Sunday, March 25, 2012

Uma Canção Para Vó Glória

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Não vi que ela chegara de surpresa, momentos antes de eu emitir aquele sonoro palavrão.
Coisa corriqueira, uma dessas bobagens de trabalho, em que a pressão do “dead line” acaba levando a melhor sobre o bom senso e a razão.
O telefone tocava insistentemente e ninguém atendia.
E eu, que dava os retoques finais num texto qualquer, fui perdendo gradativamente a concentração e a paciência.
Visivelmente - leia-se audivelmente - irritado, gritei de minha sala:
- Atende essa porra aí…
Segundos depois, quando saio da sala para buscar um café, a cara quase caiu no chão, tamanha a vergonha.
Dona Glória estava lá, quietinha, sentada numa posição característica de “vó” (as pernas cruzadas, uma mão sobre o joelho e a outra mão postada em cima), com cara de quem estava fazendo de conta que não havia testemunhado tamanha grosseria.
Bem feito, terão pensado meus colegas de trabalho. Bem feito!
Fiquei desconcertado.
Extremamente desconcertado.
Mas fui lá, e fizemos as apresentações formais.
Dei-lhe um abraço, ganhei outro. Muito mais fundo. Um abraço maior.
No abraço de avó Glória veio o abraço de todas as avós do mundo e uma esperança de que meu dia iria mudar.
Que minha vida iria mudar.
E eu, aquele sujeito estressado que acabara de cometer uma enorme grosseria, senti-me perdoado ao ser abraçado por ela.
Senti na hora que não iria para o paredão.
Que não iria para o pelourinho.
Que não haveria cadeira elétrica, prestação de serviço comunitário ou outro degredo qualquer.
E que meu destempero havia sido compreendido, embora tudo ali tivesse sido devidamente registrado na caderneta de más-ações.
Não cheguei a pedir desculpas, creio eu. Bad boy!
Aquele nosso abraço, que durou alguns segundos e pareceu eternizar-se como uma das coisas boas dessa vida, transpôs-me a um lugar bonito, muito distante dali.
No abraço de vó Glória veio uma sopa de legumes num dia de gripe e febre.
Veio uma bandeja de quindins, brigadeiros e biscoitos de polvilho.
Veio um embrulho colorido com o meu nome escrito, sob uma árvore de natal.
Veio um dia ensolarado.
E um entardecer vermelho, com o sol se derretendo, lentamente, nas águas claras do rio.
Veio o som de um radio ao longe, na hora do ângelus, tocando a Ave-Maria.
Veio a lembrança de um bichinho de estimação que bem poderia ser um coelho branquinho, de olhos encarnados; um gato rajado ou um cãozinho vira-latas, daqueles que nos seguem o tempo inteiro e se deitam ao pé da cama.
Veio a imagem de um campinho de futebol, de gramado verdinho e traves feitas de bambu, com um monte de meninos pretos e brancos e pardos correndo atrás de uma bola alaranjada.
Veio a algazarra de crianças na hora do recreio.
E o canto de uma cigarra.
Veio um carrinho de rolimã desembestado descendo a rua, um embornal recheado de bolinhas de gude, um peão e um ioiô.
Veio um pé de fruta, carregado de delícias de toda cor.
Pitangas vermelhas, cajus amarelos, laranjas douradas.
Carambolas. Jambos. Graviolas. Pequis. Mangas. Cajás.
No abraço dela veio um ‘corguinho’ cheio de lambaris e carás, mandis, traíras, cascudos e piaus.
Veio uma árvore apinhada de passarinhos, canários-do-reino, tizius, sanhaços e bentevís.
Veio o telhado de uma igreja coalhado de andorinhas.
E um solo de curió.
Veio uma estrada de chão cortando a paisagem, e um Jipe Rural em plena trajetória, levantando a poeira.
E veio também uma chuva de verão, respingando tudo, renovando a vida e deixando no ar a fragância de terra molhada.
No abraço de vó Glória veio a primeira comunhão e a roupa nova, a camisa de tergal ainda com cheiro de loja, a calça-curta, o sapato “colegial” e a meia branca até o meio da canela.
Veio também o primeiro dia na escola. E um sorriso orgulhoso no dia da entrega do diploma do curso primário.
Veio um almoço de domingo, em família, com direito a macarronada, frango de “televisão de cachorro”, maionese, e uma soneca coletiva.
No abraço de vó Glória veio ainda uma blusa de lã, que ela mesma teceu, absolutamente compenetrada, gangorreando numa cadeira de balanço.
Veio também a esperança de que eu viesse a ser, no momento certo, e apesar de todas as carências e deficiências, um homem bom.
Um homem que soubesse pedir desculpas.
Que soubesse pedir perdão.
E é o que tento fazer até aqui.
É essa a intenção, apesar de todo o atraso, nessa crônica-pedido-de-desculpas.
Vó Glória, desculpa! Foi mal.
Desde aquele dia, tenho procurado me comportar melhor.


A Música Que Toca Sem Parar:
Caetano Vleoso e Nicinha, dele, Alguém Cantando


Alguém cantando longe daqui
Alguém cantando longe, longe
Alguém cantando muito
Alguém cantando bem
Alguém cantando é bom de se ouvir
Alguém cantando alguma canção
A voz de alguém nessa imensidão
A voz de alguém que canta
A voz de um certo alguém
Que canta como que pra ninguém
A voz de alguém quando vem do coração
De quem mantém toda a pureza
Da natureza
Onde não há pecado nem perdão

Wednesday, March 21, 2012

Al Berto, grande poeta português

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16 de Janeiro (1985)

em tempos li muitos livros, hoje raramente leio. os livros cansaram-me, devoraram-me a pouco e pouco o prazer de ler.

o vento da noite traz imagens: um rapaz em calcário deitado no dorso dum cavalo azul perfura a claridade do mar. abro a janela do sonho, aceno-lhe, mas ele não me pode ver.

uma ave de palavras escreve no espaço a remota sabedoria do voo, depois desce e vem pousar suavemente na palma da mão. olho-a mas não ouso tocar-lhe.

acordo quando a ave e o rapaz se deitaram sobre a pele. abro os olhos e estendo a mão e o corpo para fora do sono, ergo-me por dentro do imenso vazio.

tudo se despedaçou. o sonho , e o amor que é sempre tão breve. o mundo dorme sob o vento. só eu continuo acordado, em vigília. se houvesse agora uma catástrofe eu daria por ela. levantar-me-ia daqui para encarar a morte, dizer-lhe que são inutilidades o que arrasta consigo.

estou gasto. dei-me sempre mais do que podia. não há nada que me possam roubar, sou um homem espoliado de todos os bens, de todas as doenças, de todas as emoções. sou um corpo pronto para a viagem sem regresso, para o crime e para a morte. sou um corpo que se evita, um homem cujo nome se perdeu e cuja biografia possível está no pouco que escreveu. sou um corpo sem nacionalidade, pertenço às profundidades dos oceanos, ao voo da ave migrante. sou um alfabeto e não sei se terei tempo para me decifrar.

lá fora anoiteceu.

são raras as claridades que do meu sangue sobem ao rosto. há um lume invisível no teu olhar, uma visão que o espelho me revela: cintilam cristais enquanto dormes, uma árvore cresce nos pulmões. assim construo as paisagens, assim te ofereço a morada de sossego e de prazer. mas tu não vens, porque me és exterior. posso criar o universo inteiro a partir das minhas células, só não posso criar-te a ti, corpo que morre na falsa juventude dos espelhos...

... a paixão revelou-se-me no instante em que percebi que sabia quase tudo da vida, mas já não foi possível perder-me na tentação do suicídio. nunca amei e nunca fui amado: ignoro se isto é verdade, o mais provável é ter inventado, um dia, esta mentira, unicamente para me salvar.

que horas serão para lá deste século?

onde estaremos neste momento?

estarei eu em ti ou serás tu que me devoras e me comoves?


... teu nome, pronuncia teu nome para que seja impossivel esquecer-me do meu. diz-me o teu nome de ontem, quando éramos o reflexo exacto um do outro. toca-me o rosto com o teu nome, ou pousa-o sobre as mãos; debruça-te para dentro de mim e deixa que o segredo do tempo fulmine os ossos.



Al Berto
In: O Medo


A Música Que Toca Sem Parar:
de Celso Adolfo e na voz de Renato Braz, Trentina.

Rovereto, Ouro Preto, um camim, meio do mato
Piedade, o capim, nove horas tem missa
cadê seu missal, Zizinha, Joaquim?

Já vai dar seis horas, a mesa tá posta
Virgílio aponta a beleza da encosta
e na gente a imensa paixão

Castelos, assombros e mais estações
troféus de caçada, muro, monções
'que alma no mundo é sem senões?'*

O olhar de Sofia
nem imagina, nem desconfia
quanto ela provocou da minha frágil paixão

Dudu, seu irmão, menino de colo
eu sei, foi Apolo o deus que lhes deu
esse olhar claro e quente que me ganhou

Um lobo saiu do Caraça
e passa voando tirando um fino
o meu coração trentino é um cafarnaum

Admirei maçãs no caminho do Castelo Thun
aonde eu cantei mais tranqüilo
e sereno do que pensei

Vi a fôrma da hóstia que o bispo benzeu
a cisterna, a uva, a memória no breu
telhado e telhas que a chuva torceu

Falaram de um verso latino que é feito
de um espondeu e dois coriambos
e um jambo que o tempo colheu e comeu

Vê-se que o tempo ali desistiu
sob tábuas, túneis, tonéis e barril
fundição, mulheres, véus e funil

Passei a ponte, subi a torre
do Castelo Thun, pensei minha vida
eu era sozinho, eu era nenhum

A capela, o século quase comeu
umas pedras, o século treze engoliu
tinha gente que o século não demoliu

Era eu na janela com olhar de jejum
eu e Gilson e Beppo, Antonello e mais um
era nós e Francisco no Castelo Thun.


* Do poema "Castelos, estações" de Rimbaud.

Friday, March 16, 2012

Dois Poemas de António Ramos Rosa



















Não Posso Adiar o Amor


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o rneu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração



in "Viagem Através de uma Nebulosa"




Poema dum Funcionário Cansado



A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
tranformá-la num pão
tranformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra




A Música Que Toca Sem Parar:
a inesquecível Cesária Évora, Sodade.


Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Quem mostra' bo
Ess caminho longe?
Ess caminho
Pa São Tomé

Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau

Si bô 'screvê' me
'M ta 'screvê be
Si bô 'squecê me
'M ta 'squecê be
Até dia
Qui bô voltà

Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra Sao Nicolau

Monday, March 12, 2012

Bouganville Vermelho





















(meu primeiríssimo conto, escrito em 7 de março de 2012)



Eu achava o bouganville a flor mais bonita deste mundo.
Olhava por cima dos muros das chácaras e casas da zona sul e tinha até uma ponta de inveja.
Eu não invejava as casas, grandes e arejadas.
Os muros é que me fascinavam.
Eu sempre quis ter um muro assim: caiado de branco, florido, como o daquelas casas da zona sul.
Mas meu marido não gosta de planta que só dá flor.
Meu marido gosta de planta que dá fruta.
E é por isto que, quando compramos a chácara na periferia, ele ficou um homem mais feliz.
Todos os dias ele se levanta bem cedinho, dá de comer às galinhas e ao pato Genésio, alimenta os cachorros, pega a enxada e vai pra capina.
Chega terra no pé das verduras e hortaliças, aduba com esmero, conversa com as plantas,acaricia troncos e folhas, todo carinhoso.
Às vezes, acho que meu marido gosta mais de planta do que de gente.
E as plantas também gostam dele. Afinal, tudo o que ele planta cresce e frutifica.
Que o digam as mangueiras, os limoeiros, o abacateiro ao lado da varanda e todas as outras árvores frutíferas que ele plantou como se construísse uma cidade.
Até a pitangueira gosta dele.
Meu marido tem a mão boa.
Ele é um homem fértil.
Um homem que me deu os dois filhos, que a vida tocou para bem longe de nossa casa.
Bernardo, o mais velho, mora no estrangeiro.
O mais novo vive em São Paulo e trabalha numa construtora que faz estradas e pontes.
Todos os anos eles vem nos visitar.
Há dois anos me queixei com Bernardo de que o pai dele não me deixava plantar flores no terreno.
No mesmo dia, Bernardo passou no horto florestal e comprou uma muda de bouganville vermelho.
Mal chegou em casa, pediu ao pai que a plantasse rente ao muro.
Um pouco confuso e a contragosto, o pai lhe perguntou que fruta era aquela, que ele não conhecia.
E o nosso filho respondeu: bouganville. Uma fruta que se come com os olhos.
Meu marido plantou a muda no lugar recomendado, e rapidamente ela já era uma árvore feita.
A planta cresceu escalando o muro e, no ano seguinte, ja sangrava a paisagem de uma maneira tão bonita, que eu gostava de sair para fora da propriedade só paravê-la em toda a sua glória e esplendor.
Encarnada como o batom de uma atriz, esparramava-se por boa parte do muro, sangrando a visão de quem viesse descendo a rua.
Na madrugadade ontem, no entanto, escutei dois pipocos.
Dois estampidos bem pertinho de nossa casa. E um carro que saiu cantando pneu.
Acordei assustada.
Meu marido, que tem o sono muito pesado, continuou dormindo.
Os cachorros da casa começaram a latir. Assim como os cães das casas vizinhas.
Dali a pouco tudo serenou.
Os latidos cessaram e o único barulho que se ouvia era o dos caminhões rodando, furiosos, na Fernão Dias.
Mal o dia clareou, pude ouvir, do lado de fora, um burburinho.
Marilda, a vizinha da casa em frente, gritava de dor, como se lhe retalhassem a pele com uma faca bem afiada.
Abri o portão e saí para a rua.
Na calçada de minha casa, um grupelho se aglomerara.
Duas vizinhas tentavam controlar Marilda, que descabelara-se e parecia querer se livrar de seu vestido verde-pantanal.
Marilda chorava e gritava.
Trocava de mal com Deus.
Praguejava.
Ao pé do muro de minha casa, debaixo do bouganville que meu filho me deu, o filho de Marilda jazia com dois buracos de bala.
Um na testa.
Outro no peito.
E doeu em mim, aquele vermelho do bouganville que escorria pelo muro.
Doeu mais ainda o vermelho do sangue de Fernando, filho de Marilda.
Os filetes,agora de um vermelho-escuro, quase vinho, praticamente secaram desde a hora em que ele caíra ali, algumas horas antes, sem que ninguém desse por conta e lhe socorresse.
"Foi dívida de tráfico", ouvi alguém dizer.
Meu marido finalmente saiu à porta, olhou a cena e voltou para dentro de casa,rapidamente.
Fui atrás.
Vi quando ele foi ao quartinho onde guarda as ferramentas, saindo de lá com o machado.
Passando por mim, na porta da cozinha, murmurou, raivoso:

- Não gostei da fruta que a sua planta deu.



A Música Que Toca Sem Parar:
Alceu Valença roubou a imagem de um flamboyant sangrando na tarde e a fez caber em sua bela toada Chuvas de Cajus.


Ela virá no verão
Com as chuvas de cajus
Os flamboyants estão sangrando
Nessas tardes tão azuis

Pastores da noite
Meu São Jorge amado
Livrai-me do ódio
Dos apaixonados
Pastores da noite
Meu São Jorge amado
Livrai-me do ódio
Dos abandonados

Wednesday, March 7, 2012

A verdadeira cidade eterna

.


















Ultimamente tenho tentado me reaproximar de Governador Valadares.
Sempre amei Valadares, cidade em que passei 17 felizes anos de minha vida. Há muito que não apareço por lá.
Meu medo é o de que aquele lugar que cresci amando, já não exista mais.
Algo como um amor da adolescência que você reencontra, muitos anos depois, casada, maltratada, mãe de cinco filhos, esperando a condução num ponto de ônibus. Não, ainda não aconteceu comigo.
A Valadares da minha saudade tinha coqueiros beira-rio, ingazeiras, mangueiras onde se colhia frutas de ouro, suculentas e doces.
Em São Raimundo - o bairro que me viu crescer -, as ruas tinham nome de pedras.
Os poetas Abel Costa e Bispo Filho moravam na Esmeralda. O meu pouso era na Topázio e os amigos de futebol, Marquinhos, Ney e Wellington Mingau viviam na Turmalina.
Joguei bola na Granada, quase namorei uma moça na Ametista, corri da polícia na Safira.
Nada grave, apenas um bando de meninos pulando a cerca de uma chácara alheia para apanhar carambolas, jambos, jenipapos e pitangas.
Na minha Valadares tinha campinhos e os varzeanos Ibituruna, Democrata, Pastoril, Copevale, Covepe, Santa Helena, Everest e Vermelho 27.
O rio, que ainda hoje atende pelo mesmo nome, Rio Doce, tinha margens verdes, prainhas, remansos, corredeiras, e peixes de ouro e prata.
Tinha piau, tucunaré, timburé, corvina, lambari, bagre e tantos outros tipos de peixe, que eu precisaria de uma crônica inteira para tarrafeá-los.
Na cidade que resiste em minha emoção como oitava maravilha do mundo, tinha uma pracinha e uma fonte de onde jorrava uma cascata luminosa que mudava de cor.
Tinha banquinhos de cimento onde casais namoravam sem medo de assalto; tinha ainda um pipoqueiro e meninos sem camisa carregando caixas de isopor entoando o bordão: Aê o picolé! Aê a laranja!
Tinha castanheiras frondosas espalhadas às margens das estradas, ypês amarelos e roxos aos pé da serra e flamboyants que sangravam no verão.
Na Valadares - que não morrerá jamais - existia uma santa que nos abençoava do alto do pico do Ibituruna, braços sempre estendidos, sorriso enigmático como se anunciasse chuvas.
Minha cidade eterna tinha personagens igualmente eternos, como o ceguinho Olé.
Reza a lenda que Olé teria ganho na loteria mais de uma vez, mas que continuava a esmolar pelas ruas por puro prazer.
É a mesma cidade de Adriano Dias da Silva, o Casca Grossa, lenda do radio, uma espécie de celebridade local e que acabaria se elegendo vereador.
Cidade de Beto Tranca-Rua, repórter esportivo que também acabaria enveredando pela política, mesmo caminho escolhido por Júlio Tebas Avelar, homem que inventou o colunismo social nos jornais da cidade e que hoje colhe bonanças.
Naquele lugar que não morre nunca, jovens de ambos os sexos se amontoavam nas proximidades do cine Pio XII para tomar sorvete, comer cachorro quente e flertar nas noites calorentas de sábado.
Naquela cidade em que cresci, os vizinhos eram vizinhos de verdade, uma espécie de extensão da família.
Muito mais do que receitas de bolo e fofocas do cotidiano, trocavam gentilezas que iam desde um pouco de pó-de-café a uma caneca de açúcar, quando a lata da casa de alguém ficava vazia antes do combinado.
Viravam compadres, apadrinhavam filhos uns dos outros, casavam os filhos de uns com os dos outros, consolavam-se nas tristezas, ficavam felizes nas alegrias.
Naquele lugar tinha leilão de gado e barraquinhas no parque de exposições agro-pecuária, festa junina com bandeirolas coloridas, quentão, canjica, batata doce e fogueira no pátio da igreja.
Minha cidade eterna tinha quadrilha, dias de chuva e sol, sol e chuva, e casamento de viúva.
Também tinha quermesse e novena, um padre que nos ‘passava o sabão’ e um serviço de alto-falantes que despejava Roberto Carlos, Wanderléa e Wanderlei Cardoso sobre nós.
Tinha passarinhos nos quintais: tizís, rolinhas, canários do reino, curiós, andorinhas e cuitelinhos, que muitos chamavam de beija-flor. E tinha muito mais.
Na Governador Valadares do meu coração tinha cantos encantadores em todos os cantos, e tantas outras maravilhas, que fizeram de mim esse homem estranho, que passa o resto de sua vida correndo atrás do menino e do rapaz feliz que foi.



A Música Que Toca Sem Parar:
o hino (o verdeiro hino) de Governador Valadares é este aqui, composto por Zé Geraldo. Dele e com ele, Rio Doce.


Deposito em suas águas meu grande segredo
Parto pra cruzar fronteiras, engrossar fileiras

Compor meu enredo
Deixo suas margens ricas sob a sombra lírica da Ibituruna
Una, pobre sabiá que perdeu seu canto de frases ligeiras

Por ver se apagar a ilusão ardente
Tão inconseqüente da paixão primeira

Oh! Meu Rio Doce, doce são os seios da morena flor
Cor do seu Ipê
Que vive sob as gameleiras, pés de jenipapo

Junto de você
Leva essa morena no seu leito manso
Faz o seu remanso se vestir de azul

Que eu tô levando a minha mocidade
Pras velhas cidades e praias do sul
Tô levando a minha mocidade pras velhas cidades
E praias do su..ul

Oh! Meu Rio Doce, doce são os seios da morena flor
Cor do seu Ipê
Que vive sob as gameleiras, pés de jenipapo

Junto de você
Leva essa morena no seu leito manso
Faz o seu remanso se vestir de azul
Que eu tô levando a minha mocidade

Pras velhas cidades e praias do sul
Tô levando a minha mocidade pras velhas cidades
E praias do su..ul

Que eu tô levando a minha mocidade
Pras velhas cidades e praias do sul

Saturday, March 3, 2012

Dois Poemas de Vasco Gato e uma canção portuguesa
























Um dizer ainda puro



imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.


dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.


diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.



in
Um Mover de Mão,
Assírio e Alvim, 2000.


***


A tarde despedaçou-se
e nunca houve outro anseio
senão esta claridade sem sol,
a lenta supressão de uma morada.
Espiamos as naves que se soletram
a ouvido nenhum,
tocando um do outro
os dedos mais
sinceros.

Estamos prontos para singrar
na noite do nosso
desassossego.


[in Napule, Tea for One, 2011]



A Música Que Toca Sem Parar:
da lavra do mestre Sérgio Godinho, a magistral Definição do Amor.

"Amor é fogo que arde sem se ver
é ferida que dói e não se sente
é um contentamento descontente
é dor que desatina sem doer"
(Camões)

Que o poeta de todos os poetas
me conceda boa estrela
que a estrela de todos os astros
me premeie na lapela
prémios de honor
prefiro os muitos
oferecidos pelas mãos do amor
coroando o amor e os seus heterónimos
nem vão caber nos Jerónimos

Amores anónimos não há
e assim foi pela madrugada
mesmo que seja um "assim fosse"
vou nomear-te namorada
ninguém já soube o que é o amor
se o amor é aquilo que ninguém viu
uma cor que fugiu
e pairou serena e breve
no ar
(Pousa agora, borboleta na pena deste poeta:)

É uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá cor
é uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá na cor
mas é uma batalha perdida
que se trava com ardor
é uma cor que dá na vida
o amor
dor que desatina sem doer

Se devagar se vai ao longe
devagar te quero perto
mesmo que o que arde nunca cure
vou beijar-te a sol aberto
é já dos livros que o instante
se parece tanto com a eternidade
e que o amor na verdade
só se cansa de ti
se de ti mesmo te cansas

Mordidas mansas, emoções
suspiros, densos, afagares
liberto das definições
o amor define os seus lugares
ilhas desertas até ver
ver o sol, a chuva
o arco do corpo
arco-íris, corpo a corpo
cara a cara, cor a cor
incandescendo o olhar
(Pousa agora, borboleta
na pena deste poeta:)

É uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá cor
é uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá na cor
mas é uma batalha perdida
que se trava com ardor
é uma cor que dá na vida
o amor
dor que desatina sem doer

E ao pôr o dedo nas feridas
que supúnhamos curadas
provas de fogo atravessamos
no mar alto festejadas
não se controla o inesperado
nem se diz o indizível do amor
uma cor que fugiu
de um pano leve
e pairou serena e breve
no ar
(Pousa agora, borboleta
na pena deste poeta:)

É uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá cor
é uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá na cor
mas é uma batalha perdida
que se trava com ardor
é uma cor que dá na vida
o amor
dor que desatina sem doer