Monday, October 28, 2019

Crônica para a Isabella


(Para a Bebel, que completou 18 anos ontem)


Ela tem poucos minutos de vida, mas já realizou o que quase quatro décadas de experiências, euforias, pequenas conquistas e grandes desastres não conseguiram.
Ela ainda aprende a respirar fora da barriga da mãe, mas já mudou a vida de um homem cético, petrificado por casuísmos de uma existência marcada pelas mazelas da luta cotidiana.
Com apenas alguns minutos de vida ela o faz redescobrir um gosto novo pelo ofício de existir. E resgata nele o desejo da imortalidade.
Ela acaba de transformá-lo em pai.
Durante os nove meses de espera e inquietações este pai a imaginou de tantas maneiras, menos desta com que veio.
Ela não tem os lábios dele e nem o contorno do queixo da mãe.
Não se sabe a cor de seus cabelos – ainda envoltos em líquido amniótico –, e seus olhos permanecem fechados, estranhando a luz artificial do mundo exterior.
O médico diz que ela tem saúde perfeita. E isto é motivo de júbilo, de despreocupação.
A enfermeira que testemunhou seu nascimento reafirma o que ele registrou desde o primeiro momento em que a viu: sim, ela é uma menina linda.
O corpinho franzino, de face rosada e mãos minuciosas, ainda se espreguiça no berço estufa do Hospital Saint Barnabas e ela não sabe do milagre que acaba de operar.
Ela chora pela primeira vez e ele preocupa-se imediatamente, sem entender que esse choro foi despertado pela mudança súbita de universos.
Há menos de cinco minutos, estava protegida pela fortaleza do ventre materno.
Agora, está nua, fragilizada diante de um mundo simbolizado pela expressão confusa de seu pai.
E o choro novo que enche o ar da sala de parto é um aviso firme:
    - Preste bem atenção em mim, papai! Cheguei para te povoar!
Seus olhos abertos iluminam a encruzilhada existencial deste marinheiro de primeiríssima viagem, com a potência de um farol mostrando rumo a um barco no meio de uma tempestade.
Numa ordem inversa de coisas é a filha que chega ensinando o pai.
É ela quem indica a estrada a seguir e sabe-se, de antemão, que já não existirá um atalho para o futuro.
Mudou tudo num segundo.
Encantamento, magia, esperança e responsabilidade substituem palavras de um dicionário que jamais será o mesmo.
E o pai também chora, tentando esconder detrás dos óculos de grau o inocultável.
Ele que não chorou na última derrota de seu time numa final de campeonato.
Ele que não se emocionou na perda de um tio querido, recentemente.
Ele que evita filmes melodramáticos por não lhes reconhecer serventia.
Ele que, consumido pela luta do pão de cada dia, às vezes se esquece de ligar regularmente para seus pais e pedir-lhes a necessária benção.
Ele, o autossuficiente.
Ele, o rei de um reino que gira em torno de seu umbigo.
Impassível, até aqui, este senhor.
Diante dos olhos deste homem impenetrável, revolve-se uma trajetória que está prestes a entrar num novo período de sua história.
E esta metamorfose vai tomando força, acontecendo lentamente, como uma borboleta saindo do intransponível casulo.
Este homem sou eu. Isabella acaba de me fazer pai.
Ainda estou na sala de parto e um turbilhão de indescritíveis emoções vai ganhando - cada vez mais -, terreno em meu coração.
Não sei se rio ou se choro. E é tudo de alegria.
Um frenesi diferente de um grito de gol.
Um eu te amo mais profundo do que todos que eu já disse a qualquer mulher.
A meu pai ou a minha mãe.
Ou a quem quer que seja.
Na noite de 27 de outubro de 2001, escrevi minha grande crônica até aqui.
Meu melhor poema.
Minha grande letra de canção.
Na expressão serena desta criança que nasceu também de mim, sinto-me renascido, pacificado, a um passo de Deus.

Monday, October 14, 2019

O fio da meada


eu tenho
uma gaveta
para guardar segredos
e um armário inteiro
para juntar os medos


tropeço
em nuvens
vazias de chuva
converso
com girassóis
sobre as mudanças
no tempo

entalho o dia-a-dia
com uma faca cega

(firo)

é de arame farpado
o fio
da minha meada

teço
com chumbo e plutônio
a grande solidão.


(Roberto Lima)