Wednesday, September 24, 2014

Uma invenção do demônio


(Para Fabio Portugal)
 
 
Comecei com um uisquinho sem compromisso.
Fim de expediente, dia chato no escritório, aquele drink serviria para relaxar e eu ainda chegaria à casa a tempo de jantar.
Não deu nem para o começo. A sede era funda e pedi mais um.
E depois outro. E mais outro.
Aí apareceu um conhecido, que falou de uma cerveja belga maravilhosa, pela qual ele acabara de se apaixonar.
Sabe aquela loura gelada? – ele perguntou.
- Então. Aquela!
E continuou como se fosse um vendedor de carros falando do último modelo da Ferrari a um aficionado:
- É ela.
Molhou a palavra na tal loura e prosseguiu:
- É ela, só que mais gostosa, perfumada, acetinada, e desce como se fizesse um carinho na pele da gente. Só que por dentro.
  
Decidi que tinha que conhecer a tal loura que fazia um carinho por dentro da pele.
Virei o uísque de uma talagada só, chamei o garçom e lá fui trocar uns carinhos com a loura.
Devia ser boa.
Afinal, nove dólares por uma garrafinha de 600 ml, ela tinha que ser.
E era realmente muito boa.
Aí me atraquei com ela, e ela comigo. Foi amor ao primeiro gole.
O calor insuportável clamava por mais dessa maravilha belga.
Reparei que os donos dos bares e restaurantes desligam o ar-condicionado e mandam os cozinheiros exagerarem no sal e na pimenta dos petiscos nestes dias mais quentes.
Pedi a saideira e um táxi, porque não me sentia apto a dirigir até em casa.
O jantar em família havia ido para as cucuias e tratei de ir logo para o quarto. O trajeto até o segundo andar fez com que eu me sentisse ligeiramente zonzo e nauseado.
Despi-me - isentado do banho - e horizontalizei.
Mal me deitei, a cama deu de rodar.
- Que diabo é este? - perguntei a ninguém.
E ela rodava como se fosse um relógio e eu o seu ponteiro. E numa velocidade de ventilador.
Não sei quando parou o homem-ventilador.
Mas demorou uma eternidade.
  
Acordei com a cabeça oca como um abacate, os miolos chacoalhando como se fossem a semente.
Pus-me de pé, heroicamente, e arrastei o cadáver até o banheiro.
Uma vez lá, deixei a ducha fria correr sobre a minha miséria.
Maldito sujeito que inventou tudo isto, pus-me a pensar.
Quem inventou a ressaca inventou as piores coisas desta vida.
Ele inventou o imposto de renda, o trânsito de São Paulo, a Festa de Barretos e Zezé di Camargo e Luciano.
Inventou o sertanejo universitário, a broxada,  a ejaculação precoce e o zero a zero no futebol.
 Ele inventou Galvão Bueno, o uísque paraguaio, o cecê no transporte coletivo, a calvície e o horário eleitoral na televisão.
Inventou os jogos do Campeonato brasileiro às 10 da noite, principalmente às quartas-feiras.
 Inventou ainda a fila de banco, a repartição pública e o mau-humor das pessoas que trabalham nestes departamentos.
E inventou também o gosto do boné do chapéu do maquinista do trem.
O gosto do cabo de guarda-chuva.
E da tábua de chiqueiro de porcos, que fica na boca quando acordamos ressacados, achando que um pedaço da gente prescreveu.
Quem inventou a ressaca inventou um verdugo e o soltou dentro de nossas consciências para que ele nos faça jurar, a cada pileque, que nunca mais beberemos.
Sim, eu juro.
Eu prometo.
Eu nunca mais beberei.
 
 
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Thursday, September 11, 2014

No dia 11 de Setembro


Como aconteceu no dia 8, no dia 9 e em muitos outros dias que o antecederam, o mundo irá acordar com o sol neste 11 de setembro.
No Tibete, um monge se levantará e fará sua primeira oração da manhã.
Em sua prece, pedirá à divindade que derrame sobre o mundo um manto de luz.
Luz para enxergar na escuridão da intolerância.
Luz para caminhar na retidão dos justos.
Luz para fazer transparecer as almas aflitas deste mundo.
Luz para aqueles que não conhecem outro caminho que não o do ressentimento.
Em Estocolmo, na civilizadíssima Suécia, uma moça loura como uma princesa viking, abrirá a janela para permitir que a brisa fresca de final de verão, entre em seu quarto e se espalhe pelos quatro cantos, trazendo fluidos bons.
Na Espanha, numa casa de pedra da Andaluzia, uma menina cigana cantará um canto místico, um canto gitano da mais pura magia.
Em Varadero, Cuba, uma senhora de setenta anos de idade, confidente dos Orixás, irá a uma cachoeira com uma oferenda de agradecimento.
Tranquila, entenderá a linguagem dos peixes e conversará com as plantas num idioma que só os graduados da umbanda sabem entender.
Numa savana do Quênia um grupo de meninos sairá correndo, peito nu de encontro ao vento, livres e leves, sentindo na pele uma carícia da natureza.
Nos pampas argentinos, um vaqueiro levará o seu gado para pastar num vale verdejante e o minuano soprará ao seu ouvido uma confidência:
- Algo de bom está acontecendo neste instante, aqui no lugar em que habitas.

No limite das duas Coreias, dois camponeses, um de cada lado da História, estarão sentados no espaço imaginário onde, provavelmente, foi desenhada a linha da fronteira e, juntos, dividirão um prato de comida.
Um padeiro francês, na volta de sua derradeira entrega da madrugada, esfacelará os pães que não foram vendidos no dia anterior, e os dividirá com os esquilos famintos da praça.
Numa igreja siciliana, um padre se porá de joelhos evocando a figura perene de Deus e, numa emocionada oração, pleiteará para que o Todo Poderoso derrame sua bondade sobre a humanidade, tocando a cada cidadão, independente de credo ou cor.
Nas ruas de Belfast, na Irlanda, um grupo de católicos e protestantes conversará normalmente, como se todo o ódio e amargura fizesse parte de um passado que deve ser esquecido.
Em Sidney, na Austrália, um aborígine trafegará pelas ruas da cidade sentindo-se parte daquele quadrado de concreto e progresso.
Na Cidade do Cabo, no extremo da África do Sul, negros e brancos estarão fazendo uma passeata pacífica, uma via-sacra de agradecimento pelo progresso obtido na convivência entre ambos nos últimos tempos. E pela promessa de harmonia de tempos que ainda hão de vir.
Juntos, combinarão que a palavra Apartheid será excluída do dicionário. E sairão dançando pela cidade como se fosse carnaval.

Num bairro distante da zona norte de São Paulo, um grupo de meninos jogará futebol durante o recreio escolar.
Uma moça bonita e bem vestida, saída provavelmente da capa de alguma revista de moda, auxiliará uma anciã a atravessar uma movimentada avenida londrina.
Em Santiago do Chile, um motorista mostrará ao turista suíço um grupo de mães numa praça do centro da cidade.
Ao contrário do canto de tristeza pelo desaparecimento de seus filhos durante a ditadura de Pinochet, hoje elas entoam uma marcha folclórica, saudando a chegada da colheita nos campos do país.
Numa mesquita da faixa de Gaza, um rapaz que queria ser homem-bomba muda de ideia e promete plantar um jardim.

Nesse mesmo instante, em Jerusalém, Benjamin Netanyahu receberá uma comitiva árabe para uma reunião que decretará um cessar-fogo definitivo.
E nós, que vivemos nas cercanias de Nova York, olharemos para o céu cristalino de setembro e nele não haverá nenhum sinal de perigo.
Apenas um bando de pombas brancas, sinalizando a existência de um mundo em paz.


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