Sunday, June 30, 2013

Da solidão dos domingos


(Para Marcos Pizano)


Ontem foi domingo.
Um dia plúmbeo, que nem de longe se deixou transparecer um domingo de verão.
Quase enlouqueci.
Acho que o fato de ter sido véspera de feriado conspirou, transformando as ruas de Kearny em um pavilhão de escombro e abandonos.
Da janela do apartamento, vislumbrei o manto cinza que cobria a tarde, trazendo a reboque a lembrança de muitos outros domingos melancólicos de minha vida.
Sempre vi o dia em que Deus descansou de uma forma morna, ressaqueada, como se algo tivesse se quebrado ou reerguido das cinzas, dentro de mim.
Em muitos domingos, sinto que o mundo vai se esvair em marasmo e melancolia.
Em 1986, aos 23 anos, escrevi um livro de poesias que batizei de “Tango Fantasma”, título de um dos poemas da obra.
O poema falava da solidão de um domingo qualquer, que nascia parido da solidão de outros tantos domingos, e de um sujeito que perdera a esposa e a amante durante um ciclo de sete dias e se exilara num cassino imaginário, fincado às margens do lago de Maracaibo.
Escrevi o poema após retornar de um almoço na casa do poeta Marcos Pizano, ao notar que as ruas de Governador Valadares estavam irremediavelmente desertas.
Tão logo entrei no ônibus que me levaria a São Raimundo, tive  a impressão de que havia entrado num trem fantasma.
Apenas o motorista e o trocador fizeram-me companhia durante toda a viagem, o lotação precário saltando sobre a estrada esburacada.
No alto-falante do teto do ônibus, a voz de Chico Buarque cantava:

“Ó pedaço de mim ó metade arrancada de mim”...

Cheguei em casa aos frangalhos, sentindo o peso de uma barra pesadíssima que aquele domingo implacável havia jogado sobre mim. E nunca mais me curei.
E assim continua sendo, tanto tempo depois, os novos domingos se repetindo com os mesmos contrastes, como se escrevessem com carvão em superfície de pele uma estória triste.
Para mim, o domingo será sempre de Globo Rural, tendo na sequência Rolando Boldrin apresentando modinhas de viola e contando “causos” naquele Som Brasil que ainda reverbera em mim.
Meu domingo terá o imorrível Ayrton Senna com seu macacão limpo, ultrapassando mitos e entrando para a história. Afinal, domingo-fantasma sem Galvão Bueno cuspindo bairrismos e bajulações gratuitas ao microfone num Grand Prix, soaria ilegítimo.

E é por isso - e por muito mais -, que meus domingos serão sempre de almoço em família.
Domingo de irmã chegando com filho pequeno no colo, de mãe mexendo a a panela de comida no fogão, e de sobrinhos indomáveis correndo pela casa, como se ali fosse o pátio da escola durante o recreio.
Os domingos felizes foram, são e serão, sempre, de macarronada, de frango assado com farofa, tutu de feijão e salada de legumes cozidos.
Eles terão Sílvio Santos na televisão:
- Quem quer dinheiro?

Domingos de futebol, cerveja espumosa transbordando pelos copos e escorrendo em rios que não desaguarão em lugar nenhum.
Domingos como os de ontem, com folhas de jornal previamente lidas, amassadas, levadas pelo vento no bojo das tardes abandonadas.
Este abandono com cara de ‘nunca’, semblante de ‘jamais’ e que é igual para todos nós.
Abandono que se repete semana após semana e tem o gosto requentado do jantar de ontem e anteontem.
Já sabemos que o próximo domingo virá vestido de um até breve e que, como este que agora, escorrerá entre nossos dedos, terá seus trejeitos decadentes de todo fim de festa.
E esta será a nossa única certeza:
O fim da festa, moça.
O fim de tudo, rapaz.
O viver verdadeiro, pleno e feliz, esse quase-milagre, só chegará amanhã, com o clareamento do dia, corre-corre dos transeuntes nos comércios e as buzinas dos automóveis nos ensurdecendo pelas ruas.
Segunda-feira não é mais o fino da fossa.
Segunda-feira é, desde sempre, o berço da ressurreição da raça humana.

Wednesday, June 5, 2013

Aqueles que conheço e que partem


Dizem-nos que está tudo bem: apesar de batermos
de porta em porta, e de vermos quadros pendurados
compulsivamente e com rasgões aleatórios
de loucura.

Procuramos saber nesse dia como
desapareceram, se foi de repente, se deixaram
cartas a avisar, se pediram mais um conhaque antes
de se despedirem, ou se simplesmente
fecharam a porta e ficaram do lado de lá.

E encontramos silêncio nas respostas.
Tudo aquilo a que nos propomos conhecer fica envolto
em lençóis escuros que deixaram lavados - e ainda
quentes -com beatas de cigarro ao lado da cama, com revistas
folheadas e abertas por cima das almofadas.

Percorremos o resto da casa, chegamos
por fim à porta de entrada onde tudo continua
intacto, insanamente preservado, como se ainda hoje
nos sentássemos aqui, a olhar para a televisão, a ver
os nossos dias - a imaginar as casas, os filhos, os
empregos - e a continuar de olhos abertos, as mãos a
mexerem em folhas riscadas sem quaisquer palavras.

Mas, de quando em vez, decidimo-nos a escrevê-las, para que
se sinta menos a despedida - como que se ela não existisse
ou como que se nada fosse dito naquele momento.

E de qualquer forma, os corpos afastam-se,
ininterruptamente,
a passo lento; olhamos a estrada ao longe com as roupas
a assemelharem-se a sonhos quebrados, com as mãos por
fim
cheias de algo que não conhecemos - com a cabeça longe
em mundos distantes do nosso.

Crescemos assim. Habituamo-nos a ver aqueles que
conhecemos
de costas para nós, a mão direita a acenar rente à anca,
num gesto esquecido de dizer adeus, para que haja algo a
separar-nos
para além de cartas.

A partir daí, será como uma fotografia desfocada:
relembraremos
aquele que partiu, naquele dia, a agitar a mão para nós
como se não estivéssemos ali; as costas ocupadas com
malas e rostos
e nós a bater a portas de quem não conhecemos, a
anunciar
que este ou aqueloutro partiu.

Por fim, deixamos de os conhecer - deixamos de lembrar
os lençois
quentes, as revistas abertas a meio, em artigos de
saudade
ou de descrições vagas sobre sexo; deixamos de ver arder
as
beatas de cigarro no cinzeiro azul, ao lado da cama;
esquecemos que
deixámos a porta aberta com a corrente de ar a crescer
por
dentro de nós: e a imagem da tua mão a acenar,
ligeiramente,
junto à anca, e eu a lembrar o teu rosto, apesar de me
dizerem
que está tudo bem.


Sérgio Xarepe in
"Outros dias existe muitos"
Corpos Editora
Dezembro 2008


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