Thursday, March 21, 2019

Pequeno rascunho sobre as lonjuras



Os estrangeiros e a maioria dos brasileiros creem que "saudade" seja um termo exclusivo da língua portuguesa. Eu não concebo que um finlandês não sinta saudade. Que um indiano não sofra dessas lonjuras.
Talvez seja apenas uma questão semântica, mas não consigo olhar para uma pessoa, independentemente do seu lugar de origem, sem imaginar que dentro dela more uma saudade.
Saudade de pessoas e lugares.
De um tempo bom em suas vidas.
De um dia especial ou de um marco pessoal nas suas respectivas histórias.
O norte-americano fala apenas que 'sente falta', mas não seria essa falta, essa bolha de afeto dentro da carcaça peitoral, a saudade da qual nós, lusófonos, tanto sentimos e falamos?
Esse profundo estado de melancolia que às vezes nos acomete é parte do DNA humano, embora não haja nenhum estudo científico que comprove isso.
Sentimos saudade até de nós próprios, ou não sentiríamos um aperto quando recordamos dos idos em que tudo podíamos e nada nos parecia impossível.
Há quem sinta saudade da vida de solteiro.
Da infância e adolescência, sem as preocupações que afligem os adultos.
Saudade de visitar um amigo, de um almoço em família ou de passar férias num determinado lugar.
Confesso que sinto saudade.
Saudade de muitas coisas e de algumas pessoas.
Saudade, principalmente, do que ainda não vivi.
Saudade de Casablanca e Havana, lugares a que não fui.
Saudade de caminhar de mãos dadas pelas ruas de Praga e de Granada, terra de García Lorca.
Saudade de tomar um café numa esplanada de Roma ou de colher um girassol na beira de uma estrada da Toscana, como me prometeu o destino.
Eu não consigo - nem quero - esconder que ando sentido uma vertiginosa saudade do futuro.

Thursday, March 14, 2019

Porque eu também sou mãe



Eu entendo a sua dor porque também sou mãe. 
Assim como você, eu sou aquela que esperou com ansiedade a chegada deste filho que encheu a casa de felicidade quando nasceu.
Se ele foi o primeiro, se foi o único, pouco importa.
Para uma mãe todos os filhos são únicos, como o primeiro, iguais no amor que ela sente desde o momento em que nasce.
Uma mãe começa a amar o filho antes mesmo de sua chegada, naquilo que o guarda dentro da barriga e por ele espera.
E eu o guardei e desejei que nada lhe faltasse, que nada (nunca!) lhe doesse, que nada lhe afligisse desde que respirou fora de mim pela primeira vez.
E eu o amamentei até que ele não precisasse mais do meu leite.
Estive com ele nas noites de febre, trocava suas fraldas, saciava fome e sede e o acompanhei enquanto ele crescia.
Caía a noite e eu ficava olhando para aquele menino bonito, a face inocente descansando de nadas, e desejando que ele tivesse um sono tranquilo, cheio de sonhos leves.
Eu implorava para que ventos ligeiros levassem para longe dali os eventuais pesadelos.
Vi quando ele deu os primeiros passos e quando perdeu o primeiro dentinho.
Ainda guardo na memória cada pedacinho dele, a imagem no porta-retratos, o sorriso ingênuo, o olhar de ave, o cabelinho de nuvem.
Eu estive sempre com o meu menino.  (E gostaria de ter estado mais, mesmo depois que ele cresceu.)
Eu quis para ele futuros brilhantes, tão maiores e melhores que o meu.
Quis que ele salvasse vidas como um médico, que educasse o mundo como um professor, que fosse piloto de avião, artista ou atleta profissional.
Que ele fosse o que escolhesse ser. Acima de tudo, que ele fosse feliz.
Portanto, eu sou aquela que não sabe onde errou e que preferia que tudo fosse de outra maneira.
Eu sou a mãe daquele menino que se tornou rapaz e se perdeu de mim.
Aquele menino que foi adotado pelo crime e que hoje chama a violência de senhora.
E é por isto que entendo a sua dor de mãe, que teve a trajetória do seu filho interrompida pelo meu.
Sou a mãe do pivete que lhe assalta fumado de crack e que coloca a sua história de cidadão a um clique de revólver, a sua vida por um triz.
Sou a mãe do homem-bomba que entra num mercado e leva dezenas de inocentes com ele, sabe lá Alá para onde.
Sou a mãe do sequestrador que lhe priva dos seus, daquele que pede resgate e que talvez nem devolva o que não lhe pertence, o que nunca lhe pertenceu.
Eu sou a mãe de Mark Chapman, aquele jovem que matou John Lennon e roubou do mundo a luminosidade de novas canções.
Apareço como genitora na certidão de nascimento de Charles Manson.
Osama Bin Laden me chama de mãe.
Meu DNA está em Hitler, em Franco, em Gaddafi e Sadam.
Está nos policiais dos grupos de extermínio da Baixada Fluminense e nos estropiados do Talibã.
Está nas artérias de Donald Trump, nos cabelos de Manuel Noriega e na arcada dentária de outro tirano qualquer.
Meu filho é aquele que entra no cinema vestido de Batman e abre fogo contra inocentes, filhos de outras mulheres como você.
Eu sou a mãe de todos estes meninos enlouquecidos que se armam até os dentes e promovem carnificinas nos Colombines, Suzanos e Realengos desta vida.
Portanto, pode chorar nos meus ombros que eu entendo a sua dor, minha senhora. Entendo-a, porque também sou mãe.
E porque toda vez que um filho meu mata o seu, eu morro um pouquinho junto com os dois.


Tuesday, March 12, 2019

Dona Socorro e o estojo de lápis de cor


Chegamos a São Raimundo em 1967. Nasci em Pedra Corrida - 44 quilômetros acima -, mas fomos 'arrastados' pelo Rio Doce, vivendo em diversos povoados ribeirinhos antes de ancorarmos definitivamente em Governador Valadares. 
Todos os anos, o soldado Antonio Lima era transferido e não tínhamos tempo de criar raiz em nenhum lugar. Não era fácil para nenhum de nós. 
Eu tinha cinco anos e vivera em cinco cidades diferentes, antes de aportarmos no lugar que se tornaria a minha referência. 
Nossa casa fazia divisa com o campo do Esporte Clube Ibituruna, lugar que viria a ter grande importância na minha infância. Ali eu joguei bola, fiz amigos, fraturei ossos e tive grandes alegrias.
O bairro São Raimundo ficava espremido entre a favela do Morro da Orêia - hoje Morro do Paraíso - e o mesmo Rio Doce que me viu nascer. 
Era um lugar de casebres simples, com suas ruas de terra batida e nomes de pedras preciosas e semi preciosas.
Estabelecemo-nos, inicialmente, na rua Turmalina. Ao fim de dois anos, papai ergueria um barraco na Rua Topázio, palco de grandes aventuras com novos amigos, pés empoeirados, camisas remendadas, árvores que falavam vários idiomas, rolinhas da cor de terracota e tizis saltitantes.
No quintal havia laranjeiras, limoeiros, dois pés de manga  e uma horta com pés de couve que chegavam ao céu.
Quando um PM chega a um novo lugar, trata de conhecer as pessoas mais influentes. Líderes comunitários, professores, padres, pastores, comerciantes e políticos estão no alto da lista de contatos importantes para um policial recém-chegado.
Foi assim que papai foi apresentado a Gabriel e Maria do Socorro, proprietários do Bar Chave de Ouro, que ficava localizado no ponto final do ônibus.
O Chave de Ouro era também uma sorveteria que produzia o melhor picolé de coalhada do planeta. 
Dona Socorro fazia deliciosos salgadinhos, Gabriel os vendia. 
Nas prateleiras, reluziam garrafas de jurubeba Leão do Norte, catuaba, conhaques Presidente e Dreher, cachaças sem rótulo e groselha.
Uma mesa de sinuca e outra de totó (pebolim) faziam a alegria de quem gostava de um passa-tempo, enquanto bebericava seus venenos.
Gentis, Gabriel e Maria do Socorro convidaram os Lima para um café da tarde, na casa que ficava adjacente ao comércio da família.
Chegamos, fui apresentado ao filho Wellington, que se tornaria um amigo para a vida inteira. 
Enquanto os adultos se deliciavam com um queimadinho com bolo de fubá, saí pelo quintal  com o garoto, dois anos mais velho que eu.
Foi amor à primeira vista. Afinal, a amizade nada mais é que uma das mais puras formas de amar algu'em.
Wellington e eu saímos correndo por aquele minifúndio, chutando uma bola de plástico que caiu perto de uns destroços de construção.
Chamei-o para ver o que acabara de descobrir debaixo de umas tábuas empilhadas sobre uns tijolos. 
Tratava-se de um ninho de adoráveis criaturas, que capturamos para que se tornassem nossos bichinhos de estimação.
Naqueles dias, por onde eu ia, costumava levar um estojo de madeira do tamanho de uma merendeira, daqueles grandes. Nele, onde deveria estar acondicionado um sortimento de lápis de cor, eu ia colocando pedrinhas redondas que ia encontrando, flores que murchavam durante a noite e 'rebanhos' de melão de São Caetano.
Pegamos os bichinhos, colocamos dentro do estojo para que fossem nossos futuros 'boizinhos' e corremos para o interior da casa com o intuito de os mostrar aos nossos pais.
Cheguei esbaforido à mesa, abri a caixinha e os bichos saíram ziguezagueando entre pratos, talheres e xícaras.
Dona Socorro deu um salto, mamãe não conseguiu segurar um gritinho, misto de nojo e medo. 
Papai fez cara severa. 
Seu Gabriel  soltou uma gargalhada.
Ratos não servem para animais de estimação e transmitem a peste bubônica, eu aprenderia ali.
Lavaram nossas mãos com sabão de coco, passaram uma quantidade industrial de álcool e ganhamos um sermão. 
Os bichinhos, não sei que destino levaram. É provável que não tenham sobrevivido à fúria de Seu Antonio.
Estudaria com o Wellington do primeiro ano primário à oitava série ginasial. Seguimos amigos pela vida e hoje mantemos contato, trocando senvergonhices pelo whatzapp. E vivemos adiando um reencontro, que espero não tardar.
Na semana passada, Penha, irmã de Wellington, postou no Facebook uma foto de Dona Socorro segurando um exemplar de Meninos de São Raimundo, livro que escrevi em parceria com o poeta Bispo Filho.
Emocionei-me muitíssimo.
O tempo passou para todos nós, os cabelos dela ganharam o branco do algodão, mas Dona Socorro conservou os olhos mansos do dia que a vi pela primeira vez.
Essa crônica é um tributo a ela e seu marido Gabriel, que já não se encontra entre nós.
Espero poder abraçá-la em minha próxima ida a São Raimundo. Espero, também, que este abraço não tarde. 
E sei que o episódio do estojo de lápis de cor estará na pauta de nossa prosa saudosa.