Thursday, December 16, 2010

Frágil Coração de Poeta
















Coração de poeta é um objeto frágil, peça de cristaleira que, se cair, pode quebrar.
O meu deu um grande susto na semana que passou.
Estava deitado, encafifado com um mote qualquer, pintando na tela branca do teto mais um impossível Renoir.
Foi quando senti aquela pontadazinha no peito.
Ignorei, pensei que fosse prisão de ventre.
Não era.
Fui ficando assustado.
Diante daquela súbita ameaça, dei um salto da cama e fiz a coisa mais sensata que qualquer homem faria num momento desses: gritei por mamãe.
E ela veio.
Dona Rute, de visita, correu pra me socorrer.
Fez massagem, compressa de toalha molhada, rezou para São Judas Tadeu, mas o suadouro não parava.
O jeito foi rumar para o hospital mais próximo, antes que fosse tarde demais.
No hospital, demorou a cair a ficha.
Veio a bateria de exames de coração e a coleta de sangue suficiente para pichar um soneto num muro.
O eletrocardiograma indicava que estava tudo bem, mas o exame de sangue não deixava dúvidas: eu havia enfartado.
Enfarte é uma palavra tabu. Como a brochada, o exame de próstata e a “freada de bicicleta”.
Homem que é homem evita tocar nesses assuntos.
No entanto, ali estava eu na contra-mão da história, sofrendo por assuntos periféricos que não mereciam mais a atenção.
E absolutamente enfartado.
No escuro do quarto de hospital depois que todos se foram, chorei miúdo. Afinal, quem tem coração, costuma chorar.
Pensei nas pessoas que dependiam de meu trabalho para ter sobre suas mesas um pedaço de pão, nos que verdadeiramente me queriam bem e nos que não mereciam participar daquele pensamento dolorido na solidão de meu corner. Custou a amanhecer.
Sabino Torre, um italiano de aproximadamente 50 anos, bigode à Barão do Rio Branco, considerado uma das maiores autoridades em cardiologia em New Jersey, cuidou do caso.
Antes de entrarmos na sala de procedimento cirúrgico, enquanto uma enfermeira filipina muita bonita depilava minha virilha – o que muito me constrangia -, ele chegou ao meu ouvido e cantou a bola:
- “Deixa comigo, meu chapa. Você não poderia estar em melhores mãos. Vai ser uma viagem suave”.
Mais um calafrio.
- Viagem?
Felizmente, o cateterismo mostrou que não havia bloqueamento das artérias.
Eu não havia, verdadeiramente, enfartado.
Tratou-se de um vírus que se espalhara por várias partes do corpo e tentou, num momento de suprema audácia, se alojar no lugar sagrado onde só deveriam entrar as musas, os familiares, os bons amigos e as letras do alfabeto usadas na composição de poemas e canções.
O músculo da emoção, diante da ameaça de invasão, expele uma enzima que só é dectada através de exame sanguíneo.
Trata-se da mesmíssima enzima que anuncia o enfarte.
Após uma semana sob observação e de ter transformado minha ala do hospital numa Marquês de Sapucaí, fui liberado.
Conversando sobre o assunto com Kledir Ramil, recebi algumas recomendações, que deverei seguir à risca.
Para quem não sabe, além de inspirado cronista e cantor, ele é também dublê de proctologista e consultor de informática para leigos de todos os credos.
Usando seu método infalível irei cortar radicalmente o consumo de bebidas alcóolicas, sexo, rapé e alimentos gordurosos, como o torresmo de armazém e o pé-de-porco de botequim.
Passada essa fase de abstenção, entrarei na fase da prática de hábitos saudáveis. Caminhada na esteira, um litro de chimarrão por dia e vegetarianismo.
Vegetarianismo vem a ser um tipo de alimentação praticado por antigos povos afeminados, como os espartanos e os pelotenses, que sabidamente desenvolve a resistência das coronárias e a sensibilidade artística. Com sorte, serei parceiro de Kleiton & Kledir numa penca de canções.
Irei cortar os açúcares, as massas e, em caso supremo, os pulsos.
Se tudo isso não adiantar, instalarei um antivirus no coração.
Segundo Kledir, "se dá certo no computador, deve dar certo na gente também".
Pode ser um Norton, um McAfee, ou de uma outra marca qualquer.
Embora eu preferisse, caso já existissem no mercado, os da marca Drummond, Rimbaud ou Baudelaire.
Estes, sim, os antivírus mais adequados para coração de poeta.


A Música Que Toca Sem Parar:
Caetano Veloso e Nicinha, Alguém Cantando.

35 comments:

Zélia Guardiano said...

Não brinca , Roberto!
Que susto, amigo...
Você está proibido de ficar doente: como ficaríamos nós outros, aqui?
Ainda bem que o caso foi superado e que ainda serviu de mote para esta divertida crônica.
Graças a Deus!
Que Ele o proteja sempre, sempre.
Enorme abraço da
Zélia

Primeira Pessoa said...

o susto é antigo, como esse coração.
grato pelo carinho, que é presente, zélia!

Ana (Ballet de Palavras) said...

Roberto,
Coração aprendiz, condoído e, ou irrequieto é um coração vivo e, emotivo de endereço conhecido no lado esquerdo do nosso peito.

Mas não é perfeito, não é Roberto?! Desejamo-lo ritmado e, melodioso, todos os instantes da nossa vida. Por vezes, seu ritmo cardíaco se altera. Travesso se acelera, irrequieto se quebra e, corajoso se regenera.

Um laço enovelado e, feliz ao seu coração debilitado, emotivo e, vivo.

Ana

OutrosEncantos said...

Puxa vida, Robertooo...
Se cuida muito bem, viu?!

:)) chorou como miúdo, como só quem tem coração sabe fazer...
te gosto, viu, é menino mesmo.

é dose, passar fome e fazer um montão de sacrificio, por uma peça que gente não dispensa e ainda por cima só faz a gente sofrer...

e não brinca mesmo, Roberto...

Meu beijo e abraço, amigo.

Tania regina Contreiras said...

Ri, você, por favor, avisa a época em que a crônica foi escrita, viu? Põe uma nota, uma data, qualquer coisa assim.Que é que é isso, que enfartar a gente aqui, é?

Tá bom, você perde a saúde, não perde a piada e escreve bem pra cacete....mas, ÔÔÔ... e o nosso susto, heim???

Beijo e...ô...para de dar susto, heim!!!

T.

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) said...

Delima,
"Velho Coração de Poeta", um poeminha besta em que desanco Caetano (que adoro mais do que ele é adorado, mas isso já é outro poema: "Caetano Caetano"), postado há não muito lá no meu jardim de homenagens - sic -, agora sei de onde surrupiei o título, acredite-me, inconscientemente...
Eu já tivera o prazer de degustar sua crônica antes no BV, presidente, e o sabor da leitura fê-la grudar-se em mim, e o plágio foi-me inevitável...
Aceite mais essa homenagem, deste que homenageia tortuosamente...

Abraço outrora fagnático,
Darrama.

ana p said...

Coração de poeta é assim...
De vez em quando assusta a gente...
Beijo

líria porto said...

betinho - te leio lá, te releio aqui - e onde estiveres - alá eu!
besos

e que voz linda é essa!

Primeira Pessoa said...

líria,
então cê tá que nem eu: te cerco em todas...rs

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

a vida assusta, magnólia.
como diria guimarães rosa, viver é muito perigoso.

beijão,
r.

Primeira Pessoa said...

ramúcio,
eu tava pensando ontem neste fagnatismo.
raimundão deixou de guardar um lugar ao lado de djavan, caetano, gil, chico e Cia, quando vendeu sua alma a paulo sullivan e paulo massadas.

uma pena.

abração, desde as terras frias do benvirá!

r.

Primeira Pessoa said...

ah, moça dos outrosencantos, o segredo está em equilibrar as coisas.
sempre fui abusivo. intenso demais.
é só regular a intensidade do fogo, que tudo fica bem.

beijào,

r.

Primeira Pessoa said...

ana,
ainda quero viver muito, ver muitas coisas. tenho filhas lindas e tenho certeza de que as verei crescendo, ocupando o lugar que é delas.

este é o meu lugar.

e ainda tenho muita abobrinha pra escrever.

a vida continua!

Unknown said...

Que susto....hein, Roberto!

Esse passa qualquer soluço! Aí deve estar começando o frio. Foi em New Jersey que meu irmão sofreu o enfarto.

Se cuida, cara! Cuida de nós!

Beijos

Mirze

Primeira Pessoa said...

não foi enfarto, mirze...
foi outro trem qualquer... mas foi, acima de tudo, um susto...

a gente vai ficando véio, e as encrencas e enguiços vão aprecendo... principalmente em sujeitos desregrados como eu...rs

abraço carinhoso, só seu.

r.

Luciana Marinho said...

ainda bem que você está aí para a gente poder rir dessa história...

=)

beijão, roberto!

Wilson Torres Nanini said...

Roberto,

coração de poeta é mesmo frágil. Se bem que tem muitos por aí se dizendo poetas, mas que transmitem apenas produtos oriundos de corações de paralelepípedos.

Essa crônica, uma das mais emocionantes.

Abração!

Marcantonio said...

Se virou crônica, então tá tudo bem. Depois do susto aquela descontração de rir como remédio. Rs. E profilaxia para nós outros.

Chegamos a idade do desassossego com esses enguiços que nos põem num desconfortável estado de alerta, que, se descuidados, podem nos complicar; mas também, quando constantemente lembrados, podem nos roubar algo de um livre viver. Deve haver algum meio-termo, não é?

Um grande abraço, Roberto!

OutrosEncantos said...

Vim conferir como 'tá indo o coração do poeta :)))
e deixar beijão e abraço :))

Primeira Pessoa said...

nanini,
lembrei-me que um dia eu tava tomando uma com meu "conterrâneo postiço" zé geraldo e ele começou a contar um trem e marejou os olhos.

eu, meio alto, espantei-me:

- uai, zé cê tá chorando?

e ele, meio brabo comigo:

- tô, uai. não sou tijolo. não sou poste.dentro do meu peito tem um coração e não um ferro elétrico.

tempos depois zé geraldo seria todo de pedra, pois ganhou uma "estalta" eu sua Rodeio natal.

vou ver se acho a crônica que escrevi contando para postar aqui: "o homem que virou pedra".

abraço grande, nanini.

Primeira Pessoa said...

moça dos outrosEncantos, o coração tá ótimo, mas a traquéia, o fígado, o pâncreas, o esôfago, a pleura, os rins e o pulmão, e vesícula e, mesmo ali na "zona de baixo meretrício", não ando lá essas brastempas...rs

brincadeirinha... rs
tô bem, sim.
e sua preocupação carinhosa tem o poder de cem mil milhões de aspirinas.

abração do roberto.

Primeira Pessoa said...

marquinho,
não sei você, mas sei que abusei e abuso pra caráleo.
nasci oito ou oito mil. quando pitava unzinhos, eu pitava unzinhos... quando bebo, bebo... quando amo, amo... e se desamo...rs
nasci com o botãozinho de intensidade emperrado no máximo e tenho pagado caro por isto.

já reparou que, na vida, tudo vira crônica, depois de contado? eu tava matutando exatamente isto. qualquer coisinha, qualquer acontecimento contado, é crônica.

abraç grande, saudades de te ver por aqui.

r.

Primeira Pessoa said...

taninha, pensei que voce já conhecesse esta cronica.
tá tudo bem. ou, parafraseando o kledir, tirando o que tá ruim, o resto tá tudo bão.

beijos,

r.

Primeira Pessoa said...

lu,
a gente só se equilibra melhor nessa corda da bamba da vida quando adquire a capacidade de rir de nós próprios, de nossas mazelas, deslizes e tombos de traseiro no chão.

se o assunto é sério, enfrentamos com a seriedade compatível naquele momento.
uma vez superado e virada a página, só risos.
amargura? só o jiló é amargo e bom. rs


beijão procê,

r.

Unknown said...

coração de poeta é ninho em desalinho, cabe, coube, nunca extrapola de sentir, e pulsa sempre em desmedidas,


grande abraço, ó mineiro das neves de Newark

Pólen Radioativo said...

Cuide-se, querido! Há os que precisam de ti para o pão e os que precisam para o poema nosso de cada dia.
Mas, no final das contas e das precisões, precisamos mesmo é de ti tranquilo e com saúde... Uma existência que, longe ou perto, nos faz muito bem.

Um beijo.

P.S.: Musica linda!!!

Primeira Pessoa said...

zé de assis,
não sei com você (mas acho que também foi por aí), o limite era tocar as estrelas com a ponta dos dedos.

o fígado não suporta as alturas.

beijão,

r.

Primeira Pessoa said...

pólen,
tô pelejando. reconheço a precisança de algumas pessoas da minha presença e tô firmão neste propósito.

agradeço o carinho.

abração do
roberto.

Lua Nova said...

Se o seu "falso infarto" (nem por isso menos doloroso e assustador) servir pra vc se cuidar e tomar todas aquelas providências (vai fazer tudo que disse, não vai?) para ter mais bem estar e disposição, então digamos que dos males foi o menor. Sua responsabilidade hoje em dia vai além das paredes do seu lar. Hoje tem a dimensão cibernética possível. Tu te tornas eternamente... bla, bla bla...
se cuida, tome seus cuidados, continue sendo bem humorado e mantenha o blog sempre atualizado, tá? rsrs
Vc conseguiu, apesar da seriedade do causo, fazer um texto muito bom e bem humorado (uma característica sua que eu adoro).
Beijokas e uma semana perfeita pra vc.
Beijos em dona Rute. Ela deve ter levado um baita susto também.

Jorge Pimenta said...

ei, amigo meu,
nem de propósito. há dias, uma amiga que acompanha esta nossa tertúlia inter-bloguica perguntava-me por ti, que andavas meio desaparecido. e mal sabia eu que o sócrates e o cavaco tinham que ver com tudo isso... ai, este sistema de inteligência secreto que por aqui anda... desta foi mesmo de vez. :)
um abração, amigo roberto!
p.s. melhor que pelo SIS do que por estares a carpir o quase quase do teu cruzeiraço, hein? :) mas, melhor ainda, seria por estares a desfrutar desse teu verão - que por cá é apenas palavra de sentido nulo (irra, com temperaturas destas, já só falta nevar, hehe).

Jorge Pimenta said...

querido amigo, o coração de poeta não sucumbe à materialidade. as pontadas e as ameaças víricas são apenas reminiscência vaga da sua primordialidade.
um forte abraço!
(pelo sim pelo não, agrada-me saber que esta crónica é apenas um exercício retórico. quem suportaria converter-se ao vegetarianismo ou abdicar de carne de porco, álcool e sexo, hihihi).

Primeira Pessoa said...

jorgíssimo,
cê esqueceu que estou em new jersey?
e que aqui anda mais frio que o inferno?

recebi o livro de um conterrâneo seu, o josé rui teixeira. o gajo, além de escrever muito bem é portuense (infelizmente portista...rs) e foi amigo pessoal de daniel faria.

Diáspora, o livro que me chegou às mãos é repleto de belíssimos momentos. já estou selecionando uns poemas para postar aqui, ao som de sergio godinho, obviamente (embora eu ache que o poeta preferisse uma trilha de caetano veloso). rs

saudades de ti, poeta de braga. falando em braga, o clube da sua terra livrou-se de uma dor de cabeça: o guarda-redes felipe foi despachado para o flamengo.

e o nosso cruzeiro?
ainda não contratou ninguém. estamos a três peças de ficarmos em excelente posição na disputa da Libertadores e do Brasileirão 2011. tomara que os dirigentes não durmam no ponto.

abraço grande de um saudoso

roberto.

ps: do sexo desisti faz muito tempo...rs
e em 2011 cortarei o álcool, as gorduras, os açúcares e, como disse na crônica, os pulsos. ê, vidinha!

Primeira Pessoa said...

lua,
o occorrido se deu faz muito tempo. talvez uns quatro, cinco anos. e, assim sendo, sinto-me na obrigação de lhe confessar que não aprendi a lição. continua desafiando e desafinando.

mas, como o ano novo começa em menos de duas semanas, estou cheios de boas intenções.
já fiz uma lista imensa de resoluções.

aguardem-me.

abraço grande do

roberto.

Batom e poesias said...

Menino!
QQe atrasada estou por aqui!
Não fosse a situação, eu gargalhava em cada parágrafo.
"Parceiro de Kleiton e Kledir" é ótimo!
Você está bem vivo, mas desenterra umas pérolas!
Como essa música do Caetano.
Bjs

Primeira Pessoa said...

rossana,
as parcerias com kleiton e kledir já rolaram;-)
fizemos duas belas canções a seis mãos (Água e Vinho e A Outra Metade)... tomara que um dia eles gravem meus arremedos de letra.
beijo grande,
r.