Friday, November 25, 2016

Extravio


Algumas coisas nasceram
Para não ter fim
Laranjas pela metade
Histórias que não foram contadas
O não que abraçou o sim

A flor que brotou
E não floresceu
O amor que amou
Mas adoeceu
O caminho sem chegada
A carta extraviada
O tal não dentro do sim

Tem a sina de uma bala perdida
Cambaleia em direção ao alvo
Como a faca rasgando a água
Como o fogo mastigando a carta
Como o vento que penteia as palmas
Como a pedra que nasceu do pó
Como o tempo que engole os dias
Como o corpo, despido de alma,
Que foi beijar a terra
Longe, bem longe
de mim.

* A notícia de que meu ídolo Roberto Mendes está musicando estra letra minha, escrita hoje, é uma espécie de redenção para um dia que tinha tudo para me empurrar para o abismo.
Deus existe.

.

Da ironia da vida


é preciso haver a tristeza 
para saber o que é felicidade
barulho para apreciar o silêncio
e ausência para valorizar a presença.

(Maria Paula Alvin)

PS: naquilo que penso em meus velhos. E não só. Naquilo que penso.

Thursday, November 24, 2016

Elegia 1938



(Carlos Drummond de Andrade)

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações no encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas de dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

.

Wednesday, November 23, 2016

A medida Exata





De nós dois ficou esta estória 
Mal contada e sem final feliz
O buraco bem no meio do peito
E pouca linha para cerzir a cicatriz

Ficou um grafite no muro
Este buquê de folhas secas
Um baú de pedras murchas
E um bolero nariz com nariz

O que fazer da minha tristeza,
Como beber de um gole só
A medida exata de tanta solidão?


* (Nova parceria com Lula Barbosa)

Friday, November 18, 2016

Sete Saias


[O primeiro poema]

Nazarena
O seu receio contido
Dentro das sete saias
Não cabe
Na tristeza infinita
Do olhar que vislumbra
A mágoa
Toda vez que o seu homem
Atende o chamado do mar
E vai...

São sete desejos, sete sinas
Sete  redes, sete medos
Sete fomes, sete peixes
Sete lençóis de cambraia
Sete cores do arco-iris
Sete olhares no Atlântico
Sete luas, sete lutas
Sete naufrágios
Sete náufragos

São sete cruzes na praia
E sete são as cicatrizes
Que nunca irão fechar
São sete mortes,
Sete homens
Sete punhais de Netuno
São sete mulheres
de negro.
E negras
São as sete saias.

Nazaré, Portugal, 
13 de julho de 2016

* musicado por Dalmir Lott

Thursday, November 17, 2016

A metade da sede


(O Segundo Poema)



O copo está 
metade cheio 
e metade vazio


Enquanto uma metade agoniza na faixa de gaza
A outra transcende em Xangri-Lá

Uma metade é festa e alegria
E a outra é luto e tristeza

Uma metade é calmaria
a outra é ventania e tormenta

Há uma metade que condena 
E há outra que anistia

Uma delas está cheia de vida
E a outra agoniza, moribunda

Metade que é pura esperança
Metade que é leite derramado

Metade que é a magia do encontro
E a outra a lonjura do adeus

Metade que é líquida, 
Metade que é ar

Nosso copo está
Metade vazio,
Metade cheio

Com qual metade
Saciará a sua sede?


Coimbra, 14 de Julho de 2016

Wednesday, November 16, 2016

Das coisas que esqueci sobre mim



A poeta baiana Tânia Contreiras lançou-me o desafio para que entrasse em uma espécia de corrente iniciada nas redes sociais e enumerasse 30 coisas a meu respeito.
Eu jamais diria não a ela, que é uma pessoa muito presente em minha vida, amiga ímpar, a quem eu não diria não mesmo se estivesse me pedindo um rim.
Portanto, aí vão as 30 coisas das quais, às vezes, eu mesmo me esqueço:

1) Tenho que beber pelo menos três uísques antes de entrar em um avião.
2) Quando menino fui atropelado por um jipe e salvo de um afogamento por um ladrão. Que eu me lembre, em três outras oportunidades a morte passou de raspão.
3) Adoro pão com linguiça e rapa de arroz.
4) Gosto de cozinhar. Muitas vezes, cozinho para não pirar.
5) Adoro futebol. Cruzeirense de ir ao estádio. De "ver" o jogo pelo rádio.
6) Fui "vencedor" de um único concurso literário em minha vida.
    Foi uma 'tarefa' no grupo Escolar Maria Ortiz, em Barra do Cuieté-MG; a redação "Meu Brinquedo favorito" venceu "o ponto" para a equipe Azul, do terceiro ano primário.
7) Quando cheguei aos Estados Unidos trabalhei de pasteleiro (fazia Pastéis de Belém em uma padaria portuguesa).
   Fui também lava-pratos, ajudante de cozinheiro, garçom, funcionário de empresa-de transportes e servente de pedreiro. Aliás, o pior servente de pedreiro que a construção civil de New Jersey já conheceu.
08) Comecei a escrever coisas visitando um pistoleiro de aluguel condenado a 380 anos de prisão, em um presídio de Juiz de Fora. Eu tinha 18 anos.
09) Meu pai não queria que eu vivesse de escrevinhações. Fez de tudo para que eu fosse militar, como ele. Na contra-mão mão de sua vontade, minha mãe presenteou-me com uma Olivetti portátil, que ela pagou em 12 suadas prestações na falecida Mesbla.
10) Sofro quando tenho que usar terno e gravata.
11) Não gostaria de ficar careca.
12) Fui pai pela primeira vez aos 16 anos de idade.
13) Tenho três filhas.
14) Casei-me ao meio dia, em Curitiba, o sol estava a pino e tive câimbras durante o sermão do padre. Era outubro e um bando de borboletas pousou nas pessoas à saída da igreja.
15) Toda vez que alguém me chama de “jovem”, fico constrangido e respondo: 'Ex-jovem'.
     Fico achando que esta pessoa está tentando me vender um par de quixutes.
16) Adoro Portugal. Pudesse, iria várias vezes por ano a Portugal.
     Tenho vários ossos lusitanos em meu corpo.
17) Eu me sinto mais mineiro do que qualquer outra coisa.
     Muito mais do que brasileiro ou norte-americano, eu sou mi-nei-ro. De Minas Gerais.
18) Se tivesse que fazer uma tatuagem, tatuaria o triangulinho vermelho da bandeira de Minas Gerais no bíceps.
19) Cheguei aos Estados Unidos aos 21. Tenho 53. Vivi toda a vida adulta no estado de Nova Jersey.
20) Quando comecei a escrever queria ser uma espécie de Augusto dos Anjos menos pessimista. Depois queria ser Drummond e depois, Roberto Drummond.
21) O livro Hilda Furacão, de Roberto Drummond, é dedicado a mim. Também a mim, que fique claro. O que me honra da cabeça aos pés.
22) Tive uma produtora de shows de MPB em sociedade com dois grandes amigos nos EUA. Fizemos coisas que julgo importantes por aqui.
23) Sofro quando entro em um lugar e está tocando axé, sertanejo, pagode ou "fanque". Este é um dos motivos porque vou pouco aos restaurantes brasileiros de Newark.
24) Parei de fumar no dia 1º de dezembro de 2011, após escalar - de carro - um poste da South Street. Carro e cara se arrebentaram.
   Parei como forma de agradecimento pela oportunidade de continuar entre os vivos. Eu era fumante desde 1980.
25) Eu não gosto de ir a festas de crianças, nem de ir à Disney com minhas filhas.
   Não fui. Não vou. Não irei.
   É por estas e outras que ainda morarei no inferno.
26) Não gosto de praia. Nem de carnaval.
27) Acho as obras de Niemeyer uma bobagem. A forma não segue a função.
28) Tenho preguiça mental de falar inglês. Minha tecla SAP está quase sempre desligada.
29) Recentemente tive muita vontade de voltar pra Minas Gerais e ir morar numa casa de montanha e ser feliz para sempre.
    Esta vontade está passando. Vai passar.
30) Tenho os melhores amigos que o afeto pode comprar.

Monday, November 14, 2016

Alçapão



Estivemos
Os dois dentro
Do mesmo
Momento

Ruminando
Mágoas
Mastigando
O tempo

E
Bem debaixo
Dos pés
- Naquilo
Que um dia
Chamamos 
 chão -

Escancarando
A nossa ferida,
Abriu-se 
A boca faminta
De um enorme alçapão

Wednesday, November 9, 2016

O brinco


(Para o Pitico)

Quando cheguei aos Estados Unidos, em 1984, fui dividir um porão com um conterrâneo meu, o Pitico.
Ambos vínhamos de Governador Valadares, mas só ficaríamos amigos por aqui. Fomos amparo um para o outro, tomamos porres homéricos chorando a saudade de casa e transbordamos incertezas que não couberam nos nossos copos. Juntos, enfrentamos o banzo dos primeiros anos, a dificuldade da língua e a brutalidade da vida de imigrante. Tivemos um ao outro. Parecíamos irmãos.
Um dia Pitico apareceu em casa com um par de brincos, algo que começava a virar moda entre os jovens daqueles dias. Relutei, mas aceitei perfurar a orelha esquerda e colocar ali uma argola de ouro.
Relutei, porque sabia que aquele brinco não seria bem recebido em minha casa, lá no Brasil, já antevendo a reação contrária de meu pai. Mas aquele gesto dele selava uma espécie de fraternidade entre nós dois, algo que nos irmanaria para o resto da vida, como realmente aconteceu.
O relacionamento com meu pai sempre foi permeado por amor e rigor.  Se não faltava carinho, abundava também a incompreensão, fruto do conflito de gerações e da formação dele.
Ele era militar.
Eu era militante.
Filho do seu Antônio não andava cabeludo, não frequentava mesa de carteado e evitava más companhias.
Ele queria o meu cabelo curto, como o dele. E eu queria mudar o mundo fazendo parte de uma revolução.
Ele queria que eu entrasse para a caserna, como ele, mas eu já havia sido mordido pelo marimbondo das palavras.
Arriscar a vida em um país estrangeiro foi uma porta de saída para aquela incômoda situação. Tanto que, em 1984, eu me mudei de mala e cuia para Nova York.
Em 1988 tive que ir ao Brasil para uma entrevista de legalização no Consulado norte-americano, no Rio de janeiro. Seria a primeira vez retornando à terra natal, após um período de quatro anos de espera e toda espécie de provações.
Fui ao Rio, resolvi minha situação, mas antes, fui a Governador Valadares abraçar meu pai e rever os amigos que ficaram por lá.
O ônibus da Viação Gontijo chegou à rodoviária por volta de duas da manhã. Pude vê-lo ao lado de Bispo Filho, aguardando-me, com seus pescoços espichados, tentando me reconhecer detrás do escuro do vidro do lotação.
Desci as escadas e pude notar o sorriso de meu velho se desfazendo gradativamente. Aquele moço cabeludo que desembarcara não era o filho que partira daquele mesmo lugar alguns anos antes.
Quando nos abraçamos, logo após o pedido de bênção, ele sussurrou ao meu ouvido:
   - Tira!
   - Tirar o que, meu pai?
   - Esta aberração enfiada na sua orelha.
    Levei na brincadeira, prometendo que falaríamos sobre o assunto na manhã seguinte, o que aconteceu logo na mesa de café.
   - Filho meu não usa brinco, disse antes mesmo de desejar bom dia.
   Meu velho deixou claro que "homem de verdade" não usa brinco, reflexo de sua formação antiquada e da homofobia aprendida no quartel da polícia militar.
   Levei na esportiva e argumentei que índio usa brinco e ninguém duvidava de sua masculinidade.
   Ele não se comoveu.
   Apelei para os temíveis piratas, sanguinários, couraçados, invasores, 'machos pra caramba', mas ele nem se coçou.
   Não teve jeito. Tirei o adereço da orelha e o coloquei no bolso. Estava encerrada a sessão de tortura, o que acalmou os dois durante os quinze dias que fiquei em sua casa. Tentei usar o brinco na volta aos Estados Unidos, mas sempre me lembrava das palavras dele, até que decidi-aposentá-lo definitivamente.

    Quase três décadas depois, retorno ao Brasil para visitar meus pais. Estava sentado na varanda da casa bebendo uma cerveja, quando ele se aproximou. Sentou-se ao meu lado, com ar solene, e puxou uma conversa.
      - Filho, eu estive pensando.
      - Sobre o que, meu pai?
      - Sobre aquela conversa do brinco que tivemos há muitos anos.
        Fiz cara de paisagem. Não atendi aquela abordagem. Ao que ele sorriu, timidamente, antes de dizer.
     - Acho que você já pode usar brinco. Todos os artistas usam. Os jogadores de futebol também. E praticamente todos os rapazes daqui da rua usam.

 Achei bonito o seu gesto, mas, trinta anos depois, não fazia mais sentido.

     - Obrigado, pai, mas eu não sou mais um rapaz. Eu fiquei velho demais para usar brinco.
   
   Retornei aos Estados Unidos e, alguns dias depois, recebi a visita de Pitico, que não via desde o ano passado.
    Saímos para tomar um café e colocar a prosa em dia, pois ele está enfrentando bravamente um câncer no estômago. Alegro-me: ele está vencendo a a batalha. Está confiante.
    Olho para a sua orelha e o brinco colocado três décadas atrás ainda está lá.
    - Você continua usando o brinco, observei.
     Ele respirou fundo e devolveu com um olhar de decepção.
    - Estou. Mas você tirou o seu.
 
Nos despedimos, ele entrou no carro e se foi. Fiquei com aquilo na cabeça.
Naquela mesma noite, chegando em casa, pedi um brinco emprestado à minha e filha e reabri, na hora, o buraco que o tempo se encarregou de fechar. E em solidariedade ao Pitico, enquanto ele estiver em sua batalha contra a doença, eu o usarei. E talvez não o retire nunca mais.
Em solidariedade, é verdade, mas principalmente porque um pacto de irmandade para o resto da vida não deve ser quebrado. Ainda mais com a bênção de meu pai.

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Monday, November 7, 2016

Profecia


Nada será como antes

Depois do seu cheiro
Na minha pele
Dos nossos rostos colados
E do bolero bailado
De pés no chão

Não será igual
À sede da água 
Bebida de sua boca
Na varanda da manhã

Não será escura a gruta
Na garganta das veredas
Não haverá feridas abertas
E não serão mais vermelhos
Aqueles flamboyants

O cumprimento dos três pedidos
Na fonte dos seus desejos
Ficaram emaranhados
Nas linhas do nosso destino
E estas estão riscadas
na palma da minha mão


* Nova parceria musical com Lula Barbosa