Saturday, October 30, 2010

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As hortênsias estendidas num outro tempo decoram a estância
mais acima do meu corpo.

Senti o grito dos faisões encurralados nos ramos de agosto.
Um animal invisível rói as madeiras que também estão para lá dos
meus olhos
e assim se aumenta a serenidade e prevalece o cheiro da mostarda
que foi derramada pela minha mãe.


Eu convalesço em lençóis limpos que me preservam dos insectos
e os cristais da minha infância são causa da imposição de uma
luz que os antecede em muitos dias desde que existiu a soleni-
dade e a pureza.


Neste espaço reuni-me com a tua doçura, a que traíste diante dos
meus olhos.
Agora és obsequioso e pacífico como o óleo que se reserva para os
agonizantes;
agora conténs-me com as tuas mãos
e descobres-me todos os gestos do teu rosto:


tantas vezes puseste a boca sobre as feridas, tantas te desdisseste
como uma lebre tenebrosa...
Assediado por enxofre que não podias suportar nos alimentos,
tantas me recebeste no teu olhar e me participaste uma escrita de
carmins abrasados,
tantas te desplumaste na minha existência...!
Foi uma época danificada.


Tu invocavas o chamariz e fazias com que as árvores se inclinas-
sem sobre nós nas tardes imóveis enquanto a polícia escrevia
os nossos nomes.
Noutros dias cantavas possuído pelo álcool, que transbordava
azul sobre as mesas gastas pela lixívia.


Uma senda de tojo conduzia até à tua casa onde era sempre inver-
no. Ah como sentia os teus dentes e quanto tempo te escutava,
como esperava o teu desaparecimento amando-te!


Não me deixaste outro sinal que o teu rosto celebrado pelo pranto
das mulheres.
Perante a tua beleza inclinava-se a serenidade, viúva tua desde há
muito tempo, viúva expulsa dos teus lençóis.
Isto foi quando, atraído pelo acónito, penetraste nas suas câmaras;
isto foi quando começou o esquecimento.


Tu distribuías a nostalgia de quanto é honrável e concertado com
a pulsação dos ovos.
Não quiseste ser louvado por isso mas sim pelo rancor, tua cida-
dania naquele tempo.

A cinza das tuas unhas refugiava-se nas escrituras e naqueles templos

cujas madeiras estão marcadas a golpe de faca e com a
gordura dos animais torturados.

Tu, mais autêntico que eu porque me excedias em vigilância,
conduzias-me aos lugares onde é possível saborear o verdete e o aço.
Durante um instante visitou-me um crepúsculo cuja profundidade
não me pertence.

Regressei. Regressei até onde os pais são cuidadosos e perseguidos
nos seus ossos,
mas não é este o armistício que eu comprei sobrevivendo-te.

Repito que agora és obsequioso e que me acompanhas ao espaço
onde as hortênsias são persistentes.
Mais adiante, nos desvãos, sinto um bramido de pombas: é um
país nupcial. Conheces tu a virtude das pombas pelos seus excrementos?


Naquele e neste tempo te recebo e só assim, olhando-me no teu
rosto, aquele que se manifesta através de uma membrana incorruptível,
não no furor que predicavam os teus dentes, embora me amasses
dentro de minha mãe.
Naquele e neste tempo te recebo e o meu desejo é alimentar-me
com a tua metálica bondade mas também dos aromas que te sobrevivem.

Senta-te no meio das ruínas, senta-te com doçura no meio ou à
beira das ruínas.
São nossas única propriedade e eu começo a distinguir algumas sementes e láudano e certos coágulos obedientes ao exercício da luz.




Desta paixão, dos provérbios posteriores à tua vertigem, do animal que chora e a sua piedade está sobre nós,
tu deduzirias lacre e colocá-lo-ias nos meus olhos, ou quiçá limaduras de níquel e outras matérias intoleráveis.
No entanto tu amavas a sumptuosidade das bandeiras no azul, por cima das tabernas.

Sabes o que é o esquecimento? que encontraste tu na reserva do
esquecimento?
Todos os ensinamentos se extinguiram como um carbureto no
fundo das galerias inacabadas;
todos os ensinamentos menos a palpitação do bosque e alguns vestígios teus nas minhas mãos.
O rio desce ainda e eu não sinto nada agora a não ser o cheiro da
água.
Os teus filhos e as minhas filhas submergem-se no rio e os que nao
esqueceram não se aproximam nunca porque seriam recebidos
e talvez entrassem nos seus corpos e morreriam.


Pensaste na paciência, pensaste na paciência semelhante a ónix, na
paciência escavando tumbas no som, abandonando teias aos ven-
tos que um dia chegarão, que chegarão depois das expulsões?


A cidade não está limpa; nos baldios há irritação e o cornelho e o
centeio coabitam e cresce um alimento que será comida dos
nossos filhos.

Eu não tenho esperança mas uma paixão cujo nome tu não me dirás.
Eu não tenho esperança mas uma paixão cujo nome não tocará os
teus lábios.


Cruzei a minha infância e países de morfina e largos bosques nos
quais descansei e grandes asas passaram sobre os meus olhos.
Nos lugares a que eu acudo ao entardecer há frutos muito espessos
dos quais faço colheita e os meus dedos são abrasados pelos
pirilampos porém eu faço colheita e demoro-me a acudir a outros lugares,
às alcovas onde minha mãe envelhece para lá da minha velhice.


E as palavras, febre debaixo das tégulas, grumos retrocedendo, fel
que enlouquecia debaixo do disfarce do sonho,
o que são, o que fazem em mim quando se extingui já a verdade?

Da verdade nada ficou mais que uma fetidez de notários,
uma lêndea lasciva, lágrimas, urinóis
e a liturgia da traição.

As hortênsias entendidas noutro tempo decoram a estância mais
acima do meu corpo.

Que lugar é este, que lugar é este? como estás ainda no meu co-
ração?



Antonio Gamoneda
Descrição Da Mentira
Quasi Edições, 2007
Tradução de Vasco Gato


A Música Que Toca Sem Parar:
do disco Trilhas, em que Zeca Baleiro dá a saber de suas composições geradas para adornar trilhas sonoras de filmes e peças teatrais, esta composição de Geraldo Espíndola: Cunhataiporã.

Onde você quer ir meu bem?
Diga logo pra eu ir também
Você quer pegar aquele trem

É naquele trem que eu vou também
É pra Ponta Porã
Cunhataiporã cherô rai rô

É pra Corumbá
É lá que eu vou pegar um barco
E descer o rio Paraguai cantando as canções
que não se ouvem mais (1X)

Pra onde você quer ir meu bem?
Diga logo pra eu ir também
Você quer pegar aquele trem

E naquele trem que eu vou também
É pra Ponta Porã
Cunhataiporã cherô rain rô

É pra Corumbá
É lá que eu vou pegar um barco
E descer o rio Paraguai cantando as canções
que não se ouvem mais (1X)

Pra onde você quer ir meu bem?!

Wednesday, October 27, 2010













Se terminar este poema, partirás. Depois da
mordedura vã do meu silêncio e das pedras
que te atirei ao coração, a poesia é a última
coincidência que nos une. Enquanto escrevo
este poema, a mesma neblina que impede a
memória límpida dos sonhos e confunde os
navios ao retalharem um mar desconhecido

está dentro dos meus olhos – porque é difícil
olhar para ti neste preciso instante sabendo que
não estarias aqui se eu não escrevesse. E eu, que

continuo a amar-te em surdina com essa inércia
sóbria das montanhas, ofereço-te palavras, e não
beijos, porque o poema é o único refúgio onde
podemos repetir o lume dos antigos encontros.

Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,
que apenas escreva até ao fim mais esta página
(que, como as outras, será somente tua – esse

beijo que já não desejas dos meus lábios). E eu, que
aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade
nos faz adultos para sempre, sei que te perderei

em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;
e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á
a última coincidência que nos une.



Maria do Rosário Pedreira


A Música Que Toca Sem Parar:
letra de Francisco Vianna e melodia de Luís Represas, que divide a canção com Pablo Milanés, um ídolo meu: FEITICEIRA.

De que noite demorada
Ou de que breve manhã
Vieste tu, feiticeira
De nuvens deslumbrada

De que sonho feito mar
Ou de que mar não sonhado
Vieste tu, feiticeira
Aninhar-te ao meu lado

De que fogo renascido
Ou de que lume apagado
Vieste tu, feiticeira
Segredar-me ao ouvido

De que fontes de que águas
De que chão de que horizonte
De que neves de que fráguas
De que sedes de que montes
De que norte de que lida
De que deserto de morte
Vieste tu feiticeira
Inundar-me de vida.




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Tuesday, October 19, 2010























Uma Crônica Para Isabella

Ela tem poucos minutos de vida, mas já realizou o que quase quatro décadas de experiências, euforias, conquistas, e pequenos desastres não conseguiram.
Ela ainda aprende a respirar fora da barriga da mãe, mas já mudou a vida de um homem cético, petrificado por casuísmos de uma existência marcada pelas mazelas da luta cotidiana.
Com apenas alguns minutos de vida ela o faz redescobrir um gosto pelo ofício de existir. E resgata nele o desejo da imortalidade.
Ela acaba de transformá-lo em pai.
Durante os nove meses de espera e inquietações esse pai a imaginou de tantas maneiras, menos desta com que veio.
Ela não tem os lábios dele, e nem o contorno do queixo da mãe.
Não se sabe a cor de seus cabelos – ainda envoltos em líquido amniótico –, e seus olhos permanecem fechados, estranhando a luz artificial do mundo exterior.
O médico diz que ela tem saúde perfeita. E isto é motivo de júbilo, de despreocupação.
A enfermeira que testemunhou seu nascimento reafirma o que ele registrou desde o primeiro momento em que a viu: sim, ela é linda.
Seu corpinho franzino, de face rosada e mãos minuciosas, ainda se espreguiça no berço estufa do Hospital St. Barnabas e ela não sabe do milagre que acaba de operar.
Ela chora pela primeira vez, e ele preocupa-se imediatamente, sem entender que esse choro foi despertado pela mudança súbita de universos.
Há menos de cinco minutos, estava protegida pela fortaleza do ventre materno.
Agora, está nua, fragilizada diante de um mundo simbolizado pela expressão confusa de seu pai.
E o choro novo que enche o ar da sala de parto é um aviso firme:
Preste bem atenção em mim, papai! Cheguei para te povoar!
Seus olhos abertos iluminam a encruzilhada existencial deste marinheiro de primeiríssima viagem, com a potência de um farol mostrando destinos a um barco no meio de uma tempestade.
Numa ordem inversa de coisas, é a filha que chega ensinando o pai.
É ela quem indica a estrada a seguir e sabe-se, de antemão, que já não existirá um atalho para o futuro.
Mudou tudo num segundo.
Encantamento, magia, esperança e responsabilidade substituem palavras de um dicionário que jamais será o mesmo.
E o pai também chora, tentando esconder detrás dos óculos de grau o inocultável.
Ele que não chorou na última derrota de seu time numa final de campeonato.
Ele que não se emocionou na perda de um tio, recentemente.
Ele que evita filmes melodramáticos por não lhes reconhecer serventia.
Ele que, consumido pela luta do pão de cada dia, às vezes se esquece de ligar regularmente para seus pais e pedir-lhes a necessária benção.
Ele, o auto suficiente.
Ele, o rei de um reino que gira em torno de seu umbigo.
Impassível, até aqui, esse senhor.
Incólume, imperturbável, esse cidadão.
Diante dos olhos deste homem impenetrável, revolve-se uma trajetória que está prestes a entrar num novo período de sua história.
E esta metamorfose vai tomando força, acontecendo lentamente, como uma borboleta saindo do intransponível casulo.
Esse homem, sou eu.
E Isabella, acaba de me fazer pai.
Não cabe em mim a alegria imensa que ela trouxe.
Trata-se de algo indescritível, por mais que eu tente colocar tudo em palavras.
Ainda estou na sala de parto e um turbilhão de indescritíveis emoções vai ganhando, cada vez mais, terreno em meu coração.
Não sei se rio ou se choro. E é tudo de alegria.
Um frenesi diferente de um grito de gol.
Um eu te amo mais profundo do que todos que eu já disse a qualquer mulher.
A meu pai ou a minha mãe.
Ou a quem quer que seja, ser animado ou inanimado.
Na noite de 27 de outubro de 2001, escrevi – a quatro mãos com Fabianne – minha grande crônica até aqui.
Meu melhor poema.
Minha grande letra de canção.
Na expressão serena desta criança que nasceu também de mim, sinto-me lívido, pacificado, a um passo de Deus.


A Música Que Toca Sem Parar:
Milton Nascimento, Benke... e um coral de curumins.















É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão
Sem a febre de tantos lábios,
Sem nenhum rumor de lágrimas
Nas pálpebras acesas.

Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

(Eugénio de Andrade )


A Música Que Toca Sem Parar:
dele e de Ronaldo Bastos, Celso Fonseca esmiúça a belíssima e triste O Tempo Não Passou.

Vou te escrever pra falar de new york
Não vim aqui esperar pelo fim do mundo
Estou feliz no postal de new york
E tudo mais e a saudade cortando o fundo
Quando acordo lá pra as três da madrugada
Sinto um anjo vir rondar meu cobertor
Colo a boca sobre a pele da vidraça
Sinto as mutações do tempo a meu favor
Não sou ninguém sem voçê em liverpool
Ou numa ilha dos mares do sul
Olho o relógio e as horas não passam por mim
Num cartão postal o tempo estacionou
Parou seu carro no drive-in
Pra nós o tempo não passou!

Friday, October 1, 2010



















Antes a vida que estes prismas sem espessura mesmo se as cores são mais
puras
Antes ela que esta hora sempre enevoada estas terríveis carruagens de
labaredas frias
Estas pedras sorvadas
Antes este coração engatilhado
Que este charco de murmúrios
Este pano branco a cantar ao mesmo tempo na terra e no ar
E esta benção nupcial que une o meu rosto ao da total fatuidade
Antes a vida

Antes a vida com os seus lençóis de esconjuro
As suas cicatrizes de fugas
Antes a vida antes esta rosácea no meu túmulo
A vida da presença só da presença
Onde uma voz diz Estás aí outra responda Estás aí
Eu pobre de mim não estou
E mesmo quando jogarmos ao que fazemos morrer
Antes a vida

Antes a vida antes a vida infância venerável
A faixa que parte dum faquir
Parece o escorregadouro do mundo
Não importa que o sol não passe de um destroço
Por pouco que o corpo da mulher se lhe compare
Pensas tu ao contemplar a extensão da trajectória
Ou tão-só ao fechar os olhos sobre a tormenta adorável que se chama a tua
mão
Antes a vida

Antes a vida com as suas salas de espera
mesmo sabendo não ir entrar nunca
Antes a vida que estas estâncias termais
Onde o serviço é feito por coleiras
Antes a vida adversa e longa
Quando aqui os livros se fecharem sobre estantes menos suaves
E lá longe fizer mais que melhor fizer livre sim
Antes a vida

Antes a vida como fundo de desdém
A esta cabeça já de si tão bela
Como antídoto da perfeição aspirada e temida
A vida a maquilhagem de Deus
A vida como um passaporte virgem
Ou uma vilória como Pont-à-Mousson
E como tudo foi dito já
Antes a vida

André Breton


A Música Que Toca Sem Parar:
de Gero Camilo e Kleber Albuquerque, na voz goiana de Rubi, Astrolábios.

Arde-me o siso
Coração ungido a ferrolho
Arde-me entorpecido
Vil vão
Novamente novo

Como nunca pode ser um outro
Uma lágrima na lapela
Paz de espírito
Ontem eu lamentei demais
Por mãos que me jogaram
Nesse espaço de astrolábios
Hoje aprendi como
Se voam as mãos
Como se vão
Como carvão nos lábios

O homem tem de voar
Enquanto cai
Tem de alcançar
E vai