Tuesday, March 26, 2013

Conflito de gerações

 

 
São tão distintos os nossos filhos, quanto os dedos de nossas mãos.
Abro a mão esquerda - que é a mão do coração - e fico contando e constatando que só sei contar até três.
Afinal, eu tenho três filhas. E tão diferentes, são as três.
Emília, a mais velha, tem 32 anos. É casada e toca a vida do jeito dela no sul deste país.
Com ela eu aprendi algumas lições daquilo que os antigos chamavam conflito de gerações.
Assim como eu acho que meu pai pensava de mim, eu penso dela.
Parece que Emília faz tudo para me contrariar.
Para vocês terem uma idéia, eu sou Cruzeiro e ela é Atlético.
Ela gosta de MMA, eu gosto de ler poesia.
Ela gosta de rap, eu gosto de música.
Ela fala de Kanye West, que eu nem sei quem é.
E eu retruco com Miles Davis, de quem ela certamente não quererá saber.
Ela gosta de filmes, eu de cinema.
E até o nosso jeito de lidar com Deus é diferente.
Ela vai à igreja todos os domingos, enquanto eu carrego Deus dentro dos sapatos.
No que eu me descabelo  com as nossas diferenças (com o que ainda me resta de cabelos, que se diga), ela ri.
E parece que ri também para me contrariar, constato.
E rio também, obviamente bastante atrasado, já que os jovens chegam sempre antes.
Clarice, a caçulinha, tem 9 anos de idade e é muito ligada a mim. Mas ultimamente especializou-se  em me criticar.
No outro dia, ela entrou no carro e eu escutava um cd de Renato Braz em que ele interpretava uma canção de Tom Jobim.
Mal se sentou no banco do carona, ela foi ao cd player e trocou para o rádio, perguntando:
- Não tem música "de verdade" para se escutar neste carro?
E dá-lhe Bruno Mars na veia de seu velho.
Clarice tem um senso de estilo que me assusta.
Desde o pré-primário que ela se levanta e se produz toda.
Vai para a escola como se estivesse indo a um concerto de Lady Gaga.
E não vai para assistir.
Vai para cantar, para performar, eu intuo.
Quando menorzinha, dizia que queria ser manicure quando crescer.
De uns tempos para cá, diz que quando for grande quer ser "chefe".
- Chefe de que?  - quero saber.
- Chefe de qualquer coisa. Chefe do mundo, de preferência.
E eu fico sem saber que profissão é esta.
Isabella, a do meio, é também bastante peculiar.
Alternativa, gosta de praticar  skate, surfe, estas coisas que de uns tempos para cá começaram a chamar de esporte.
É centroavante do time de futebol feminino da cidade e marca gols na mesma proporção com que me sacaneia.
Na última nevasca, alertei minha mulher para não sair de casa sem se agasalhar mais do que o costume, porque estava "um infeno de frio".
Isabella ia a caminho do banho, ainda meio insone, mas parou e me alertou:
"Papai, você está usando esta metáfora de forma errada. No inferno faz é calor".
E eu vou responder o que?
Eu só aprendi verdadeiramente o significado da palavra metáfora vendo "O carteiro e o Poeta". E minha filha, aos 11 anos, já leciona sobre o tema.
No outro dia, pedi a ela para trocar o "ringtone" do meu celular, pois me irritava aquele barulho de marcha fúnebre. Afinal, ela é minha assessor para assuntos tecnológicos e similares.
E ela trocou.
Desde então, toda vez que alguém me liga, aparece a voz do Michel Teló cantando "Ai Se Eu Te Pego".
E em espanhol.
 
 
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Friday, March 15, 2013

Pintando na tela da noite


Durante muito tempo tive o costume de avaliar o dia quando me deitava para dormir.
Ë desnecessário dizer que muitas vezes perdi o sono, dependendo de uma ação errada minha, ou de alguém para comigo.
Perdoar é uma dádiva.
E não ser dadivoso com alguém pode pesar tanto quanto não o terem sido consigo.
De uma forma ou de outra, as consequências são sempre cruéis. Exercitar o perdão deveria ser uma obrigação. E não uma opção.
E foi assim que o perdão foi, muitas vezes, o meu calcanhar de aquiles, motivo de grande frustração.
Preciso aprender a perdoar e a exercitar um monte de outras virtudes, que deveriam fazer parte da cartilha de toda pessoa do bem.
Mas eu falava do costume de avaliar as ações ao fim de cada dia, hábito que deixei de praticar.
Tão logo me deitava, projetava uma tela no teto do quarto e esmiuçava as últimas 24 horas com o compenetramento de um legista que dissecasse um cadáver:
Fui ríspido com alguém? Sim ou não?
Recordo que abri a porta para uma senhora bem velhinha no correio - ora bolas! - e que comprei ingressos para um show que só vai acontecer daqui a seis meses.
Estarei vivo até lá?
Morrerei?
De que morrerei eu?
Ficarei doente no dia?
Darei os ingressos antecipadamente a algum amigo?
Hoje fiquei triste porque meu time perdeu. Ou, fiquei feliz demais com a vitória de meu time.
Não deu os 15% de gorjeta ao garçom. Mas sorri para uma criança na rua.
Não, eu não disse eu te amo a quem de direito. E nem fui afetuoso o suficiente com quem merece mais e melhor de mim.
Reconheço que fui rude nesta e naquela situação. E que mostrei o dedo médio - sim, aquele infame dedo médio! - a alguém no trânsito.
Passei uma luz amarela? Andei acima do limite de velocidade?
Sim, eu fui gentil com alguém. Fui atencioso. Fui dócil e doce.
Mas fiz que não vi um antigo desafeto na rua, apesar de ele ter me cumprimentado com cara de quem queria fazer as pazes.
Dei dinheiro a um veterano de guerra, que esperava no frio por pessoas de coração generoso.
Mesmo não possuindo coração tão generoso assim, enfiei a mão no bolso e colaborei. E dei de bom grado, que se registre. Mas ainda preciso amolecer mais o meu coração, eu sei.
No trabalho, a crônica não saiu boa. Agredi a gramática com erros grotescos cometidos por pura desatenção.
Ou, não, pois hoje a crônica saiu dentro dos conformes.
Exagerei no chope? No macarrão e no açúcar? Extrapolei no uísque?
Prolonguei o horário do almoço jogando conversa fora no restaurante?
Deixei de retornar um telefonema? Deixei de retornar vários telefonemas?
Não respondi ao e-mail de fulano ou fulana?
Não fiz caminhada pela manhã?
Telefonei para Minas Gerais e disse à minha mãe da saudade que sinto dela e de todos que me são caros? Há quantas semanas não ligo para Minas Gerais, deixando a impressão de que não sinto saudades de ninguém? Nem de pai, nem de mãe, nem de amigos...
Deixei de ir a este ou aquele lugar?
Adiei para o futuro esta ou aquela ação? E por aí a fora...
Era assim que tratava de buscar soluções para situações cotidianas antes da chegada do sono, que tanto tardava quanto falhava.
Dependendo do tamanho da encrenca ou da dúvida, o sono me dava um WO e eu ficava ali, rolando de um lado para o outro, penitenciando-me por este ou aquele pecado, independente de seu calibre ou teor.
O medo de me tornar um zumbi e não conseguir mais -  nunca mais ! - dormir nesta vida, fez com que eu interrompesse o hábito de pesar os prós e os contras do meu dia, adiando para o futuro a possibilidade de me tornar uma pessoa melhor.


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Wednesday, March 13, 2013

Um grande poema de Daniel Faria



Quero a Fome de Calar-me


Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra
Que trago para sentar-me no banquete

A única glória no mundo — ouvir-te. Ver
Quando plantas a vinha, como abres
A fonte, o curso caudaloso
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedo

Quero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa
Chaga do pastor
Que abriu o redil no próprio corpo e sai
Ao encontro da ovelha separada. Cerco

Os sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes
A flor — várias árvores cortadas
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos
Seguem a linha do canivete nos troncos

As mãos acima da cabeça adornam
As águas nocturnas — pequenos
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadas

Caem — quero fechar-me e cair. O silêncio
Alveolar expira — e eu
Estendo-as sobre a mesa da aliança



Daniel Faria, in "Dos Líquidos"

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Monday, March 4, 2013

Um pombo sem asas


No que pensa o goleiro Bruno, neste momento em que ele está sentado na cadeira do fórum de Contagem-MG?
Vejo-o daqui, enfiado em seu uniforme penitenciário vermelho-sangue, e ele se lembra de que também são encarnadas as listras horizontais da camisa do Flamengo,
seu último clube.
Bruno olha para os olhos da juíza e repara na túnica preta do promotor que o acusa.
- Onde está Elisa? - pergunta o magistrado.
Bruno maneia a cabeça, olha para a janela da rua e vê - no canto mais alto - uma nuvem ligeira e livre, que se desloca para outra direção.
Os olhos de Bruno já não estão ali, e ele pensa nas ruas de casebres tristes de Ribeirão das Neves, cidade em que sua infância se arrastou em casa de parentes.
Pensa na filha que teve com a esposa Dayanne.
E no filho que teve Elisa Samúdio, esta que lhe acusam de ter assassinado e servido como almoço a cães.
Nos olhos de Bruno, menino e menina brincam num canto imaculado e puro de sua memória.
E Bruno pensa numa bola de meia.
Numa bola de plástico.
Pensa nos campinhos de terra batida de Ribeirão das Neves, única rota de libertação possível entre a miséria e a glória.
Bruno pensa no pai que não conheceu.
Pensa na mãe biológica, esta que veria pela primeira vez - já adulto e famoso - num programa de tv, num daqueles quadros do tipo “Arquivo Confidencial”, de Fausto Silva.
O promotor repete a pergunta, mas Bruno parece escutar outra coisa.
Ele escuta o seu nome gritado pela torcida do Atlético, clube que o revelou.
- Brunoooooooooooo!
- Brunoooooooooooo!
- Brunoooooooooooo!
Mil milhão de vezes, Brunoooooooooooo!
Grito que vai ficando cada vez mais alto dentro de sua cabeça e que agora sai da boca do bando de loucos corintianos, por quem também jogou.
Mas é na voz dos flamenguistas - onde conheceria céu e inferno - que este seu nome gritado se torna ensurdecedor:
- Ô-ô-ô, Bruno, seleção!
- Ô-ô-ô, Bruno, seleção!
O advogado de acusação desloca-se na frente de Bruno, mas este já não o vê.
Diante dos olhos de Bruno chovem os confetes e serpentinas dos estádios, espoucam flashs dos fotógrafos dos
jornais e ele quase sorri para as câmaras de televisão.
Bruno sente a falsidade dos tapinhas nas costas e se recorda de todos os autógrafos que deu na vida.
Lembra-se das fotos que tirou com os fãs e da frieza dos microfones dos repórteres de rádio e tv.
Lembra do carrão novo.
E do novo carrão novo.
Pensa nos jantares que não pagou nos restaurantes - por ser uma estrela da bola - e no sorriso fácil das moças.
Pensa nas moças.
Nas coxas das moças.
Nas festas com as moças.
E Bruno pensa na urgência da vida, que a sirene da ambulância que passa na rua anuncia.
E ele consegue escutá-la de dentro do fórum de Contagem, onde é é julgado por um crime que jura que não cometeu.
No que pensa Bruno, agora?
Será que ele pensa no pênalti mal apitado, no centroavante em impedimento e no placar adverso registrado no letreiro luminoso do Maracanã?
Ou será que pensa na dureza do hoje, este chute cara-à-cara, à queima-roupa, em pleno Fla-Flu da vida?
A perda da liberdade é uma bola indefensável, chutada com violência, bem “na gaveta”, raciocina ele.
E Bruno se espicha todo, mentalmente, tentando interceptá-la.
Ele salta, corpo arqueado, os olhos postos na bola que vai em direção à forquilha, lugar onde dorme a coruja dos locutores esportivos.
A liberdade é um pássaro sem asas - pensa Bruno pela última vez -, no que se estica tentando alcançá-la.
Ela é esta bola que está indo, cruel e indefensável, contra o seu gol.
Ela é esta que vai morrendo agora - mansa e pela última vez - no fundo das redes do cidadão Bruno Fernandes, já não mais um goleiro de futebol.

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Friday, March 1, 2013

Grandes Parcerias (V)... A Improvável

 
De todas as parcerias, eu citaria duas que considero improváveis,
mas que se provaram eficazes, funcionando muitíssimo bem.
Uma delas (a outra mostrarei no próximo post) é esta aqui, trazendo um poema da fase inglesa de Fernando Pessoa e que fez parte do álbum em comemoração aos 50 anos da morte do poeta português. O parceiro e intérprete é ninguém menos que Ritchie, o mais carioca de todos os ingleses e autor de "amores de verão" como Menina Veneno e "Pelo Interfone".
Só escutando para "ver".
 
 
Meantime
(Fernando Pessoa e Ritchie)

Far away, far away,
Far away from here
There is no sorrow after joy
Nor away from fear
Far away from here...

Her lips were not very red
Nor her hair quite gold
Her hands played with rings
She did not let me hold
Her hands...playing with gold

She is somewhere past
Far away from pain
Joy can touch her not
Nor hope enter her domain
Neither love in vain

Perhaps at some day beyond
Shadows and light
She will think of me
And make for me a delight
Far away from sight...
 
 
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