Friday, December 31, 2010

Receita de ano novo






















Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


A Música Que Toca Sem Parar:
Rita Ribeiro canta de Caetano Veloso, Oração ao Tempo.

Wednesday, December 29, 2010

Tramas de Um tema Fugidio

.





















Nem sempre quem vive do ofício de escrever consegue traduzir em palavras as suas visões, obsessões e sentimentos. Já me frustrei em várias situações, vendo-me obrigado a enterrar temas que julgava bons.
Alguns eram de cunho pessoal, outros meramente circunstanciais.
Os circunstanciais costumam passar.
Os de cunho pessoal, não.
E ficam ardendo em quem não teve lastro para parir seu invento, marcando na pele da alma como se ferro quente fosse.
Quando minha avó morreu, eu quis escrever uma crônica declarando a ela todo o meu amor. Tínhamos uma história maior do que aquelas normalmente inerentes - e que já são imensas, por si - a uma avó e seu neto.
Eu, que nasci à luz de uma lamparina numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, tive em Ana Emília a parteira.
Foi por suas mãos que vim ao mundo. Ela foi a primeira pessoa a me tocar e a embalar um choro meu.
Cresci apreciando seus frangos ao molho pardo, seus biscoitos de polvilho e a habilidade de alinhavar versos de encantadora pureza.
Acho que meu gosto pela poesia veio dali, daquelas singelas trovinhas de Ana Emília.
Mas Ana Emília se foi.
Ao contrário de tanta gente que pede a conta da vida, paga e sobe, contente, Ana Emília driblou, o quanto pode, o “garçom” da vida.
Tinha 104 anos quando se viu obrigada a assinar a fatura.
Deixou saudades, lições preciosas, e uma lacuna impossível de ser preenchida.
Senti tanto sua morte, que não logrei escrever absolutamente nada que traduzisse o que sentia - e sinto - por ela.
Sentava-me à frente do computador e não conseguia digitar mais do que meia dúzia de frases. Lia-as em voz alta, relia, tentava costurar palavras às emoções e apagava tudo, logo a seguir.
Mais de um ano depois de Ana Emília nos ter deixado, vira e mexe, a vontade de escrever alguma coisa para ela renasce. E me ilude, uma vez mais.
Como uma brasa acesa pela brisa da saudade, a fogueira da inspiração chega a se insinuar. Mas bate um vento mais forte que a tudo apaga, bloqueando as emoções.
E uma chuvinha fina, a do desânimo, começa a respingar sobre as idéias, arrefecendo o desejo de homenagear minha avó.
Mas esta não é a única frustração neste, digamos, “departamento”.
Existem outros temas que também não foram bem resolvidos, mas que o precisam ser.
Durante um bom tempo de um tempo bom da minha vida, pensei em escrever uma história de amor.
O palco: Santana dos Ferros, terra de Roberto Drummond, uma figura definitiva em minha trajetória de operário da palavra.
Como um pupilo que provocasse o mestre, eu queria surpreender Roberto, que tinha obsessão pela morte. Seus livros evocavam isto:
Quando Fui Morto em Cuba, A Morte de D.J. em Paris, O Dia em que Ernest Hemingway Morreu Crucificado, Os Mortos Não Dançam Valsa, sua última publicação, atestam bem essa obsessão.
E eu queria algo que evocasse e celebrasse a vida.
Uma estória que, ao contrário das suas, tivesse um final feliz.
Uma estória simplória como a água da chuva, cuja sofisticação residisse justamente nessa singularidade.
Não haveria eletrizantes perseguições policiais, mas uma charrete rodando numa estrada de pé-de-moleque, ao som da percussão das ferraduras batendo nos cubos de pedra.
Ao invés de ditadores e agentes de espionagem truculentos, crianças correndo pelo jardim forrado de margaridas, lírios e jasmins.
Ao contrário de assassinos de aluguel, seresteiros.
Na contra-mão do estampido de tiros de pistolas, espingardas, metralhadoras e garruchas, a suavidade de cavaquinhos, bandolins, violões e uma flauta.
Ao invés de golpes de estado, saraus.
E uma lua cheia cuja luz atravessasse a vidraça e a cortina do quarto desta aludida casa das margaridas, e iluminasse um casal trocando beijos e juras de amor eterno.
Mas sei que Roberto Drummond acharia essa idéia ingênua demais.
Ele certamente não me permitiria escrevê-la, até o fim.
Meu mestre sempre preferiu beber da água turva do caos.
Ou a morte pela sede, com a dramaticidade apropriada de um personagem seu.

A Música Que Toca Sem Parar:
de Cuba, esse grande cantor e compositor (de quem Roberto Drummond era grande fã) Sílvio Rodriguez.
Cauzas y Azares.

Cuando pedro salió a su ventana
No sabía, mi amor, no sabía
Que la luz de esa clara mañana
Era luz de su último día.
Y las causas lo fueron cercando
Cotidianas, invisibles.
Y el azar se le iba enredando
Poderoso, invencible.

Cuando juan regresaba a su lecho
No sabía, oh alma querida
Que en la noche lluviosa y sin techo
Lo esperaba el amor de su vida.
Y las causas lo fueron cercando
Cotidianas, invisibles.
Y el azar se le iba enredando
Poderoso, invencible.

Cuando acabe este verso que canto
Yo no sé, yo no sé, madre mía
Si me espera la paz o el espanto;
Si el ahora o si el todavía.
Pues las causas me andan cercando
Cotidianas, invisibles.
Y el azar se me viene enredando
Poderoso, invencible.

Sunday, December 26, 2010

Dois Poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen

.














Fúrias

Escorraçadas do pecado e do sagrado
Habitam agora a mais íntima humildade
Do quotidiano. São
Torneira que se estraga atraso de autocarro
Sopa que transborda na panela
Caneta que se perde aspirador que não aspira
Táxi que não há recibo extraviado
Empurrão cotovelada espera
Burocrático desvario

Sem clamor sem olhar
Sem cabelos eriçados de serpentes
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia
Elas nos desfiam

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno
Sem rosto e sem máscara
Sem nome e sem sopro
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

Já não perseguem sacrílegos e parricidas
Preferem vítimas inocentes
Que de forma nenhuma as provocaram
Por elas o dia perde seus longos planos lisos
Seu sumo de fruta
Sua fragrância de flor
Seu marinho alvoroço

E o tempo é transformado
Em tarefa e pressa
A contra tempo



In,
Ilhas
Caminho, 2004


***


enquanto longe divagas
I

Enquanto longe divagas
E através de um mar desconhecido esqueces a palavra
- Enquanto vais à deriva das correntes
E fugitivo perseguido por nomeadas formas
A ti próprio te buscas devagar
- Enquanto percorres os labirintos da viagem
E no país de treva e gelo interrogas o mudo rosto das sombras
- Enquanto tacteias e duvidas e te espantas
E apenas como um fio te guia a tua saudade da vida
Enquanto navegas em oceanos azuis de rochas negras
E as vozes da casa te invocam e te seguem
Enquanto regressas como a ti mesmo ao mar
E sujo de algas emerges como entorpecido e como drogado
- Enquanto naufragas e te afundas e te esvais
E na praia que é teu leito como criança dormes
E devagar devagar a teu corpo regressas
Como jovem toiro espantado de se reconhecer
E como jovem toiro sacodes o teu cabelo sobre os olhos
E devagar recuperas tua mão teu gesto
E teu amor das coisas sílaba por sílaba

II

O meu amor da vida está paralisado pelo teu sono
É como ave no ar veloz detida
Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu regresso

III

Pois no ar estremece a tua alegria
- Tua jovem rijeza de arbusto -
A luz espera teu perfil teu gesto
Teu ímpeto tua fuga e desafio
Tua inteligência tua argúcia teu riso

Como ondas do mar dançam em mim os pés do teu regresso


In
O Nome das Coisas
Editorial Caminho, 1991


A Música Que Toca Sem Parar:
porque tudo o que Sophia de Mello Breyner Andresen
escreveu é lindo...
Beautiful, na voz de Steve Hogarth e seu Marillion.

Friday, December 24, 2010
























A Música Que Toca Sem Parar:
porque é véspera de natal e porque hoje acordei meio padre Marcelo Rossi... poema de Ricardo Arjona, musicado pelos brasileiros Sérgio Sá e Gê e cantado por Amelinha.

Jesus é verbo, Não Substantivo


FALAR DE JESUS É REDUNDANTE
JESUS GOSTA DE AÇÃO, NÃO DE PALAVRAS
JESUS, É MAIS DO QUE CINCO LETRAS FORMANDO UM NOME
JESUS É VERBO, NÃO SUBSTANTIVO

JESUS É MAIS QUE UMA SIMPLES E PURA TEORIA
JESUS É MAIS DO QUE LER A BÍBLIA
POIS TUDO QUE FOI NELA ESCRITO,
SE RESUME EM AMOR, VAMOS PRATICA-LÓ
JESUS MEUS AMIGOS É VERBO, NÃO SUBSTANTIVO

JESUS É MAIS QUE UM TEMPLO DE LUXO
COM TENDÊNCIA BARROCA
ELE SABE QUE ISSO NO FUNDO IMPORTA TÃO POUCO
IGREJA A GENTE LEVA NA ALMA
E SE CONSTRUI COM ATOS OS SEUS ALTARES
JESUS MEUS AMIGOS É VERBO, NÃO SUBSTANTIVO

JESUS É MAIS QUE ESSAS SENHORAS DE NEGRA CONSCIÊNCIA
QUE PRETENDEM GANHAR O CÉU COM FESTAS DE BENEFICÊNCIA
QUE FAZEM GRANDES CAMPANHAS EM NOME DE DEUS
PELO FIM DA MISÉRIA
ENGORDAM SUAS CONTAS NA SUIÇA PASSANDO FÉRIAS
JESUS É MAIS QUE JOELHAR-SE E BENZER-SE COM VEEMÊNCIA
ELE SABE QUE DE CERTO POR DENTRO LHE DOÍ A CONSCIÊNCIA
JESUS É MAIS QUE UMA FLOR NO ALTAR,
A PERDOAR OS PECADOS
JESUS MEUS AMIGOS É VERBO, E NÃO SUBSTANTIVO

JESUS FOI EXEMPLO MAIOR DO QUE DEIXOU ENSINADO
MOSTROU QUE A CASA DE SEU PAI NÃO PODE SER MERCADO
PROVOU QUE POR UM GESTO DE AMOR
QUALQUER DESEJO DE FÉ SE TORNA REALIZADO
JESUS MEUS AMIGOS É VERBO NÃO SUBSTANTIVO

JESUS CERTAMENTE NÃO ENTENDE TANTA HIPOCRISIA
DE QUEM EM SEU NOME EXPLORA SEU IRMÃO DIA-A-DIA
JESUS NÃO ACEITA O PASTOR QUE ACUMULA RIQUEZA
PREGANDO SEU NOME
JESUS MEUS IRMÃOS É VERBO, NÃO SUBSTANTIVO

NO MEU BAIRRO A MAIS RELIGIOSA ERA DONA JULINHA
QUE FALAVA DE AMOR
DIVIDINDO O POUCO QUE TINHA
EU FUI APRENDENDO AOS POUCOS
A GENTE QUE SABE O QUE PRA NOS É CERTO
NÃO É PROIBIDO PENSAR
NEM TUDO FOI ESCRITO
ME BATIZARAM QUANDO EU TINHA DOIS MESES
E NÃO ME AVISARAM
A VIDA PODE SER DIFERENTE
DO QUE NOS ENSINARAM
ME BATIZA AGORA JESUS
POR FAVOR ASSIM ENTRE AMIGOS
VOCE QUERIA MESMO
SER VERBO E NÃO SUBSTANTIVO

SENHORES NÃO DIVIDAM A FÉ EM FRONTEIRAS E PAÍSES
NESSE MUNDO HÁ MAIS RELIGIÕES
QUE MENINOS FELIZES
JESUS SE TORNARÁ VISÍVEL
SE APRENDERMOS DE FATO A VIVER COMO IRMÃOS
E A PAZ REPOUSAR NAS PALMAS DE TODAS AS MÃOS

JESUS É A MAIOR TESTEMUNHA DO AMOR QUE LHE PROFEÇO
SE HÁ HOMENS QUE JÁ MAIS SE ARREPENDEM
PORQUE SE CONFESSAM
REZANDO PADRE NOSSO, ASSASSINO NÃO RESSUSCITA
AQUELE QUE MATOU
JESUS MEUS IRMÃOS É VERBO, NÃO SUBSTANTIVO

JESUS NÃO DESÇA A TERRA E FIQUE POR AÍ
OS QUE PENSAM COMO VOCE
JÁ NÃO ESTÃO MAIS AQUI
OS HOMENS E AS PALAVRAS PASSAM
MAIS NÃO MORRE SEUS IDEAiS
PARTIRAM COM SORRISO NOS LÁBIOS
PORQUE FORAM VERBO E NÃO SUBSTANTIVO.


Feliz Natal a todos.

Monday, December 20, 2010

Tertulianos IV













há fronteiras realmente ou tua asa é muito rasa?

armadilha
o aço não é suave: translúcida,
a vidraça despedaça o
vôo rápido do pássaro incauto

fatalidade
de repente, a pedra – e a asa não
terá mais
passagem

infantil festim cruel
o pássaro (presa) jaz a-
pedrejado
aos pés solenes

poetave
eu, antes adaga, agora a-
ve para que onde houver fronteira
haja asa

poetave II
passo a catástrofe da passagem
de um a outro instante me indagando:
“derivo de que ave?”


Um Relance Para Líria Porto

redemunho

circum-arisco vento célere
– que fico o sigilo do
chão de um rio –
em plena empoeirada rua

o sol me cega me sega o sol o sol me seca
o tato e sinto a sede tanta
de um mar interno

e para que meu cerne se reensolare
– poesia não duela afagos
(meço apaziguamentos
peso ausências)
– você me traz alumbrado mar

me relenta me
cataventa

me estende versos em lamparina
adivinhando enfim onde é
mais noite em mim



Aos Sóis Que Se Apagam

alcatéia

de fauna cataclísmica
(aves bélicas
borboletas de rapina)

pervagam avessos pastores

– dentro deles há
um céu vasto
despenhadeiros
a lua alumbradora
e um abismo sobre o qual
adeja o caos que lhes medita –

à fome intensa
à sede indelével
poetas (lobos) todos
comem/bebem até as
vísceras da presa

depois
lambem o focinho
e se vão
como se nada
houvesse acontecido


Wilson Torres Nanini, policial militar de minas gerais por ofício, poeta por extravio, nasceu em Poços de Caldas/MG, em 25/01/1980. Casado, reside com a mulher Carolina em Botelhos. Cursou Letras na Unifeob, de São João da Boa Vista/SP, contudo, abandonou o curso antes de se formar. Seu primeiro livro de poemas, ainda não publicado, intitula-se Quebrantos, Relances e Abismos ao Relento.


A Música Que Toca Sem Parar:
a imortal Nina Simone gorjeia Don't Let Me Be Misunderstood.

Thursday, December 16, 2010

Frágil Coração de Poeta
















Coração de poeta é um objeto frágil, peça de cristaleira que, se cair, pode quebrar.
O meu deu um grande susto na semana que passou.
Estava deitado, encafifado com um mote qualquer, pintando na tela branca do teto mais um impossível Renoir.
Foi quando senti aquela pontadazinha no peito.
Ignorei, pensei que fosse prisão de ventre.
Não era.
Fui ficando assustado.
Diante daquela súbita ameaça, dei um salto da cama e fiz a coisa mais sensata que qualquer homem faria num momento desses: gritei por mamãe.
E ela veio.
Dona Rute, de visita, correu pra me socorrer.
Fez massagem, compressa de toalha molhada, rezou para São Judas Tadeu, mas o suadouro não parava.
O jeito foi rumar para o hospital mais próximo, antes que fosse tarde demais.
No hospital, demorou a cair a ficha.
Veio a bateria de exames de coração e a coleta de sangue suficiente para pichar um soneto num muro.
O eletrocardiograma indicava que estava tudo bem, mas o exame de sangue não deixava dúvidas: eu havia enfartado.
Enfarte é uma palavra tabu. Como a brochada, o exame de próstata e a “freada de bicicleta”.
Homem que é homem evita tocar nesses assuntos.
No entanto, ali estava eu na contra-mão da história, sofrendo por assuntos periféricos que não mereciam mais a atenção.
E absolutamente enfartado.
No escuro do quarto de hospital depois que todos se foram, chorei miúdo. Afinal, quem tem coração, costuma chorar.
Pensei nas pessoas que dependiam de meu trabalho para ter sobre suas mesas um pedaço de pão, nos que verdadeiramente me queriam bem e nos que não mereciam participar daquele pensamento dolorido na solidão de meu corner. Custou a amanhecer.
Sabino Torre, um italiano de aproximadamente 50 anos, bigode à Barão do Rio Branco, considerado uma das maiores autoridades em cardiologia em New Jersey, cuidou do caso.
Antes de entrarmos na sala de procedimento cirúrgico, enquanto uma enfermeira filipina muita bonita depilava minha virilha – o que muito me constrangia -, ele chegou ao meu ouvido e cantou a bola:
- “Deixa comigo, meu chapa. Você não poderia estar em melhores mãos. Vai ser uma viagem suave”.
Mais um calafrio.
- Viagem?
Felizmente, o cateterismo mostrou que não havia bloqueamento das artérias.
Eu não havia, verdadeiramente, enfartado.
Tratou-se de um vírus que se espalhara por várias partes do corpo e tentou, num momento de suprema audácia, se alojar no lugar sagrado onde só deveriam entrar as musas, os familiares, os bons amigos e as letras do alfabeto usadas na composição de poemas e canções.
O músculo da emoção, diante da ameaça de invasão, expele uma enzima que só é dectada através de exame sanguíneo.
Trata-se da mesmíssima enzima que anuncia o enfarte.
Após uma semana sob observação e de ter transformado minha ala do hospital numa Marquês de Sapucaí, fui liberado.
Conversando sobre o assunto com Kledir Ramil, recebi algumas recomendações, que deverei seguir à risca.
Para quem não sabe, além de inspirado cronista e cantor, ele é também dublê de proctologista e consultor de informática para leigos de todos os credos.
Usando seu método infalível irei cortar radicalmente o consumo de bebidas alcóolicas, sexo, rapé e alimentos gordurosos, como o torresmo de armazém e o pé-de-porco de botequim.
Passada essa fase de abstenção, entrarei na fase da prática de hábitos saudáveis. Caminhada na esteira, um litro de chimarrão por dia e vegetarianismo.
Vegetarianismo vem a ser um tipo de alimentação praticado por antigos povos afeminados, como os espartanos e os pelotenses, que sabidamente desenvolve a resistência das coronárias e a sensibilidade artística. Com sorte, serei parceiro de Kleiton & Kledir numa penca de canções.
Irei cortar os açúcares, as massas e, em caso supremo, os pulsos.
Se tudo isso não adiantar, instalarei um antivirus no coração.
Segundo Kledir, "se dá certo no computador, deve dar certo na gente também".
Pode ser um Norton, um McAfee, ou de uma outra marca qualquer.
Embora eu preferisse, caso já existissem no mercado, os da marca Drummond, Rimbaud ou Baudelaire.
Estes, sim, os antivírus mais adequados para coração de poeta.


A Música Que Toca Sem Parar:
Caetano Veloso e Nicinha, Alguém Cantando.

Friday, December 10, 2010

Tertulianos III


















separação

aquele homem
era a minha rotina

eu cerzia suas roupas
limpava seus sapatos

ele fazia do meu corpo
um caminho só de ida


***

afinação

há que se aprender a tirar silêncio
das coisas

quando uma coisa produz silêncio
ela está
pronta

* Nascida no Vale do Jequitinhonha, a jovem Mariana Botelho escreve poemas delicados, com frases curtas, em que a leveza vai de par com a condensação. A natureza é um de seus temas preferidos; os espaços e os sons da terra natal reverberam em seus poemas. Outro tema essencial é o corpo, em comunhão com a natureza, cantado com contida sensualidade. O Silêncio Tange o Sino é seu primeiro livro.

A Música Que Toca Sem Parar:
ela acaba de publicar O Silêncio Tange O sino, pela Ateliê Editorial.
Escreve bonito e com alma.
De meus colegas tertulianos é, talvez, uma das mais "prontas" para ser publicada.
E, esta semana, consegui até encontrar uma canção com o seu nome.
Minha colega tertuliana - tão jovem e já tão "entrada na vida"- tem uma canção com seu nome (rs) e alma... Mariana, letra e música do paraense Celso Viáfora, de quem (também) sou (muito!) fã.
Espero que a escolha agrade a gregos e goianos.
*

Mariana


Mariana
vê que vento doce o cheiro que saiu da cana
Mariana
vê que imenso verde que se abriu sobre a savana
Vê que lindo o sal da terra sob o mel da cana
Vem ver que bonito a terra despertando o broto

Mariana
vem olhar o brilho no olhar do nosso garoto
Mariana
vem olhar a terra grávida do broto
Vem molhar teus olhos na seiva da cana
Vem ver que bonito o chão que eu trabalhei

Mariana
tem que ver o tanto do verde da paina
Mariana
tem que ver o vento dançando na rama
Mariana
eu fui que plantei
pra que a terra, um dia
possa estar sadia
pro menino que eu te semeei

*

Wednesday, December 8, 2010

Tertulianos II (Líria Porto)











Respingos

e quando a chuva caía
eu ia com a enxurrada
ia beirando a calçada
descia junto com a flor
e ria a risada d'água
aquela alegria d'água
brincava que era a flor
mas depois sentia frio
lembrava-me então do rio
da flor que o rio levou
e os meus olhos choviam
eu era como a enxurrada
fui ficando poça d'água
que o tempo choveu
chorou


Insônia

a boca escancarada da noite
os urros do silêncio
as teclas mudas

não tilintam os cristais
não estilhaçam a vidraça
os amantes não sussurram
não há sinos de igreja
o mundo acabou
o relógio dorme
o tempo não passa

onde estão os latidos
os galos os gritos
os olhos do sol?

na cama imensa
o corpo exausto
o vazio da tua ausência
e os mil anos dessa noite
que me engole
que me vomita

líria porto - nasceu em outubro de 45 em araguari - triângulo mineiro - mora em belo horizonte.
dois livros publicados em portugal - borboleta desfolhada e de lua - tem poemas nas agendas da tribo (2009/2010/2011) e espalhados em vários sites da internet .


A Música Que Toca Sem Parar:

porque sei que Líria Porto gosta de escutá-lo, Renato Braz... e a delicada Anabela, composição de Mário Gil e Paulo César Pinheiro.

Monday, December 6, 2010

Um Tertuliano, Uma Canção...


















Esta semana postarei poemas de meus colegas da Tertúlia do Pão de Queijo.
Todos Os dias mostrarei um poema de um tertuliano e uma canção que escolherei a dedo, associando-a ao poema ou ao autor.
Espero que curtam.

"vou me casar com maria"
(romério rômulo)

o meu sono de poeta
o meu banho de água fria
minha vida de asceta
meu punho feito alquimia
meu estado de alerta
a minha pele arredia
minha veia toda aberta
meus delírios, meus tormentos
grito aos 4, aos 7 ventos
vou me casar com maria!

* Romério Rômulo nasceu em Felixlândia, Minas Gerais, e mora em Ouro Preto, onde é professor de Economia Política da UFOP. Prefaciou a primeira edição assinada das poesias eróticas de Bernardo Guimarães, “O Elixir do Pajé” (Dubolso, 1988), mais de 100 anos depois da edição original. Já publicou diversos livros, como “Só pedras no caminho pedras pedras só pedras nada mais” (Lemi, BH, 1979), “Anjo Tardio” (Edição do Autor, Ouro Preto, 1983), “Bené para Flauta e Murilo” (Edições Dubolso, Sabará, 1990) e a caixa “Tempo Quando” (contendo 4 livros em 2 volumes, Dubolso, 1996). Seu último livro é “Matéria Bruta” (Altana, SP, 2006). Atualmente, prepara um livro de poemas sobre o amor.


A Música Que Toca Sem Parar:
de Recife-PE fui buscar a saudosa Banda de Pau e Corda, com esta canção da autoria de Waltinho e Roberto Andrade: Flor D'água.



Maria tomando banho
Nas águas claras do rio
Seu corpo jovem moreno
Não sente o rigor do frio

Boiando a flor d’água vai
Embalando os sonhos seus
E eu olhando alimentando
Os sonhos que são bem meus

Hei de casar com Maria
Na festa da Padroeira
Deixar morrendo de inveja
As moças namoradeiras (2x)

Já vejo o corpo moreno
De rendas brancas vestido
E botões de laranjeira
Pondo o cabelo florido

Maria, minha Maria
Vou dar-te tudo que tenho
Meus canaviais tão lindos
Minha senhora de engenho

Hei de casar com Maria
Na festa da Padroeira
Deixar morrendo de inveja
As moças namoradeiras