Monday, October 29, 2018

Conflitos sonoros



Tenho sofrido muito com o gosto musical de minha filha caçula, a Clarice.

Mal chega da escola, ela liga o aparelho de som no volume mais alto e sai por essas plataformas digitais que desconheço, garimpando coisas que ferem e ofendem a complacência de um pai.

O som de Clarice arde em meus tímpanos. Qualquer dia desses sangrarei.

As letras são manifestos violentos, chulos e, não raro, aviltam a figura da mulher. Eu sou de um tempo em que a mulher era a musa da canção.

Sim, eu sou um homem antigo. O espelho e a carteira de identidade não mentem.

Mas tento ser moderninho, paciente, tolerante, para evitar os conflitos que tive com meu pai, naquilo que eu crescia, já que ele não gostava do que eu escutava, e vice-versa.

Ele reclamava dos meus Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso - obrigatórios - e dizia que Fagner cantava dentro de um banheiro, fazendo necessidades.

Eu, por minha vez, tinha profunda dificuldade de escutar, por tabela, os romantismos de Altemar Dutra, o vozeirão de Nélson Gonçalves e aquele que eu considerava o pior de todos, Agnaldo Timóteo.

Quando papai chegava do trabalho e ligava a vitrola, eu saía para a rua em busca de silêncio. Não vêm de hoje os conflitos de gerações.

Confesso que tenho saudades de manusear um LP, ritual que nenhuma de minhas filhas teve a oportunidade de experimentar. Eu passava horas a fio destrinchando os encartes, lendo as letras, descobrindo quem tocava o quê. Com o tempo, viriam as fitas cassetes e os CDs, que também foram ficando obsoletos e já estão em via de extinção.

Desapareceram as lojas de discos, e a canção de agora desembarca nos computadores e telefones celulares com a nitidez de um quasar. Há pouco tempo, eu fui apresentado ao Spotfy, que toca músicas intermitentemente, 24 horas por dia. O artista favorito ficou a um clique. Ainda ontem passei duas horas escutando Sinatra, enquanto digitava um texto para o jornal.

Mas eu falava do gosto musical de Clarice, algo que não consigo compreender.

Ela gosta de Hip hop, R&B (seja lá isso o que for), Rap e congêneres, saídos do cotidiano dos jovens negros e latinos do país em que ela nasceu, um universo completamente diferente do subúrbio engomadinho em que ela sempre viveu.

Daí fico questionando, tentando traçar um paralelo da trajetória da música através dos tempos. 
Será que Jayzee é o Ray Charles desta geração?
E o desparafusado Kanye West um novo Stevie Wonder?

A música negra norte-americana, que cresci escutando no interior do Brasil, tinha swing e alma. Trazia composições melodiosas, eximiamente tocadas por músicos de verdade, e não isto que os profissionais invisíveis de agora fazem, amalgamados no interior de um computador, enquanto professam a novíssima canção.

No domingo passado, eu estava visitando o túmulo de meu pai em um cemitério de Belo Horizonte. Alan Costa, amigo querido, passou por lá para entregar um abraço. Mal ele abriu a porta do carro, o locutor do rádio anunciou que aquela era a hora da saudade. Ato contínuo, uma voz conhecida entrou em meus ouvidos.

Ali, na via que dava acesso ao jazigo de número 679, uma das canções de que papai mais gostou encheu o ar. No verso final da canção, Agnaldo Timóteo abriu o peito, expondo a ferida aberta do meu coração:


"Ai, que vontade de gritar
Seu nome bem alto no infinito
Dizer que o meu amor é grande
Bem maior do que meu próprio grito
Mas só falo bem baixinho
E não conto pra ninguém
Pra ninguém saber seu nome
Eu grito só meu bem".


Em algum lugar, pertinho dali, é bem provável que Seu Antônio Lima tenha sorrido, enquanto o filho saudoso caía no choro, balbuciando junto com o cantor que tanto detestou na adolescência o doloroso final.

E eu gritei, bem baixinho, as cinco palavras finais da canção. 

Monday, October 8, 2018

Estatuto do Homem

 
ESTATUTO DO HOMEM 
   (Ato Institucional Permanente) 
  
                                          A Carlos Heitor Cony 
  
    Artigo I 
  
   Fica decretado que agora vale a verdade. 
   agora vale a vida, 
   e de mãos dadas, 
   marcharemos todos pela vida verdadeira. 
  
  
   Artigo II
   Fica decretado que todos os dias da semana, 
   inclusive as terças-feiras mais cinzentas, 
   têm direito a converter-se em manhãs de domingo. 
  
  
   Artigo III 
  
   Fica decretado que, a partir deste instante, 
   haverá girassóis em todas as janelas, 
   que os girassóis terão direito 
   a abrir-se dentro da sombra; 
   e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, 
   abertas para o verde onde cresce a esperança. 
  
  
   Artigo IV 
  
   Fica decretado que o homem 
   não precisará nunca mais 
   duvidar do homem. 
   Que o homem confiará no homem 
   como a palmeira confia no vento, 
   como o vento confia no ar, 
   como o ar confia no campo azul do céu.

  
           Parágrafo único: 
  
           O homem, confiará no homem 
           como um menino confia em outro menino. 
  
  
   Artigo V 
  
   Fica decretado que os homens 
   estão livres do jugo da mentira. 
   Nunca mais será preciso usar 
   a couraça do silêncio 
   nem a armadura de palavras. 
   O homem se sentará à mesa 
   com seu olhar limpo 
   porque a verdade passará a ser servida 
   antes da sobremesa. 
  
  
   Artigo VI 
  
   Fica estabelecida, durante dez séculos, 
   a prática sonhada pelo profeta Isaías, 
   e o lobo e o cordeiro pastarão juntos 
   e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. 
  
  
   Artigo VII

   Por decreto irrevogável fica estabelecido 
   o reinado permanente da justiça e da claridade, 
   e a alegria será uma bandeira generosa 
   para sempre desfraldada na alma do povo. 
  
  
   Artigo VIII 
  
   Fica decretado que a maior dor 
   sempre foi e será sempre 
   não poder dar-se amor a quem se ama 
   e saber que é a água 
   que dá à planta o milagre da flor. 
  
  
   Artigo IX

   Fica permitido que o pão de cada dia 
   tenha no homem o sinal de seu suor. 
   Mas que sobretudo tenha 
   sempre o quente sabor da ternura. 
  
  
   Artigo X

   Fica permitido a qualquer pessoa, 
   qualquer hora da vida, 
   o uso do traje branco. 
  
  
   Artigo XI 
  
   Fica decretado, por definição, 
   que o homem é um animal que ama 
   e que por isso é belo, 
   muito mais belo que a estrela da manhã. 
  
  
   Artigo XII 
  
   Decreta-se que nada será obrigado 
   nem proibido, 
   tudo será permitido, 
   inclusive brincar com os rinocerontes 
   e caminhar pelas tardes 
   com uma imensa begônia na lapela.

  
           Parágrafo único: 
  
           Só uma coisa fica proibida: 
           amar sem amor. 
  
  
   Artigo XIII 
  
   Fica decretado que o dinheiro 
   não poderá nunca mais comprar 
   o sol das manhãs vindouras. 
   Expulso do grande baú do medo, 
   o dinheiro se transformará em uma espada fraternal 
   para defender o direito de cantar 
   e a festa do dia que chegou. 
  
  
   Artigo Final. 
  
   Fica proibido o uso da palavra liberdade, 
   a qual será suprimida dos dicionários 
   e do pântano enganoso das bocas. 
   A partir deste instante 
   a liberdade será algo vivo e transparente 
   como um fogo ou um rio, 
   e a sua morada será sempre 
   o coração do homem.


(Thiago de Mello)