Wednesday, July 27, 2011

Ele tem os olhos azuis

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Ele é louro e tem os olhos azuis.
Ele, que não conviveu com a pobreza, com a fome, ou outro flagelo de equivalente natureza.
Ele, que é louro e tem os olhos azuis.
Ele, que não entrou na fila da sopa, do cobertor de flanela ou da água, geralmente distribuída em caminhões-pipa nas regiões castigadas pela miséria e pela seca.
Ele, um homem louro e de olhos azuis.
Ele, que não cresceu com a pele tostada pelo sol escaldante do deserto, que não viu sua família sofrer torturas em mãos de cupinchas de uma ditadura ou foi doutrinado para ser um homem-bomba.
Ele...
Ele, que não foi menino de rua.
Que não esmolou pelas ruas.
E não vendeu chicletes num sinal de trânsito.
Esse homem que nasceu e cresceu num dos lugares mais civilizados da Terra, que frequentou boas escolas e bem poderia ser um médico, um cientista, um poeta, um professor ou um jogador de hóquei sobre o gelo, tão abundante no lugar em que veio ao mundo.
Ele, que é louro e tem os olhos azuis.
Ele que escolheu o caminho que quis escolher, e a livre escolha é uma benesse, uma conquista ainda disponível nos países democráticos do chamado Primeiro Mundo.
Ele que, entre tantas escolhas, optou pelo ódio.
Pela intolerância.
Pelo terror.
Ele que optou pelo egoísmo e que não calçou – por um segundo que tenha sido – o sapato daqueles que vitimaria com seu desatino.
Ele que não pensou na ferida que abriria no peito de famílias inteiras, hoje, inconsoláveis.
Ele, que espalhou uma dor interminável.
Ele, que separou de uma vez por todas, pais, filhos, mães, irmãos, amigos…
Ele que, com seu egoísmo, sua inconsequência, sua irresponsabilidade, não pensou duas vezes antes de explodir um prédio em sua insuspeitável Noruega.
Ele que nos ensinou que o ódio e a intolerância campeiam, panfletados pelo demônio.
E que o demônio do ódio e da intolerância está recrutando dentro de nossas próprias casas, no seio de nossos lares.
O dono das trevas já não faz adeptos entre miseráveis mal-nascidos, revoltados com as injustiças sociais - infelizmente ainda abundantes neste planeta (o que talvez até nos fosse compreensível -, por civilizada compaixão).
Ele, que plantou o luto.
Que plantou a interminável dor.
E que sorriu diante das câmeras de televisão, esta manhã, em seu caminho para o tribunal.
Vaidoso, fez reluzir seus dentes brancos.
Flash!
Ele, que nos mostrou (de uma vez por todas) que o mal já não possui uma face, e que nosso preconceito erroneamente estigmatizou.
O mal não usa uma burca, um turbante, uma calça furada nos joelhos ou nas nádegas.
O mal que não é mulato e não é cafuso e não é mestiço. Jamais foi.
Somos, todos, ou quase todos, uma semente do mal.
Ele, o demônio, é bem-nascido.
Ele come e bebe e tem abundância de tudo.
Ele, o mau, é você e sou eu, escondidos nesta pele de cordeiro.
Ele, o diabo, é louro e tem os olhos azuis.
Ou castanhos-avermelhados, como os meus.



A Música Que Toca Sem Parar:
de um dos discos que mais me marcaram recolhi Calma Violência, de Fagner e Fausto Nilo.



Calma violência, violência calma
E a pureza da minh alma
E a minha inocência
Calma violência, violência calma

Calma violência, violência calma
E a pureza da minh alma
E a minha inocência
Calma violência, violência calma

Minha mão não tem mais palma
Dói a irreverência
Violência, calma
Brasileira é minha alma

A experiência, violência
Calma violência
A experiência, violência
Calma violência

Tuesday, July 26, 2011

Um Grande Poema de Nina Rizzi

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fuga


minha voz, quando te diz, quanto te canta:
"te amo como se ama um passarinho morto",
sabe?

a gente quer pegar na palma da mão, levar ao rosto,
afagar e chorar:
- voa, voa, passarinho morto

Nina Rizzi


A Música Que Toca Sem Parar:
de Milton Nascimento e Márcio Borges,toda a leveza de Benke.



Beija-flor me chamou: olha
Lua branca chegou na hora
O Beija-Mar me deu prova:
Uma estrela bem nova
Na luminária da mata
Força que vem e renova

Beija-Flor de amor me leva
Como o vento levou a folha

Minha Mamãe soberana
Minha Floresta de jóia
Tu que dás brilho na sombra
Brilhas também lá na praia

Beija-Flor me mandou embora
Trabalhar e abrir os olhos

Estrela d'Água me molha
Tudo que ama e chora
Some na curva do rio
Tudo é dentro e fora
Minha Floresta de jóia

Tem a água
tem a água
tem aquela imensidão
tem sombra da Floresta
tem a luz do coração
Bem-querer!!!

Saturday, July 23, 2011

2 Poemas de Alento e Desesperança


La Nave Va


conheci alguns calvários
alguns desertos oásis
tive tristeza alegrias
desafios desenganos
porém nada permanente
quando a vida vira a página
quando amanhece de novo
o que deve ser
vive-se

um olhar
um outro canto
o choro outras palavras
eu deixo a porta sem trava
se o amor quiser partir
outro por certo virá
é a vida seu compasso
a medida do possível

eu sorvo cada momento
eu bebo cada gotinha
eu choro rio padeço
repenso minhas fraquezas
aliso as marcas do tempo
deixo a vida dar os passos
voe ou rasteje
prossigo

sofres eu sofro junto
alegro-me quando te alegras
sou aquela caravela
que em plena calmaria
encontrou um norte
um rumo

se a bonança acabar
voltarem o vento e a chuva
um dia chega o estio
:
haverá amanhãs




















(Líria Porto, Araguari, Minas)



Sobre.aviso


Se, de fato, é o meu amor que queres
Abrace com intimidade as simples coisas
Não precisas deixar que dobrem os sinos
Anúncios podem assustar um frágil coração
E quanto a mim...
Se ficar escuro, só preciso encontrar tua mão.

Se pular em precipícios é o que me fere
Resistirei aos delírios com toda minha força
Não acenderei fogos que sejam de artifícios
Águas calmas também movem uma paixão
E quanto a ti...
Só me dê beijos que não me deixem dizer não.


























Adriana Araújo
(São Luís do Maranhão)


A Música Que Toca Sem Parar:
de Mongol e Oswaldo Montenegro, Como se Estivesse Fora, na voz de José Alexandre.

Me diz como é que faz
Finge que eu cheguei agora
Finge que eu não sei do engano, ah!...
Finge que eu não vi
Me fala sobre mim
Como se eu estivesse fora
Mostra a foto do outro ano,é
Finge que eu não vi
Me roubei da estrela
e é como se eu fosse a luz e ela eu
Vim banhado em cor e a estrela
É o que eu fui e ainda sou em ti
E aí dói tanto vê-la
Como dói hoje olhar pra estrela
Que eu marquei em ti



Sunday, July 10, 2011

Filha de Peixe...

Haydee Milanés é filha de Pablo Milanés. Esta canção é de sua autoria, lindíssima.

Música cheia de curvas, melodiosa, e que me emociona muitíssimo.




No escatimes un Segundo para amar
Que nunca se sabe que vendrá mañana.

Hazlo todo menos imposible,
No apagues el brillo de tus ojos
Con el frió de una lagrima.

Una sola vida se me hace tan larga
Cuando se me encarna la nostalgia.

Tú y yo,
Viajando en el amor sin rumbo,
Perdidos en el cielo, desnudos.

Tú y yo,
Perdidos en el cielo, desnudos.

Y en cualquier lugar que estés
Te encontrare, mi amor.
No mires la brújula, te vas a perder.

Voy oliendo el viento;
Es tu perfume quien me guía.
No creo en presagios que me aparten de tu vida.

Una sola vida se me hace tan corta
Cuando se me antoja ese deseo de tenerte hasta la
Ultima gota.

Tú y yo,
Viajando en el amor sin rumbo,
Perdidos en el cielo, desnudos.

Tú y yo,
Viajando en el amor sin rumbo,
Perdidos en el cielo, desnudos

Tú y yo,
Viajando en el amor sin rumbo,
Perdidos en el cielo, desnudos

Thursday, July 7, 2011

Survivor, Brazilian Style


















Fim de domingo, estatelado no sofá da sala, brincando com o controle remoto da tv, deparo-me com o Survivor, um reality show em que os participantes são despachados para um canto esquecido do planeta e tem que se virar nos trinta, como recomendaria o Faustão.
Passam cerca de 40 dias embrenhados na mata, vivendo em abrigos improvisados, caçando e pescando para comer com lanças feitas de madeira, extraem fogo de pedras, como na pré-história.
Mauricinhos, caipiras, aspirantes a modelo, desajustados, cowboys de meia-espora, manicures, donas de casa e pessoas de diferentes regiões do país são divididos em duas turmas e o bicho pega, com a realização de provas de sobrevivência que contam pontos e dão prêmios cobiçados como uma caixa de cerveja gelada, um café da manhã com direito a bacon e croissants, um canivete suíço ou uma sempre disputadíssima caixa de fósforos.
Uma vez por semana, os participantes votam pela saída de um dos seus. Eles vão se dizimando, como canibais de si próprios, até que seja apontado o vencedor.
O Brasil teve uma versão deste enlatado, que parece não ter emplacado muito bem, ao contrário do Big Brother, que virou mania nacional, transformando nulidades em celebridades e recheando as páginas das revistas masculinas de “carne novinha em folha”.
Abomino o Big Brother.
Não o assisto por aqui, não o assistiria se vivesse no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo onde se fabrique sumidades do quilate de Alberto Cowboy, Diego Alemão e o filósofo Cléber Bambam, aquele que fez o país inteiro dizer “faiz pairte”.
Como sei o nome destes e de tantos outros big brothers? Ora, como não saber?
Em época de Big Brother, eles ganham mais espaço na mídia do que o lançamento do livro de Chico Buarque, o mais recente poço de petróleo descoberto à unha por Eike Batista ou o novo escândalo político em Brasília.
Aliás, político deve adorar o Big Brother.
Isso é garantia de que o olhar de quase 200 milhões de brasileiros está nas coxas de beldades do calibre de Sabrina Sato ou de Pryscila, uma indiazinha bem bonitinha do Mato Grosso, que mostrou seu piercing genital numa edição da Playboy.
Quem quer saber de mensalão, mensalinhos e deputados donos de castelos, quando o país inteiro rói as unhas para saber quem vai sair da casa?
Mas eu falava do Survivor (O Sobrevivente, para os recém-chegados e ainda não familiarizados com a língua inglesa)...
A edição deste ano foi realizada no Brasil. Para ser mais exato, em Tocantins.
Entre muriçocas, rios infestados de piranhas, aranhas caranguejeiras, cobras de todos os calibres e feras da fauna brasileira, a turma se engalfinhou pelo direito de levar para casa a bagatela de 1 milhão de dólares.
Fiquei pensando, enquanto admirava a belíssima paisagem que servia de pano de fundo para o programa, se a produção precisava mesmo tê-los mandado para os cafundós de Tocantins, quando a intenção era testar a resistência física e mental dos participantes.
E minha mente desocupada passou a bolar um Survivor brasileiríssimo, com provas bem mais difíceis para os participantes, do que atravessar rústicas pinguelas com os ombros carregados de balaios d’água.
Queria ver essa turma passar pelas provas diárias dos legítimos survivors brasileiros.
Para começo de conversa, queria vê-los alimentando uma família de 5 pessoas com um salário mínimo, como fazem milhões de pessoas.
Pensam que é moleza? Como prêmio para a equipe vencedora dessa prova, caberia um bolsa-família.
Embarque um mauricinho novaiorquino num lotação em São Paulo às 5 da manhã e, após repetir esse processo mais duas vezes todos os dias, deixem-no guardando carros numa avenida paulistana.
Uma patricinha, dessas aspirantes a modelo, enviem-na para uma casa de madame, e a deixem lá, uma semana inteira, comendo o pão que o diabo amassou com o rabo.
Esse countryboy do Alabama que venceu o Survivor no último domingo, eu mandaria para uma plantação de cana no sertão de Pernambuco, e veria a veridicidade de sua familiaridade com os outdoors, essa que supostamente foi seu passaporte para a vitória.
Ao invés de comerem peixe cru (quem não gosta de um bom sushi?), coloquemos em seus espetos um bom e apimentado acarajé, testículos de boi, buchada de bode e eles iriam mudar o nome do programa para Fear Factor, the Brazilian Edition.
Uma outra prova seria parar o carro de janela aberta, após as dez da noite, num sinal de trânsito de qualquer capital brasileira.
Outra prova dificílima seria trancar todo mundo num quarto assistindo os programas de Ratinho ou de Luciana Gimenez.
Quem resistisse mais tempo, ganharia o cordão de imunidade pelo resto da vida.
Numa das provas de resistência mais difíceis, mandaria os participantes para Jaguariúna ou Barretos e os deixaria lá por dias a fio, sentados em confortáveis cadeiras no centro da arena de rodeio, escutando shows consecutivos de Zezé di Camargo e Luciano, Leonardo, Daniel, e Bruno e Marroni.
Para dificultar um pouquinho mais, mandaria os finalistas vestirem uma camisa rubro-negra, os soltaria no Maracanã, bem no meio da torcida do Vasco, gritando Mengôôôô…
Quem sobrevivesse levaria para casa, merecidamente, o tão cobiçado milhão.


A Música Que Toca Sem Parar:
de e com Zé Ramalho, Admirável Gado Novo.

Friday, July 1, 2011

Dois Poemas de Pessoa, Uma Canção na Voz de Renato Braz























Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.



Álvaro de Campos, 15-1-1928



Segue o Teu Destino


Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas
O resto é a sombra
De árvores alheias

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.

Suave é viver só
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses

Vê de longe a vida
Nunca a interrogues
A resposta está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração
Os deuses são deuses
Porque não se pensam


(Ricardo Reis)


A Música Que Toca Sem Parar:
Renato Braz, minha voz favorita, gorjeia Segue o Teu Destino, de Ricardo Reis... Pessoa que era três, que era milhões). A melodia é de Sueli Costa.