Eu, que hoje entendo muito pouco de quase nada, naquele tempo já não entendia muito de muita coisa.
Usava calças-curtas e cantava o hino nacional na escola, todos os dias, antes do começo das aulas.
Era um menino católico - como todos os outros - e às vezes emprestava minha voz a um Padre Nosso meio desafinado, capenga, naquele país pré-Edir Macedo, pré-Robério de Ogum.
Eu não sabia melhor.
Todo sete de setembro eu desfilava na avenida - como um mestre-sala mirim - junto com uma legião de soldadinhos de carne e osso ao som de marchas militares e outros baratos afins.
Às vezes um tanque nos servia de carro alegórico, e aquilo era imponente e intimidador.
No palanque, homens com estrelas nos ombros, roupas engomadas e sapatos lustrosos sorriam.
No rádio de ondas curtas, Dom e Ravel davam a saber que aquele era o lugar dos patriotas.
"Eu te amo meu Brasil, eu te amo
Meu coração é verde, amarelo, branco e azul anil
eu te amo, meu Brasil, eu te amo
ninguém segura a juventude do Brasil".
A juventude, eu não sei, mas a infância brasileira fedia no escuro.
Duvido de que pelo menos uma minoria dos meus contemporâneos tivesse consciência do que se passava no país daqueles dias.
Naquele interior do interior do Brasil, eu era pequeno demais para saber que os descontentes desapareciam em porões.
E que os contentes eram os homens vestidos de verde-oliva.
E que eles eram truculentos, couraçados, trucidantes...
Eu não sabia que o País do Futuro, no presente, não passava de mais uma republiqueta das bananas na América Latina.
Eu era um passarinho engaiolado e não sabia.
Infelizmente, daquela minha turma de meninos ninguém deu em grande coisa.
A minha geração foi uma das mais sacrificadas desde a colonização do país.
Somos a chamada geração perdida, a que descobriu o caminho da emigração e despachou brasileirinhos e brasileirinhas para os quatro cantos do mundo.
Nós nos instalamos entre os aborígenes da Austrália, entre os malditos chicanos do Texas e os brasiguaios de algum lugar mais dentro do que fora do Brasil, ali pelas cercanias de Assunção.
Somos os subalternos, os estafetas, os contínuos.
Somos os decasseguis, os brasucas, os expatriados.
Somos aqueles que batem continência, os que abrem as portas dos carros e dos hotéis; e os que guardam o veículo e a casa alheia, os que se conformam com a sorte menor.
Somos os que lavam os pratos. Os que limpam o chão.
Somos os que lavam os cadáveres nos necrotérios.
Os que passeiam os cães das madames.
Os que servem à mesa.
Os que cozinham para os bem nascidos, e muitos destes vieram tão depois de nós.
Exceções?
É claro que as há, como em toda regra criada pelo homem-lobo-do-homem.
Mas não somos páreo para os de antes, nem para os de depois da década de 1960.
Nós somos os de durante.
Somos os zés e marias-ninguém deste gigante fincado na América do Sul.
No grande esquema das coisas, somos uns desinfluentes quase sempre cheirando a suor e picotando o cartão de ponto em algum lugar.
A minha geração nasceu condenada a ser menor.
E isto, até outro dia, eu ainda não sabia.
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