Tuesday, May 24, 2011

E o mundo acabou não acabando




















Muito se falou, muita gente ficou esperando a chegada de Cristo para o julgamento final, mas ficou tudo na base do dito pelo não dito e a vida continuou.
O que você fez, enquanto esperava o mundo acabar?
Não acreditou e ficou na sua, tocando o o seu dia?
Ou ficou ressabiado, meio que duvidando, meio que acreditando?
Conheço uma moça que foi ao cabeleireiro e vestiu roupa de baile de gala para o encontro com o Senhor.
Ela pintou as unhas de encarnado, gastou tanto laquê que destruiu metade do que resta da camada de ozônio no penteado, enfiou-se num longo vermelho, justíssimo, e subiu nuns salto-altos de fazer inveja a uma atriz de Hollywood.
Como se não bastasse, pintou a boca de batom: rubra flor, escandalosa cereja.
Outro amigo meu, lá na Bahia, fez sua última ceia.
Ele tomou umas cervejas, entupiu-se de acarajé e vatapá, acendeu um cigarrinho do capeta e se deitou numa rede e ficou ali, de butuca.
De minha parte, garanto que não acreditei nas previsões do pastor Harold Camping, mas a obrigação de jornalista falou mais alto.
Sintonizei a CNN lá pelas 4 da tarde e fiquei aguardando, horas a fio, quase achando que assistiria ao vivo e a cores, a chegada do nosso momento final. E estava cheio de dúvidas.
Seria uma espécie de Big Brother em que todos sairiam da casa e ninguém ganharia um milhão?
Seria um novo Armagedon?
Seria como num filme de ficção científica de Spielberg, ou como uma novela das oito?
Seria uma explosão nuclear?
Um tsunami?
Um carnaval?
Um pregão da Bovespa?
Um gol do Bangu?
Fui dormir bem tarde, extenuado, frustrado e vencido pelo impiedoso cansaço. Na manhã seguinte, no outro extremo da cama, minha mulher dormia o sono mais justo.
Levantei, desconfiado, fui até a janela do quarto, pé ante pé e olhei pela greta da veneziana: sim, estava tudo no mesmíssimo lugar.
Consegui escutar a algazarra da passarinhada fazendo festa e um caminhão barulhento, queimando óleo diesel numa rua adjacente.
Desci, fiz café, pratiquei os gestos universais de todo o ser humano e pus-me a pensar.
Não, nada mudou.
Mas poderia ter mudado.
Já imaginaram se a humanidade encarasse essa nova manhã como uma segunda oportunidade?
Já imaginaram se cada pessoa que vivesse neste planeta resolvesse, de comum acordo, mudar tudo?

- Sim, o mundo acabou. Mas vamos reconstruir um outro novinho em folha. Vamos passar a humanidade a limpo!

Seremos nós, homens e mulheres do planeta, os criadores deste novo lugar.
Nunca mais seremos homem-lobo-do-homem.
Nunca mais seremos canibais de nós próprios.
Seremos uma extensão de Deus - qualquer Deus! - e todos os credos serão respeitados.
Todas as raças. Todas as cores.
Desaparecerão os tiranos, os truculentos e os vendedores da salvação.
Será um lugar melhor, mais justo, tolerante e sem desigualdades.
Um lugar em que as palavras fome e guerra serão apagadas do dicionário.
Deste mesmo dicionário desaparecerão também o preconceito, a ganância e a violência.
Leveza, generosidade, gentileza, cordialidade e solidariedade virarão verbos.
Neste novo mundo, homem e mulher serão iguais.
Será um lugar em que crianças e idosos serão respeitados e cuidados.
Um lugar em que a vida será preservada acima de tudo e terá valor superior ao de qualquer comodidade de mercado.
Vida valendo mais que petrodólares, mais que qualquer ação de Wall Street.
Mais que ouro. Mais que prata. Mais do que qualquer vil metal.
Neste novo mundo sem fronteiras e de bandeira única, a consciência ecológica e o respeito aos direitos humanos serão praticados com a naturalidade dos que respiram o ar mais puro.
E cada cidadão será livre para pensar, se expressar e se ser.
Já imaginaram se o mundo – esse novo mundo! – estivesse apenas começando...
Já imaginaram?


A Música Que Toca Sem Parar:
O Dia Que a Terra Parou, de Caulio Roberto e Raul Seixas, na voz do maluco beleza Raul Seixas.


Essa noite eu tive um sonho
de sonhador
Maluco que sou, eu sonhei
Com o dia em que a Terra parou
com o dia em que a Terra parou

Foi assim
No dia em que todas as pessoas
Do planeta inteiro
Resolveram que ninguém ia sair de casa
Como que se fosse combinado em todo
o planeta
Naquele dia, ninguém saiu saiu de casa, ninguém

O empregado não saiu pro seu trabalho
Pois sabia que o patrão também não tava lá
Dona de casa não saiu pra comprar pão
Pois sabia que o padeiro também não tava lá
E o guarda não saiu para prender
Pois sabia que o ladrão, também não tava lá
e o ladrão não saiu para roubar
Pois sabia que não ia ter onde gastar

No dia em que a Terra parou
No dia em que a Terra parou
No dia em que a Terra parou
No dia em que a Terra parou

E nas Igrejas nem um sino a badalar
Pois sabiam que os fiéis também não tavam lá
E os fiéis não saíram pra rezar
Pois sabiam que o padre também não tava lá
E o aluno não saiu para estudar
Pois sabia o professor também não tava lá
E o professor não saiu pra lecionar
Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar

No dia em que a Terra parou
No dia em que a Terra parou
No dia em que a Terra parou
No dia em que a Terra parou

O comandante não saiu para o quartel
Pois sabia que o soldado também não tava lá
E o soldado não saiu pra ir pra guerra
Pois sabia que o inimigo também não tava lá
E o paciente não saiu pra se tratar
Pois sabia que o doutor também não tava lá
E o doutor não saiu pra medicar
Pois sabia que não tinha mais doença pra curar

No dia em que a Terra parou
No dia em que a Terra parou
No dia em que a Terra parou
No dia em que a Terra parou

Essa noite eu tive um sonho de sonhador
Maluco que sou, acordei

No dia em que a Terra parou.

Sunday, May 22, 2011

3 Poemas de Mia Couto

.













Fui Sabendo de Mim

Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia


in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas



Destino

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?


in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas




Para Ti

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida


in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas


A Música Que Toca Sem Parar:
da terra de Mia Couto, Moçambique, fomos buscar a belíssima Nwahulwana (tocando aqui pela terceira vez), de Humberto Carlos Benfica e sua Orchestra Marrabenta Star.

Tuesday, May 17, 2011

Uma voz soprando ao meu ouvido

.















Sempre vai aparecer alguém dizendo que escutou uma voz divina assoprando ao seu ouvido, antes de uma guinada em sua vida.
Isto não vem de hoje e se manifesta de diferentes maneiras.
Imagino que os estudantes Eric Harris e Dylan Klebold, perpetuadores do Massacre de Columbine tenham escutado vozes.
O mesmo aconteceu com José Datrino, personalidade urbana carioca, que perdeu toda a sua família num incêndio do Gran Circo Norte- Americano, ocorrido no dia 17 de dezembro de 1961.
No dia seguinte ao incêndio que culminou com a morte de cerca de 500 pessoas, José acordou alegando ter ouvido "vozes astrais" - segundo suas próprias palavras -, que o mandavam abandonar o mundo material e se dedicar apenas ao mundo espiritual.
Foi assim que ele se transformou no Profeta Gentileza, personagem que inicialmente fazia pregações de cima de um caminhão, mas passou a fazer inscrições pacíficas sob o viaduto de Santa Tereza.
Cabelos e barbas longos, vestido sempre com uma túnica branca, tornou-se uma lenda na cidade do Rio de Janeiro.
"Gentileza gera gentileza" é a sua frase mais conhecida.
Este pode ser o caso de Harold Camping, líder de um ministério evangélico independente chamado Family Radio Worldwide, com sede na cidade de Oakland, Califórnia.
Ele leu o novo testamento, fez a sua interpretação e chegou à conclusão de que Jesus está chegando - no que escrevo esta crônica - daqui a quatro dias.
Sob a sua orientação foram espalhados milhares de outdoors pelas estradas do país, pôsteres em paradas de ônibus e postes.
E a mensagem é inequívoca: neste 21 de maio, seremos todos réus.
Este será o dia do grande julgamento e, sabemos, é larga a porta do inferno.
Fiz as minhas contas e meu caso não tem solução.
Quatro dias é muito pouco para eu me redimir, me purificar ou recomeçar.
Tenho pecados demais em minha conta corrente.
Abusei do corpo - este templo a mim presenteado - e tive pensamentos impuros que não cabem na palma da mão.
Bebi, fumei, praguejei, comi além do que deveria, cobicei, tive momentos de vaidade e cólera.
Menti para salvar a pele e tenho no currículo inúmeras mentirinhas comerciais.
Fiz uma ou outra coisinha boa que podem amenizar a minha pena, mas tenho consciência de que as agravantes são maiores que as atenuantes. Afinal, a mão da justiça divina é pesada e justa.
Só me resta esperar a passagem destes próximos quatro dias tentando corrigir algumas coisas, procurando realizar o que não realizei nestes últimos 48 anos.
Quero conhecer a Andaluzia e escutar flamenco tomando um porre de cidra.
Quero ficar sem ar em Matchu-Pitchu.
Quero celebrar mais um campeonato brasileiro vestindo o azul do meu glorioso Cruzeiro Esporte Clube.
Quero uma casa no campo e aprender a tocar violão.
Quero andar sobre patins.
Quero dançar um tango no Caminito, em Buenos Aires.
Quero voltar a escrever poesia e publicar um livro.
Quero fazer uma dieta e emagrecer oito quilos.
Quero caber dentro de um terno.
Quero a oportunidade de falar aos congressistas de Washington, da necessidade de se aprovar uma lei de imigração com urgência urgentíssima.
Argumentarei por aqueles que não veem pai e mãe há muitos anos, porque sabem que se forem, não conseguirão voltar para prosseguir na labuta diária por um pedaço de pão.
Defenderei os que não conseguem trabalhar porque não podem conduzir livremente pelas ruas do país.
Pleitearei pelas famílias que ficaram divididas, rachadas ao meio por deportações.
Falarei do terror proveniente do medo das cada vez mais constantes batidas do Ice.
Falarei do medo maior que a vontade de ser de ser feliz, de cada um dos imigrantes indocumentados.
Falarei da voz que sopra ao meu ouvido – agora -, a menos de quatro dias antes do fim.
E é a mesma voz que murmura ao ouvido de milhões de pessoas, que merecem dignidade e liberdade, como um desígnio de Deus.



A Música Que Toca Sem Parar:
Gentileza, letra e música de Gonzaguinha.

Feito louco
Pelas ruas
Com sua fé
Gentileza
O profeta
E as palavras
Calmamente
Semeando
O amor
À vida
Aos humanos
Bichos
Plantas
Terra
Terra nossa mãe.

Nem tudo acontecido
De modo que se possa dizer
Nada presta
Nada presta
Nem todos derrotados
De modo que não de prá se fazer
Uma festa
Uma festa.

Encontrar
Perceber
Se olhar
Se entender
Se chegar
Se abraçar
E beijar
E amar
Sem medo
Insegurança
Medo do futuro
Sem medo
Solidão
Medo da mudança
Sem medo da vida
Sem medo medo
Das gentilezas
Do coração.

Feito louco pelas ruas...

Sunday, May 8, 2011

Dois Poemas de Silvio Mendes
















Nuvens pesadas suspensas sobre muitos homens não os deixam pensar.
Ainda que ergam a cabeça, estão isentos de ideias, de contrições e de amor.

É uma fórmula: um homem dedica o seu dia à escuridão do gesto, submete
o corpo aos instintos mais pesados, toma banho de pijama, não olha pela
janela nem atravessa pontes.
E o resultado: um dia de chumbo em excesso para o somatório de cicatrizes,
um nível abaixo do penteado.
A liberdade é, nestes casos, o maior desperdício de um homem-livro, uma
tirania difícil de inalar.

Dão-lhe a poesia e ele escreve tempestades.


(2)

Semear



Semear, gota a gota, os filhos

da palavra, os únicos que

sentem, sílaba a sílaba, a

sua forma, os significados

primordiais do sentido

e uma inaceitável estrutura

de conforto. Semear, página

a página, todas as faces do mundo,

uma a uma, reconvertidas. E depois

colher.

Isto

Isto é o passado.

A culpa de um homem, em caso de dúvida, começa aqui.

Quando se sente só, se acha perdido, é no passado que se deita,

aqui, onde a mãe o viu crescer com o nó de mãe no peito,

onde disse o primeiro palavrão com o pânico da desordem,

onde se engasgou para sempre cravando a estaca do seu esconderijo

definitivo.




Sílvio Mendes nasceu em Vilela, Paredes, licenciou-se em Comunicação Social na Universidade do Minho e trabalha actualmente como comunicador de ciência na Associação Viver a Ciência e na Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa. Assinou um capítulo do livro “Vidas a Descobrir” (Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2009) e mantém actividade poética no blogue www.idiotequesw.blogspot.com. É comunicador, tradutor de interacções entre espécies e amante regular da palavra.

A Música Que Toca Sem Parar:
daquela primeira lavra das composições de Raimundo Fagner, gravada aqui com participação especial de Paulinho Pedra Azul, Pobre Bichinho.

Tuesday, May 3, 2011

Onde está Osama Bin Laden?

.

















Onde está Osama Bin Laden?
Estará no fundo do mar, enrolado numa túnica branca?
Estará no paraíso dos fundamentalistas de Alá, rodeado pelas setenta e uma virgens prometidas aos mártires muçulmanos, e beijando os anéis do profeta Maomé?

Onde estará Osama Bin Laden, esse homem nascido em berço de ouro e de pés feitos de ódio, poeira e fuga?
Ele, que estava em tantos lugares e estava em lugar nenhum.
Que não estava em cavernas seculares.
Que não estava nas nuvens.
Que não estava em um oásis ou na bagagem de um jipe.
Que estava num lugar onde não estava.
Ele, que jamais esteve ou estará.

Ele e seu ódio escancarado ao mundo ocidental e sua sede de matança.
Ele e sua barba comprida, suas sandálias de beduíno, seus cabelos feitos de vento, areia e dunas de sangue do seu deserto.
Ele.
Onipresença diabólica, um dogma, um pecado, um haram.
Ele, um cidadão árabe. Uma vingança. Uma causa.
O árabe mais conhecido do mundo. E nem por isto, popular.
Odiado por tantos, amado por quantos?
Onde ele está?

Posso afirmar que Osama Bin Laden está no coração de um homem-bomba, meus senhores.
Ele está dentro da burca de uma afegã, minhas senhoras.
Está na alma e na ferrugem dos precários jihadistas da Al Qaeda.
E na perigosa cintura da odalisca dançando a dança-do-ventre.
Ele está na tristeza dos camelos que vagueiam pelo Saara, nas montanhas paquistanesas e nas tempestades desavisadas.
Está no doce traiçoeiro das tâmaras e nas palmeiras de um oásis fincado numa miragem.

Onde estará Bin Laden?
Estará no fundo do mar, lavado, enrolado numa túnica branca?
Estará na cama de Barack e Michelle Obama?
Estará na minha cama? E na sua?
No luto das viúvas do Marco Zero?
Tudo isto dito, posso dizer que sei onde ele está.

Osama Bin Laden reside no nosso medo e habita nossos pesadelos.
Ele balança a nossa confiança, sentimento esmagado entre os debris das Torres Gêmeas.
Dá expediente, sete dias por semana, no nosso rachado sentimento de indestrutibilidade e nos desejos mais reprimidos.
Está no nosso pensamento todas as vezes que entramos num avião e ficamos olhando sobre os ombros, tentando adivinhar os demais passageiros.
Está no meu olhar confuso, todas as vezes que olho para o sul da ilha de Manhattan e vejo - onde existiu um dia os dois prédios mais altos do mundo - uma boca banguela.
Como repor esses dentes? Como recuperar o sorriso e o sorrir.
Osama Bin Laden está no inferno, meus amigos.
E o inferno também é aqui, bem dentro de mim, bem dentro de todos que se descuidam de si, dos outros e de tudo o mais.


A Música Que Toca Sem Parar:
Dele e de João Donato, A Paz, na interpretação de Gilberto Gil.

Sunday, May 1, 2011

Um Poema de Nuno Júdice
























"Leio o amor no livro da tua pele; demoro-me em cada
sílaba, no sulco macio das vogais, num breve obstáculo
de consoantes, em que os meus dedos penetram, até chegarem
ao fundo dos sentidos. Desfolho as páginas que o teu desejo me abre,
ouvindo o murmúrio de um roçar de palavras que se
juntam, como corpos, no abraço de cada frase. E chego ao fim
para voltar ao princípio, decorando o que já sei, e é sempre novo
quando o leio na tua pele.”

Nuno Júdice



A Música Que Toca Sem Parar:
Antony and The Johnsons, Cripple and The Starfish.