidade, que agora se incorpora ao meu cheiro, hálito e jeito de ver a vida.
Este cheiro de mofo e tempo, que vive dentro do mosteiro secular.
Este cheiro de cascas de tangerina.
Porque existe, agora, um cheiro bracarense no jeito com que leio a vida.
No jeito com que sinto as coisas.
Uma espécie de aroma de sardinhas se contortorcendo nas brasas ou o vento perfumado que foge da plantação de eucaliptos, na encosta do morro, e vem morar dentro dos nossos pulmões.
E é aqui que tudo fica claro como a memória desta luz perene, solene, luz no vitral atravessando o átrio e iluminando a estufa onde dorme, eterno, São Clemente.
Tudo fica definitivo, como aquela casa abandonada na curva à caminho de seu bairro, os azulejos portugueses sendo domados pela vegetação daninha, lenta e invasora.
Como a água seca da Fonte do Ídolo, as ruínas romanas que moram debaixo de seus pés.
E os seus pés.
E tudo ficou para sempre como as fachadas barrocas das igrejas, o orgulho de ser de Bracara Augusta, o olhar manso de suas gentes e o burburinho dos cafés.
Às vezes, tudo é para sempre, poeta de Mire de Tibães.
Sempre.
Ainda que só de vez em quando.
Foto da "Casa da Curva", de Jorge Pimenta, para quem escrevi e dedico esta crônica.

Sunday, September 22, 2013

O dublê



Dublê é aquele indivíduo que faz as cenas perigosas dos filmes de cinema e televisão.
Acho que toda pessoa deveria ter o direito a um, mocinhos e mocinhas que somos, dos filmes de nossas vidas.
As mulheres, por exemplo, poderiam ter sua dublê naqueles dias do mês.
A dublê sofreria as agruras da TPM e passaria todo o ciclo menstrual no pequeno inferno astral que acomete todas as Penélopes do mundo.
Na gravidez, a dublê seria fundamental.
Enquanto a dublê estivesse engordando, ganhando estrias e tendo desejo de comer doce de jaca às duas da manhã, a mocinha estaria se bronzeando em Bali.
Quando um político tivesse que ir a uma coletiva para explicar um escândalo como o do mensalão, o dublê iria em seu lugar.
O dublê responderia às perguntas irritantes dos jornalistas.
O dublê se constrangeria.
O dublê receberia as vaias na saída.
Enquanto isto, aquele que ele estiver representando poderá estar numa igreja rezando, pedindo perdão a Deus. Ou fazendo mais uma negociata, conforme for a sua vontade.
Ao dublê do goleiro que leva um frango, estariam reservados os apupos.
Ao similar do amante que falha na hora do amor, a frustração, as mãos à cabeça e a obrigatoriedade do bordão "isto nunca me aconteceu antes"...
Ele buscaria a sogra no aeroporto às cinco da manhã. E conviveria com ela pelos próximos cinco meses.
O dublê levaria o pé-no-traseiro, da namorada.
Ele encontraria, na cama, a esposa infiel e seu amante.
Dublê de sujeito casado com mulher feia, ou vice-versa, receberia em dobro.
Vida de dublê não é fácil.
Mas o meu não teria grandes assombrações. Não teria que se atirar de penhascos, saltar de paraquedas ou participar do capotamento de um veículo durante intensa fuga policial.
Mas seria a ele seguir as recomendações do meu médico.
Ele comeria os vegetais e as frutas diariamente.
Ele caminharia os 5 quilômetros receitados todas as manhãs.
Ele faria a dieta.
Ele ficaria abstêmio.
Enquanto isto, eu estaria em meu bar favorito, comendo picanha, lingüiça, bebendo chope gelado e fumando uns cigarrinhos.
Meu dublê amarraria meus sapatos, todas as manhãs.
Ele faria o tratamento de canal, no dentista.
Ele iria ao proctologista todos os anos, fazer ‘aquele exame’ de rotina.
Afinal, já passei dos quarenta.
Ele me representaria em almoços realizados em restaurantes vegetarianos e beberia cerveja sem álcool.
Ele assistiria todas as derrotas do meu time.
No show de Zezé di Camargo e Luciano em Jaguariúna, imposição de um compromisso profissional meu, ele injetaria breganejo nas veias.
Ele votaria em Lula.
Ele faria aula de dança de salão e saxofone, duas frustrações, dois desejos meus, não realizados por mera preguiça.
A coisa só se complicaria um pouco mais para o lado dele, quando chegasse a minha hora de partir dessa pra uma pior.
Enquanto Ele estivesse prestando contas a Deus pelos pecados que cometi, Eu estaria em casa, largadão no sofá, lendo um livro, ou simplesmente exercitando os dedos no controle remoto da televisão.


Saturday, August 31, 2013

Lançamento de
Meninos de São Raimundo
em Braga, Portugal.
Quem estiver morar na região
ou estiver de passagem
está convidadíssimo
a estar conosco.

Monday, August 26, 2013

Uma das invenções do capeta

 

(Para Fabio Portugal)

Comecei com um uisquinho sem compromisso.
Fim de expediente, dia chato no escritório, aquele drink serviria para relaxar e eu ainda chegaria à casa a tempo de jantar.
Não deu nem para o começo. A sede era funda e pedi mais um.
E depois outro. E mais outro.
Aí apareceu um conhecido, que falou de uma cerveja belga maravilhosa, pela qual ele acabara de se apaixonar.
Sabe aquela loura gelada? – ele perguntou.
- Então. Aquela!
E continuou como se fosse um vendedor de carros falando do último modelo da Mercedes a um aficionado:
- É ela.
Molhou a palavra na tal loura e prosseguiu:
- É ela, só que mais gostosa, perfumada, acetinada, e desce como se fizesse um carinho na pele da gente. Só que por dentro.

Decidi que tinha que conhecer a tal loura que fazia um carinho por dentro da pele.
Virei o uísque de uma talagada só, chamei o garçom e lá fui trocar uns carinhos com a loura.
Devia ser boa.
Afinal, 9 dólares por uma garrafinha de 600 ml, tinha que ser.
E era realmente muito boa.
Aí me atraquei com ela, e ela comigo. Foi amor ao primeiro gole.
O calor insuportável clamava por mais dessa maravilha belga.
Parece que os donos dos bares e restaurantes desligam o ar-condicionado e mandam os cozinheiros exagerarem no sal e na pimenta dos petiscos nestes dias mais quentes.
Pedi a saideira e um táxi, porque não me sentia apto a dirigir até em casa.
O jantar em família havia ido para as cucuias e tratei de ir logo para o quarto. O trajeto até o segundo andar fez com que eu me sentisse ligeiramente zonzo e nauseado.
Despi-me - isentado do banho - e horizontalizei.
Mal me deitei, a cama deu de rodar.
- Que diabo é este? - perguntei a ninguém.
E ela rodava como se fosse um relógio e eu o seu ponteiro. E numa velocidade de ventilador.
Não sei quando parou o homem-ventilador.
Mas foi uma eternidade.

Acordei com a cabeça oca como um abacate, os miolos chacoalhando como se fossem a semente.
Pus-me de pé, heroicamente, e arrastei o cadáver até o banheiro.
Uma vez lá, deixei a ducha fria correr sobre a minha miséria.
Maldito sujeito que inventou tudo isto, pus-me a pensar.
Quem inventou a ressaca inventou as piores coisas desta vida.
Ele inventou o imposto de renda, o trânsito de São Paulo, a Festa de Barretos e Zezé di Camargo e Luciano.
Inventou o sertanejo universitário, a broxada,  a ejaculação precoce e o zero a zero no futebol.
Ele inventou Galvão Bueno, o uísque paraguaio, o cecê no transporte coletivo, a calvície e o horário eleitoral na televisão.

Inventou os jogos do Campeonato brasileiro às 10 da noite, principalmente às quartas-feiras.
Inventou ainda a fila de banco, a repartição pública e o mau-humor das pessoas que trabalham nestes departamentos.

E inventou também o gosto do boné do chapéu do maquinista do trem.
O gosto do cabo de guarda-chuva.
E da tábua de chiqueiro de porcos, que fica na boca quando acordamos ressaqueados, achando que um pedaço da gente prescreveu.
Quem inventou a ressaca inventou um verdugo e o soltou dentro de nossas consciências para que ele nos faça jurar, a cada pileque, que nunca mais beberemos.
Sim, eu juro.
Eu prometo.
Nunca mais eu bebo.

Saturday, August 17, 2013

O autógrafo

 
 

(Para Olinto Campos Vieira e em memória de Roberto Batata)


Esta estória começa no estádio José Mamud Abbas, o Mamudão, em Governador Valadares.
Aconteceu no dia 30 de março de 1975 e o Esporte Clube Democrata está recebendo o poderoso Cruzeiro Esporte Clube, time  da capital.

1º Parte:

Eu tinha 13 anos e meu ídolo era o cruzeirense Roberto Batata, ponta-direita que todos apontavam como grande revelação e com futuro garantido na seleção brasileira.
Esguio, bonito, usava cabelo black power, assim como seus colegas Joãozinho e Eduardo Amorim.
Joãozinho era a coqueluche do time, ponta-esquerda destemido e driblador, chamado pelo cronista esportivo Roberto Drummond de "o bailarino da Toca".
O versátil Eduardo, por sua vez, jogava nas duas pontas e também no meio de campo. Foi o criador do drible  "Rabo de Vaca".
O jogo terminaria de dois a zero para o Cruzeiro, com dois gols do centroavante Palhinha.
Mal o juiz apitou o final da partida, corri para a porta dos vestiários na esperança de recolher meu primeiro autógrafo de um atleta profissional.
Eu queria a assinatura de Roberto Batata para mostrar aos amigos da escola.
Demorou uma eternidade, mas vi quando abriram a porta e os atletas foram saindo, um por um, assediados por uma pequena multidão.
Espremido no meio de pessoas maiores, eu me iluminei, quando aquele rapaz vestido com roupa de moço da capital veio caminhando na minha direção.
Trêmulo, postei-me bem na sua frente, como um zagueiro que tentasse pará-lo, oferecendo-lhe papel e caneta:
    - Batata, por favor, me dá seu autógrafo.
O jogador baixou a cabeça, pegou a caneta, escreveu o nome e entrou no ônibus do clube.
    Eu dobrei o papel, guardei e fui para casa, feliz.
    No dia seguinte, contei aos colegas de escola o encontro com o ídolo, falei do jogo, do placar e do autógrafo.
    Tirei o papel do bolso, abri e mostrei a eles, que caíram na gargalhada.

    Naquele pedaço de papel branco estava escrito, em azul: 
    Joãozinho.

2º Parte:

Vinte anos anos depois, homem feito, jornalista estabelecido e já morando nos EUA, estou em uma mesa de restaurante jantando com algumas celebridades.
Os músicos Sá & Guarabyra e Celso Adolfo estavam lá. Assim como os já ex-jogadores Reinaldo e Joãozinho. 
    Aquele Joãozinho da primeira parte desta estória.
    No meio da conversa, lá pela quinta garrafa de vinho, contei a todos o episódio ocorrido duas décadas antes.
    Ligeiramente constrangido, Joãozinho disse não se lembrar da estória, mas que era muito comum os três atletas serem confundidos fora dos gramados, naquele tempo. 
     E completou:
     - Se dei o autógrafo, foi para não decepcionar o menino.
   
    Rimos muito, bebemos, comemos, sairíamos do restaurante às 4 da manhã.
     Um pouco antes da debandada geral, ele veio da outra ponta da mesa até onde eu  estava.
     Acocorou-se ao meu lado, pegou um guardanapo e uma caneta e disse, com os olhos marejados:
      - Antes de irmos embora daqui você poderia me dar um autógrafo?
    E eu dei.
    Foi o primeiro autógrafo que dei na vida.
    Primeiro e único.
 
 
 
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Monday, August 12, 2013

Um rio sem fim


Onde eu nasci passa um rio.
O Rio Doce, que nasce na serra da Mantiqueira e desagua no Atlântico, em Linhares, no Espírito Santo.
Este rio que ainda corre em minhas veias e foi meu companheiro desde sempre.
Nasci às suas margens, numa casinha modesta, em Pedra Corrida, interior do interior de Minas Gerais. Mas fiquei pouco tempo.
Alguns meses após o nascimento, acompanharia o seu curso, correnteza abaixo, mudando-me com a família para Governador Valadares.
No bairro São Raimundo aprendi a nadar em suas águas, pescava lambaris e piaus, conversava com as pedras. Foi assim por toda a infância e adolescência.
O tempo passou, tornei-me adulto e passei a ter um pesadelo recorrente.
Quase todas as noites eu sonhava com o corpo submerso e tinha a sensação afobada de afogamento, via barrancos, vegetação ribeirinha, o céu engolindo as águas, peixes, tudo.
Era um pesadelo que tinha placidez e pressa, fazendo-me acordar suado, amedrontado, sem entender o porque de o mesmo sonho se repetir com tanta frequência.
Há cerca de dez anos, no entanto, minha mãe contou uma história que mudaria as minhas noites.
Estávamos jantando em Belo Horizonte e ela falou da gravidez que me traria ao mundo.
Contou-me da chegada à Pedra Corrida de minha avó Ana Emília, parteira de excelente reputação.
Naquele tempo eram raros os hospitais e que praticamente todas as crianças interioranas nasciam em casa.

Num domingo de novembro, a família foi para uma prainha que se formava sempre que o rio definhava.
Farofa, frango, refrigerante, cerveja e amigos.
Um luxo.
As pessoas chamavam seus amigos e iam caminhando rio adentro, as águas pela cintura, ancorando nas pequenas ilhotas arenosas que se materializavam, e ali passavam dias inteiros.
Uns pescavam com anzol, crianças nadavam e jogavam futebol, mulheres tricoteavam a vida alheia.
E minha mãe foi com meu pai e um grupo de amigos, passar aquele dia de grande calor.
Tudo ia muito bem até que ela começou a sentir as contrações.
Temendo que a criança nascesse ali, no meio do rio, dona Rute tentou voltar para casa, na margem esquerda, apavorada e com muitas dores.  Foi um sufoco.
Felizmente, aquela apressada travessia não passaria de um susto.
Eu nasceria alguns dias depois, no meio de uma madrugada de terça-feira, iluminado pela luz de uma lamparina, o cordão umbilical enrolado no pescoço.
Minha avó sempre contava que foi um parto complicado, um dos mais difíceis que fez.

Desde que minha mãe contou esta história da corrida até a margem, nunca mais voltei a sonhar com o afobamento daquelas águas.
Foi como se eu entendesse, finalmente, aquele mistério tão íntimo.
E tinha que ser ela a contar para eu desvendar, de uma vez por todas, o mistério.
Quando completei 40 anos de idade pedi a meu pai que fosse comigo, pela primeira vez, a Pedra Corrida. Afinal, eu jamais havia voltado lá.
Saímos de BH bem de manhãzinha e chegamos ao destino por volta da hora do almoço, uma viagem de 300 quilômetros pela rodovia 381.
Descemos a rua principal do vilarejo, um lugar precário e esquecido pelo progresso, e fomos imediatamente para a rua à margem do rio, onde eu nascera em 1962.
Seu Antônio parou o carro e ficou um pouco em dúvida, pois as casinhas eram muito parecidas umas com as outras. Até que se decidiu por uma delas.

- “Foi aqui que você nasceu, meu filho”, disse ele.

Emocionei-me, chorei, tirei fotografias na frente daquele casebre e me encantei com um galho de mini-rosas, que pendia para fora do muro por um fresta.
Foi quando apareceu um homem que nos observava à distância.
Ele chegou, cumprimentou meu pai, disse tê-lo reconhecido e que ele não “dimudô” muito, do início dos anos 60 até então.
Em seguida, disse-nos que aquela não era a casa em que moráramos.
Informou que ela já não existia, pois foi levada por uma enchente em 1979, apontando para um terreno baldio, um pouco mais à frente.
Fui até lá e vi, entre os escombros, o que ainda havia de vida naquele pedaço de terra.
Procurei vestígios meus no meio da rala vegetação que brotava onde um dia existiu uma casa, e nada encontrei.
No lugar em que nasci pastava agora, incólume, um simpático burrinho.
E eu, que sou de tantos lugares, continuei sendo de lugar nenhum.


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Wednesday, July 31, 2013

Das coisas que não morrem jamais


Eu era rapazote em Governador Valadares e começava com o vício da leitura e as invencionices da escrevinhação.
Poesia foi a primeira grande fixação.
Eu misturava Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire com os catecismos de Carlos Zéfiro e as estórias do Jeca Tatu, do Almanaque Biotônico Fontoura.
Depois descobri a beleza das crônicas, o que acabou se tornando um ofício diário.

Era um banquete requentado, é verdade, mas ainda sim, um banquete diário.
Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Rubem Braga me eram servidos à medida que os jornais do Rio e Belo Horizonte chegavam à cidade, três dias após terem sido publicados.

Os Lima, de posses modestas, não assinavam aquelas publicações, mas um vizinho que trabalhava numa barbearia do centro da cidade as trazia, quando voltava para casa ao final do dia.
Só comecei a gostar dos romances depois de ter lido outros gêneros mais curtos. E bem depois. Eu não queria o compromisso duradouro da leitura.
Queria algo rápido, como uma paixão. Os jovens, em geral, são assim, impetuosos, apaixonados, preguiçosos...
Roberto Drummond entrou em minha vida às prestações, bem depois.
Ele assinava uma coluna no Estado de Minas e fazia crônica esportiva com muita poesia. Chamava Reinaldo de Baby Craque. O ponta-esquerda Joãozinho era o bailarino da Toca. Os craques dos quais não gostava ou não aceitava eram chamados de tigres de papel.
Nunca escondeu de ninguém que era atleticano. É dele a célebre frase adotada por toda a massa carijó: "Se houver uma camisa branca e preta pendurada num varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento".
Roberto escrevia com maestria sobre outras coisas, também.

No Segundo Caderno do jornal, transformava Belo Horizonte na Cartagena de Garcia Marquez, na Pamplona de Ernest Hemingway. Era ali, na fonte que borbulhava à sombra da Serra do Curral, que ele bebia a água da inspiração.
Melhor do que nenhum outro escritor da capital mineira desvendou com o toque de sua pena a alma do belorizontino.
Tornava possível o amor da moça da Avenida Barbacena com o rapaz que veio do interior e foi morar em Betim. Conversava com uma cotovia que lhe dava conselhos de cima dos postes da Rua Rio Grande do Norte. Promovia duelos de adversários políticos ao pôr-do-sol em plena Praça do Papa, e marchava pela Afonso Pena com pobres miseráveis pedindo terra, trabalho e pão.
Li seu primeiro livro quando já vivia nos Estados Unidos e tornei-me um ardoroso fã.

Em 1988, quando fundei o Brazilian Voice, resenhei um trabalho seu, que acabara de ser lançado no Brasil.
Alguém de passagem por aqui levou-lhe o jornal e, algum tempo depois, recebi um recado dele: queria me encontrar quando fosse a BH.
Um mês depois estávamos no Dona Lucinha comendo feijão tropeiro e bebendo umas e outras. Foi impactante aquele primeiro encontro.
Passamos a nos encontrar sempre, todas as vezes que eu ia ao Brasil.

Ficávamos horas a fio conversando sobre tudo e nada nos bares da capital. Dono de uma generosidade ímpar tomava-me debaixo de suas asas fazendo-me sentir como se fosse um filho querido. O filho varão, que ele não teve.
Quando retornei aos Estados Unidos, ele já era colaborador do Brazilian Voice. Nunca levou um tostão por suas crônica e dizia que um dia cobraria um simbólico dólar por cada um de seus inventos publicados no BV. Mas que isto só aconteceria depois que ele ganhasse o Nobel de literatura.
Se eu não cheguei a entrar para a sua família, ele foi, certamente, o primeiro grande nome a entrar para a família Brazilian Voice. E a honraria maior veio com a publicação do livro Hilda Furacão, seu grande sucesso literário, que ele dedicou, junto com outras pessoas, também a mim.
Meu querido amigo, cujos títulos de livros tinham uma obsessão pela morte ("Quando Fui Morto em Cuba", "O dia em que Ernest Hemingway Morreu Crucificado", "A Morte de Dj em Paris" e "Os Mortos Não Dançam Valsa") me ensinou muito sobre imortalidades e o avesso de certos mistérios do ofício de viver.
Aprendi com ele que as coisas verdadeiras não morrem jamais.
Não morre o amor.
Não morre a amizade.
Não morre a gratidão.
Não morre a saudade.
Como que cumprindo uma sentença assinada por Deus, somos nós que morremos um pouquinho a cada nascer de sol.
Morremos como morre a juventude, os arroubos desta e tudo o que for apenas paixão.


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Sunday, July 7, 2013

Um poema de Ricardo Reis (pessoa de Pessoa)






















 
 
Segue o teu destino

 Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas
O resto é a sombra
De árvores alheias

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.

Suave é viver só
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses

Vê de longe a vida
Nunca a interrogues
A resposta está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração
Os deuses são deuses
Porque não se pensam
 
 
 
 
(Poema de Ricardo Reis - Melodia de Sueli Costa)

Friday, July 5, 2013

Um poema de Maria do Rosário Pedreira e Uma Canção Cubana (que toca sem parar)

























Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais
este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos.
Fecha os olhos agora e sossega o pior já passou
há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão
desvia os passos do medo. Dorme, meu amor -

a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste
e pode levantar-se como um pássaro assim que
adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra
não hão-de derrubar-me eu já morri muitas vezes
e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos

agora e sossega a porta está trancada; e os fantasmas
da casa que o jardim devorou andam perdidos
nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme,

meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e
nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já
olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui,
de guarda aos pesadelos a noite é um poema
que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.


Poema de Maria do Rosário Pedreira
Foto: A Fonte da Paz, de Greg Wyatt (Igreja St John The Divine, Nova York)
Canção: Quedate, Kevis Ochoa e Decemer Bueno








Sunday, June 30, 2013

Da solidão dos domingos


(Para Marcos Pizano)


Ontem foi domingo.
Um dia plúmbeo, que nem de longe se deixou transparecer um domingo de verão.
Quase enlouqueci.
Acho que o fato de ter sido véspera de feriado conspirou, transformando as ruas de Kearny em um pavilhão de escombro e abandonos.
Da janela do apartamento, vislumbrei o manto cinza que cobria a tarde, trazendo a reboque a lembrança de muitos outros domingos melancólicos de minha vida.
Sempre vi o dia em que Deus descansou de uma forma morna, ressaqueada, como se algo tivesse se quebrado ou reerguido das cinzas, dentro de mim.
Em muitos domingos, sinto que o mundo vai se esvair em marasmo e melancolia.
Em 1986, aos 23 anos, escrevi um livro de poesias que batizei de “Tango Fantasma”, título de um dos poemas da obra.
O poema falava da solidão de um domingo qualquer, que nascia parido da solidão de outros tantos domingos, e de um sujeito que perdera a esposa e a amante durante um ciclo de sete dias e se exilara num cassino imaginário, fincado às margens do lago de Maracaibo.
Escrevi o poema após retornar de um almoço na casa do poeta Marcos Pizano, ao notar que as ruas de Governador Valadares estavam irremediavelmente desertas.
Tão logo entrei no ônibus que me levaria a São Raimundo, tive  a impressão de que havia entrado num trem fantasma.
Apenas o motorista e o trocador fizeram-me companhia durante toda a viagem, o lotação precário saltando sobre a estrada esburacada.
No alto-falante do teto do ônibus, a voz de Chico Buarque cantava:

“Ó pedaço de mim ó metade arrancada de mim”...

Cheguei em casa aos frangalhos, sentindo o peso de uma barra pesadíssima que aquele domingo implacável havia jogado sobre mim. E nunca mais me curei.
E assim continua sendo, tanto tempo depois, os novos domingos se repetindo com os mesmos contrastes, como se escrevessem com carvão em superfície de pele uma estória triste.
Para mim, o domingo será sempre de Globo Rural, tendo na sequência Rolando Boldrin apresentando modinhas de viola e contando “causos” naquele Som Brasil que ainda reverbera em mim.
Meu domingo terá o imorrível Ayrton Senna com seu macacão limpo, ultrapassando mitos e entrando para a história. Afinal, domingo-fantasma sem Galvão Bueno cuspindo bairrismos e bajulações gratuitas ao microfone num Grand Prix, soaria ilegítimo.

E é por isso - e por muito mais -, que meus domingos serão sempre de almoço em família.
Domingo de irmã chegando com filho pequeno no colo, de mãe mexendo a a panela de comida no fogão, e de sobrinhos indomáveis correndo pela casa, como se ali fosse o pátio da escola durante o recreio.
Os domingos felizes foram, são e serão, sempre, de macarronada, de frango assado com farofa, tutu de feijão e salada de legumes cozidos.
Eles terão Sílvio Santos na televisão:
- Quem quer dinheiro?

Domingos de futebol, cerveja espumosa transbordando pelos copos e escorrendo em rios que não desaguarão em lugar nenhum.
Domingos como os de ontem, com folhas de jornal previamente lidas, amassadas, levadas pelo vento no bojo das tardes abandonadas.
Este abandono com cara de ‘nunca’, semblante de ‘jamais’ e que é igual para todos nós.
Abandono que se repete semana após semana e tem o gosto requentado do jantar de ontem e anteontem.
Já sabemos que o próximo domingo virá vestido de um até breve e que, como este que agora, escorrerá entre nossos dedos, terá seus trejeitos decadentes de todo fim de festa.
E esta será a nossa única certeza:
O fim da festa, moça.
O fim de tudo, rapaz.
O viver verdadeiro, pleno e feliz, esse quase-milagre, só chegará amanhã, com o clareamento do dia, corre-corre dos transeuntes nos comércios e as buzinas dos automóveis nos ensurdecendo pelas ruas.
Segunda-feira não é mais o fino da fossa.
Segunda-feira é, desde sempre, o berço da ressurreição da raça humana.

Wednesday, June 5, 2013

Aqueles que conheço e que partem


Dizem-nos que está tudo bem: apesar de batermos
de porta em porta, e de vermos quadros pendurados
compulsivamente e com rasgões aleatórios
de loucura.

Procuramos saber nesse dia como
desapareceram, se foi de repente, se deixaram
cartas a avisar, se pediram mais um conhaque antes
de se despedirem, ou se simplesmente
fecharam a porta e ficaram do lado de lá.

E encontramos silêncio nas respostas.
Tudo aquilo a que nos propomos conhecer fica envolto
em lençóis escuros que deixaram lavados - e ainda
quentes -com beatas de cigarro ao lado da cama, com revistas
folheadas e abertas por cima das almofadas.

Percorremos o resto da casa, chegamos
por fim à porta de entrada onde tudo continua
intacto, insanamente preservado, como se ainda hoje
nos sentássemos aqui, a olhar para a televisão, a ver
os nossos dias - a imaginar as casas, os filhos, os
empregos - e a continuar de olhos abertos, as mãos a
mexerem em folhas riscadas sem quaisquer palavras.

Mas, de quando em vez, decidimo-nos a escrevê-las, para que
se sinta menos a despedida - como que se ela não existisse
ou como que se nada fosse dito naquele momento.

E de qualquer forma, os corpos afastam-se,
ininterruptamente,
a passo lento; olhamos a estrada ao longe com as roupas
a assemelharem-se a sonhos quebrados, com as mãos por
fim
cheias de algo que não conhecemos - com a cabeça longe
em mundos distantes do nosso.

Crescemos assim. Habituamo-nos a ver aqueles que
conhecemos
de costas para nós, a mão direita a acenar rente à anca,
num gesto esquecido de dizer adeus, para que haja algo a
separar-nos
para além de cartas.

A partir daí, será como uma fotografia desfocada:
relembraremos
aquele que partiu, naquele dia, a agitar a mão para nós
como se não estivéssemos ali; as costas ocupadas com
malas e rostos
e nós a bater a portas de quem não conhecemos, a
anunciar
que este ou aqueloutro partiu.

Por fim, deixamos de os conhecer - deixamos de lembrar
os lençois
quentes, as revistas abertas a meio, em artigos de
saudade
ou de descrições vagas sobre sexo; deixamos de ver arder
as
beatas de cigarro no cinzeiro azul, ao lado da cama;
esquecemos que
deixámos a porta aberta com a corrente de ar a crescer
por
dentro de nós: e a imagem da tua mão a acenar,
ligeiramente,
junto à anca, e eu a lembrar o teu rosto, apesar de me
dizerem
que está tudo bem.


Sérgio Xarepe in
"Outros dias existe muitos"
Corpos Editora
Dezembro 2008


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Saturday, May 18, 2013

Das coisas que preciso e que não são poucas



Para Nina Rizzi

Preciso encontrar meu passaporte brasileiro que se exilou de mim.
Desde que cheguei de Portugal, em novembro do ano passado, que não sei do seu paradeiro.
Estará no bolso do paletó que me acompanhou na viagem?
Será que caiu no chão e foi encontrado pela mulher da limpeza, e colocado num escaninho do departamento de achados e perdidos de algum lugar?
Terá sido esquecido num café de aeroporto e hoje traz a cara de um terrorista, um traficante de drogas, ou outro contraventor no lugar onde um dia existiu uma foto minha?
Eu gosto da minha fotografia naquele documento.
Estou dez anos mais moço e meu rosto ainda não era esse mapa pluvial do estado de Minas Gerais.
Estou dez anos mais novo e o mundo era um lugar bem mais jovem.
Há dez anos ainda ‘não havia para mim Sarah Palin, ou a sua mais completa tradução’.
Não havia Neymar nem Michel Teló, e meu time ainda não havia flertado com a Segunda Divisão.
Há dez anos eu ainda chorava as dores de outros onze de setembro.
Desde então, aumentou o buraco na camada de ozônio, subiu o preço da gasolina, árabes e judeus continuam na mesma e mesmo eu, continuo por aqui, na mesmíssima.
Só que mais gasto.
E seu eu precisar ir para o Brasil? - pergunto aos meus botões.
E se explodir uma guerra, e eu tiver que fugir como um cão, com o rabo entre as pernas? - pergunto a minha covardia.
Preciso encontrar a coragem para não fugir, é verdade.
Mas antes disto, preciso encontrar o meu passaporte.
E preciso de muito mais.
Preciso encontrar a coletânea de Carlos Drummond de
Andrade, e ler em voz alta o Poema das Sete Faces.

(...) Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração (...)

Preciso encontrar minhas sete faces e, se preciso for, dá-las a tapa, pois ainda há tempo.
Ainda há tempo de mudar de opinião.
De mudar de ares, de roupa e de vida.
Há tempo de virar o jogo.
De ganhar o jogo.
De criar novas regras e de reinventá-lo, o jogo.
Tempo de rabiscar montanhas e dar novas formas às nuvens.
E de pagar o preço.
Pois ainda há tempo de cuidar da saúde e retomar as caminhadas matinais.
Preciso encontrar, ainda, o amor próprio, a inteligência de querer ser longevo, de querer viver mais e melhor.
Inteligência, pois sim.
E encontrar os meus óculos, perdidos num lugar de mim.
Mas não os óculos, esses que me permitem enxergar o mundo com meus dois graus de astigmatismo no olho esquerdo, e um ponto cinco de miopia no direito.
Preciso encontrar aquele par de óculos especiais que me permita enxergar-me neles, peneirando, na leveza dos aros, o sol da cegueira que me desilumina tristemente os dias.
Este par de óculos que me permite ver joio e joia, menino bonito de mim.


Saturday, May 11, 2013

Essas mães interioranas


Eu quis escrever um poema homenageando minha mãe.
E não só a minha. A intenção era homenagear todas as mães.
Mas o poema acabou não saindo, como não tem saído nenhum outro verso da fábrica inativa, que tem sido esse baleado coração.
Dona Marocas, dona Ercília, dona Dozinha, dona Filhinha, dona Lola, dona Esmeralda, dona Niquinha e dona Rute, a minha, eram, todas, maravilhosas. Lembro-me claramente daquelas senhoras em meus primeiros anos em São Raimundo.
Dona Cilinha cantava no coral da igreja.
Dona Marocas - mãe das moças mais bonitas - era sábia, dava conselhos, e não carregava tristeza no olhar.
Dona Ercília ajudava os pobres.
Dona Dozinha estava sempre de mau humor. Seu marido virou garimpeiro e foi viver no Pará.
Dona Lola freqüentava uma igreja crente.
Dona Niquinha cuidava do jardim.
Dona Vilma plantava hortaliças.
Dona Esmeralda chorava às escondidas.
Dona Filhinha mentia para si própria.
Dona Socorro fazia biscoitos.
Dona Ireni aprendeu a cortar cabelo.
Dona Isaura estudava à noite. De dia vendia laranjas no ponto final do ônibus.
Dona Maria era a melhor amiga de dona Conceição. Que era esposa de Expedito, que era maquinista de trem.
Dona Laura, de tão elegante, parecia mulher da capital. Quando andava pelas ruas deixava um cheiro de alfazema no ar. Estava sempre assim, refrescada, pronta para o calor do inferno nas tardes de Governador Valadares.
Dona Ana era calada.
Dona Nilza calava-se.
Dona Angélica alfabetizava meninos.
Dona Joana criava cabritos. Seu único filho morreu atropelado por um caminhão Scania Vabis.
Dona Rita organizava a novena.
Dona Juraci cresceu senhora de terras, teve gado, era filha de doutor. Envelheceu pobre e feliz, concubinada com um vaqueiro, ex-empregado de seu pai.
Dona Jandira teve filho prefeito, outro vagabundo e um outro meio artista.
Dona Lourdes era viúva. Não teve a mesma sorte de dona Adelaide, que se casou pela segunda vez.
Dona Cássia foi abandonada pelo esposo. Ela, que na juventude quis ser cantora e atriz, teve um filho que fugiu de casa e uma filha meretriz. Mudou-se para São Paulo e dela ninguém nunca mais ouviu.
Dona Selma lavava roupas para fora. Assim como dona Auxiliadora e dona Idalina.
Dona Norma conversava com o vento, aprisionava passarinhos e fazia tricô na varanda da casa até escurecer.
Dona Teresa dançava catira.
Dona Ivonete sabia bordar. Suas filhas eram costureiras. Seu marido, alfaiate.
Dona Rute lidava com um garoto meio louco, que queria sobreviver das palavras que bebia do Rio.
Maravilhosas, aquelas mulheres.
Lindas, marcantes, cada uma do seu jeito. Como esquecê-las?
Com o avançar da idade elas acabaram virando outra coisa.
Se na infância são nossas heroínas, com o passar dos anos viraram santas. E, como tal, merecem que todo filho lhe construa um altar enfeitado com as flores do amor eterno e recheado de oferendas da mais profunda gratidão.
Santificadas, sejam, essas nossas mães.
Santifiquemos.
Santificai!



Monday, May 6, 2013

O jornalista, a revista masculina, o pastor e o roqueiro


Preciso parar com a mania de levar revistas masculinas para o banheiro.
Até já tentei, como explicarei a seguir, mas juro que não compro estas publicações para ver as moças peladas. Faz tempo que não as adquiro para esse fim.
Compro pra ler as entrevistas e os artigos - que são muito bons - e pelo excelente trabalho editorial que fazem.
Sim, eu sei. Ninguém acredita.
E esse que julgo ser um salutar costume já me fez passar por algumas situações embaraçosas, como esta aqui:
Há não muito tempo eu saía do mais íntimo dos redutos da humanidade, e esbarrei com um conhecido pastor evangélico da cidade.
Na verdade, foi mais que um esbarrão. Foi uma “trombada”.
Ele, um pastor da velha guarda com fama de severo, tinha muita pressa de entrar.
E eu não sabia que era ele do lado de fora.
Já me preparava para sair quando notei que a maçaneta começou a se mexer nervosamente. Quase fiz de conta que não a vi se mexendo, mas quem queria entrar tinha pressa. Muita pressa.
Colaborei.
Acho que foi ali, ao vê-lo suando nas têmporas, que matutei pela primeira vez que, assim como qualquer um de nós, pecadores, os pastores e padres também freqüentam banheiros.
"Até o papa", intuí, num arroubo de inteligência.
Todos nós estamos sujeitos às intempéries intestinais.
No que colidimos à porta, ele e eu, a revista masculina escorregou de debaixo do meu sovaco para cair no chão com as páginas centrais absolutamente escancaradas.
As páginas e as pernas de uma conhecida atriz de televisão, que revelava aos homens comuns desse mundo um tanto bom de sua cobiçada intimidade.
E eu e o pastor ficamos com cara de dois cowboys, cada um com a mão em sua arma, olhando fundo nos olhos um do outro, tentando adivinhar o próximo movimento.
Ele portava uma bíblia.
Eu, uma playboy.
Corremos os olhos pelos seios da atriz naquela fração de segundos, que nos pareceu - quero crer, também a ele -, uma eternidade.
E eu até quis dizer a ele que estava lendo uma entrevista com o navegador Amir Klink, numa tentative de me justificar, mas ele não tinha tempo para me escutar.
Apressado em acertar suas contas com a natureza, só teve tempo de me passar um olhar de descompostura antes de bater a porta atrás de si.
Segundos depois ouvi o barulho característico de alguém que não estava bem dos intestinos.
Quase sorri, cruelmente.
Fui para minha sala, refugiei-me detrás da escrivaninha e fiquei naquele estado de espírito que oscilava entre o envergonhado e o já conformado, esperando a bronca dele.
E ele veio dali a uns 15 minutos, sem trazer o sermão para o qual eu tanto me preparara.
Estrategicamente, ambos 'abrimos mão' do aperto de mão.
Ele veio, falou de um evento em sua igreja e eu achei melhor não tocar no assunto da revista. Estava de ótimo tamanho.
Enquanto ele falava, eu me prometia que, mesmo sendo a título de material de leitura para a duração “do procedimento” ali cabível, eu nunca mais entraria em um banheiro levando uma revista masculina.
E, durante muito tempo mantive a promessa, até que no outro dia alguém apareceu com uma revista destas na redação, e não resisti.
O entrevistado era Marcos Nasi, o polêmico vocalista do grupo Ira.
E nesta entrevista ele falava de sua trajetória na profissão de músico, gabou-se de ter namorado Marisa Monte e Marisa Orth, chamou o sertanejo Luciano de “anão de jardim” e contou “todas” as suas rusgas com a polícia.
Ele só se esqueceu de um episódio ocorrido em Framingham no início dos anos 90. Episódio este, que relembro aqui:
Após um show de sua banda no Ipanema ele ajudava e desconectar o equipamento, quando se aporrinhou com um fã embriagado.
Pela ira do vocalista do Ira, o moço deve ter insistido para que ele cantasse uma música de Zezé de Camargo e Luciano.
Nasi estava possesso. Já chegou socando.
O fã teve abundante sangramento no nariz e nem chegou a reagir. Deve ter sofrido uma fratura.
Nocauteado, apenas chorou, como um menino que não sabia direito o que estava acontecendo.
Alguém chamou a polícia e Marcos Nasi foi algemado e colocado dentro da viatura.
O empresário Carlos Silva, que trazia o Ira ao Ipanema, foi conversar com os policiais, enquanto eu, que nada tinha a ver com o peixe, limpava o nariz do rapaz agredido com um guardanapo de papel e tentava convencê-lo a não prestar queixa.
Na minha ignorância, isto poderia trazer-lhe alguns problemas, haja vista que ele era imigrante ilegal.
A vítima não prestou queixa, Nasi foi lberado imediatamente e pôde voltar ao Brasil no dia seguinte.
Naquela noite eu não dormi.
Perdi o sono, arrependido por ter me envolvido na confusão, por ter interferido.
No fundo do meu coração eu sabia que Marcos Nasi deveria ter sido responsabilizado por sua agressividade. E que não merecia ter ficado impune.
Em sua entrevista à revista masculina tantos anos depois, eu o vejo alardear que tem a ficha policial limpa.
O que talvez seja verdade.
Mas inocente, eu sei que ele não é.


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