Friday, December 31, 2010

Receita de ano novo






















Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


A Música Que Toca Sem Parar:
Rita Ribeiro canta de Caetano Veloso, Oração ao Tempo.

Wednesday, December 29, 2010

Tramas de Um tema Fugidio

.





















Nem sempre quem vive do ofício de escrever consegue traduzir em palavras as suas visões, obsessões e sentimentos. Já me frustrei em várias situações, vendo-me obrigado a enterrar temas que julgava bons.
Alguns eram de cunho pessoal, outros meramente circunstanciais.
Os circunstanciais costumam passar.
Os de cunho pessoal, não.
E ficam ardendo em quem não teve lastro para parir seu invento, marcando na pele da alma como se ferro quente fosse.
Quando minha avó morreu, eu quis escrever uma crônica declarando a ela todo o meu amor. Tínhamos uma história maior do que aquelas normalmente inerentes - e que já são imensas, por si - a uma avó e seu neto.
Eu, que nasci à luz de uma lamparina numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, tive em Ana Emília a parteira.
Foi por suas mãos que vim ao mundo. Ela foi a primeira pessoa a me tocar e a embalar um choro meu.
Cresci apreciando seus frangos ao molho pardo, seus biscoitos de polvilho e a habilidade de alinhavar versos de encantadora pureza.
Acho que meu gosto pela poesia veio dali, daquelas singelas trovinhas de Ana Emília.
Mas Ana Emília se foi.
Ao contrário de tanta gente que pede a conta da vida, paga e sobe, contente, Ana Emília driblou, o quanto pode, o “garçom” da vida.
Tinha 104 anos quando se viu obrigada a assinar a fatura.
Deixou saudades, lições preciosas, e uma lacuna impossível de ser preenchida.
Senti tanto sua morte, que não logrei escrever absolutamente nada que traduzisse o que sentia - e sinto - por ela.
Sentava-me à frente do computador e não conseguia digitar mais do que meia dúzia de frases. Lia-as em voz alta, relia, tentava costurar palavras às emoções e apagava tudo, logo a seguir.
Mais de um ano depois de Ana Emília nos ter deixado, vira e mexe, a vontade de escrever alguma coisa para ela renasce. E me ilude, uma vez mais.
Como uma brasa acesa pela brisa da saudade, a fogueira da inspiração chega a se insinuar. Mas bate um vento mais forte que a tudo apaga, bloqueando as emoções.
E uma chuvinha fina, a do desânimo, começa a respingar sobre as idéias, arrefecendo o desejo de homenagear minha avó.
Mas esta não é a única frustração neste, digamos, “departamento”.
Existem outros temas que também não foram bem resolvidos, mas que o precisam ser.
Durante um bom tempo de um tempo bom da minha vida, pensei em escrever uma história de amor.
O palco: Santana dos Ferros, terra de Roberto Drummond, uma figura definitiva em minha trajetória de operário da palavra.
Como um pupilo que provocasse o mestre, eu queria surpreender Roberto, que tinha obsessão pela morte. Seus livros evocavam isto:
Quando Fui Morto em Cuba, A Morte de D.J. em Paris, O Dia em que Ernest Hemingway Morreu Crucificado, Os Mortos Não Dançam Valsa, sua última publicação, atestam bem essa obsessão.
E eu queria algo que evocasse e celebrasse a vida.
Uma estória que, ao contrário das suas, tivesse um final feliz.
Uma estória simplória como a água da chuva, cuja sofisticação residisse justamente nessa singularidade.
Não haveria eletrizantes perseguições policiais, mas uma charrete rodando numa estrada de pé-de-moleque, ao som da percussão das ferraduras batendo nos cubos de pedra.
Ao invés de ditadores e agentes de espionagem truculentos, crianças correndo pelo jardim forrado de margaridas, lírios e jasmins.
Ao contrário de assassinos de aluguel, seresteiros.
Na contra-mão do estampido de tiros de pistolas, espingardas, metralhadoras e garruchas, a suavidade de cavaquinhos, bandolins, violões e uma flauta.
Ao invés de golpes de estado, saraus.
E uma lua cheia cuja luz atravessasse a vidraça e a cortina do quarto desta aludida casa das margaridas, e iluminasse um casal trocando beijos e juras de amor eterno.
Mas sei que Roberto Drummond acharia essa idéia ingênua demais.
Ele certamente não me permitiria escrevê-la, até o fim.
Meu mestre sempre preferiu beber da água turva do caos.
Ou a morte pela sede, com a dramaticidade apropriada de um personagem seu.

A Música Que Toca Sem Parar:
de Cuba, esse grande cantor e compositor (de quem Roberto Drummond era grande fã) Sílvio Rodriguez.
Cauzas y Azares.

Cuando pedro salió a su ventana
No sabía, mi amor, no sabía
Que la luz de esa clara mañana
Era luz de su último día.
Y las causas lo fueron cercando
Cotidianas, invisibles.
Y el azar se le iba enredando
Poderoso, invencible.

Cuando juan regresaba a su lecho
No sabía, oh alma querida
Que en la noche lluviosa y sin techo
Lo esperaba el amor de su vida.
Y las causas lo fueron cercando
Cotidianas, invisibles.
Y el azar se le iba enredando
Poderoso, invencible.

Cuando acabe este verso que canto
Yo no sé, yo no sé, madre mía
Si me espera la paz o el espanto;
Si el ahora o si el todavía.
Pues las causas me andan cercando
Cotidianas, invisibles.
Y el azar se me viene enredando
Poderoso, invencible.

Sunday, December 26, 2010

Dois Poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen

.














Fúrias

Escorraçadas do pecado e do sagrado
Habitam agora a mais íntima humildade
Do quotidiano. São
Torneira que se estraga atraso de autocarro
Sopa que transborda na panela
Caneta que se perde aspirador que não aspira
Táxi que não há recibo extraviado
Empurrão cotovelada espera
Burocrático desvario

Sem clamor sem olhar
Sem cabelos eriçados de serpentes
Com as meticulosas mãos do dia-a-dia
Elas nos desfiam

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno
Sem rosto e sem máscara
Sem nome e sem sopro
São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

Já não perseguem sacrílegos e parricidas
Preferem vítimas inocentes
Que de forma nenhuma as provocaram
Por elas o dia perde seus longos planos lisos
Seu sumo de fruta
Sua fragrância de flor
Seu marinho alvoroço

E o tempo é transformado
Em tarefa e pressa
A contra tempo



In,
Ilhas
Caminho, 2004


***


enquanto longe divagas
I

Enquanto longe divagas
E através de um mar desconhecido esqueces a palavra
- Enquanto vais à deriva das correntes
E fugitivo perseguido por nomeadas formas
A ti próprio te buscas devagar
- Enquanto percorres os labirintos da viagem
E no país de treva e gelo interrogas o mudo rosto das sombras
- Enquanto tacteias e duvidas e te espantas
E apenas como um fio te guia a tua saudade da vida
Enquanto navegas em oceanos azuis de rochas negras
E as vozes da casa te invocam e te seguem
Enquanto regressas como a ti mesmo ao mar
E sujo de algas emerges como entorpecido e como drogado
- Enquanto naufragas e te afundas e te esvais
E na praia que é teu leito como criança dormes
E devagar devagar a teu corpo regressas
Como jovem toiro espantado de se reconhecer
E como jovem toiro sacodes o teu cabelo sobre os olhos
E devagar recuperas tua mão teu gesto
E teu amor das coisas sílaba por sílaba

II

O meu amor da vida está paralisado pelo teu sono
É como ave no ar veloz detida
Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu regresso

III

Pois no ar estremece a tua alegria
- Tua jovem rijeza de arbusto -
A luz espera teu perfil teu gesto
Teu ímpeto tua fuga e desafio
Tua inteligência tua argúcia teu riso

Como ondas do mar dançam em mim os pés do teu regresso


In
O Nome das Coisas
Editorial Caminho, 1991


A Música Que Toca Sem Parar:
porque tudo o que Sophia de Mello Breyner Andresen
escreveu é lindo...
Beautiful, na voz de Steve Hogarth e seu Marillion.

Friday, December 24, 2010
























A Música Que Toca Sem Parar:
porque é véspera de natal e porque hoje acordei meio padre Marcelo Rossi... poema de Ricardo Arjona, musicado pelos brasileiros Sérgio Sá e Gê e cantado por Amelinha.

Jesus é verbo, Não Substantivo


FALAR DE JESUS É REDUNDANTE
JESUS GOSTA DE AÇÃO, NÃO DE PALAVRAS
JESUS, É MAIS DO QUE CINCO LETRAS FORMANDO UM NOME
JESUS É VERBO, NÃO SUBSTANTIVO

JESUS É MAIS QUE UMA SIMPLES E PURA TEORIA
JESUS É MAIS DO QUE LER A BÍBLIA
POIS TUDO QUE FOI NELA ESCRITO,
SE RESUME EM AMOR, VAMOS PRATICA-LÓ
JESUS MEUS AMIGOS É VERBO, NÃO SUBSTANTIVO

JESUS É MAIS QUE UM TEMPLO DE LUXO
COM TENDÊNCIA BARROCA
ELE SABE QUE ISSO NO FUNDO IMPORTA TÃO POUCO
IGREJA A GENTE LEVA NA ALMA
E SE CONSTRUI COM ATOS OS SEUS ALTARES
JESUS MEUS AMIGOS É VERBO, NÃO SUBSTANTIVO

JESUS É MAIS QUE ESSAS SENHORAS DE NEGRA CONSCIÊNCIA
QUE PRETENDEM GANHAR O CÉU COM FESTAS DE BENEFICÊNCIA
QUE FAZEM GRANDES CAMPANHAS EM NOME DE DEUS
PELO FIM DA MISÉRIA
ENGORDAM SUAS CONTAS NA SUIÇA PASSANDO FÉRIAS
JESUS É MAIS QUE JOELHAR-SE E BENZER-SE COM VEEMÊNCIA
ELE SABE QUE DE CERTO POR DENTRO LHE DOÍ A CONSCIÊNCIA
JESUS É MAIS QUE UMA FLOR NO ALTAR,
A PERDOAR OS PECADOS
JESUS MEUS AMIGOS É VERBO, E NÃO SUBSTANTIVO

JESUS FOI EXEMPLO MAIOR DO QUE DEIXOU ENSINADO
MOSTROU QUE A CASA DE SEU PAI NÃO PODE SER MERCADO
PROVOU QUE POR UM GESTO DE AMOR
QUALQUER DESEJO DE FÉ SE TORNA REALIZADO
JESUS MEUS AMIGOS É VERBO NÃO SUBSTANTIVO

JESUS CERTAMENTE NÃO ENTENDE TANTA HIPOCRISIA
DE QUEM EM SEU NOME EXPLORA SEU IRMÃO DIA-A-DIA
JESUS NÃO ACEITA O PASTOR QUE ACUMULA RIQUEZA
PREGANDO SEU NOME
JESUS MEUS IRMÃOS É VERBO, NÃO SUBSTANTIVO

NO MEU BAIRRO A MAIS RELIGIOSA ERA DONA JULINHA
QUE FALAVA DE AMOR
DIVIDINDO O POUCO QUE TINHA
EU FUI APRENDENDO AOS POUCOS
A GENTE QUE SABE O QUE PRA NOS É CERTO
NÃO É PROIBIDO PENSAR
NEM TUDO FOI ESCRITO
ME BATIZARAM QUANDO EU TINHA DOIS MESES
E NÃO ME AVISARAM
A VIDA PODE SER DIFERENTE
DO QUE NOS ENSINARAM
ME BATIZA AGORA JESUS
POR FAVOR ASSIM ENTRE AMIGOS
VOCE QUERIA MESMO
SER VERBO E NÃO SUBSTANTIVO

SENHORES NÃO DIVIDAM A FÉ EM FRONTEIRAS E PAÍSES
NESSE MUNDO HÁ MAIS RELIGIÕES
QUE MENINOS FELIZES
JESUS SE TORNARÁ VISÍVEL
SE APRENDERMOS DE FATO A VIVER COMO IRMÃOS
E A PAZ REPOUSAR NAS PALMAS DE TODAS AS MÃOS

JESUS É A MAIOR TESTEMUNHA DO AMOR QUE LHE PROFEÇO
SE HÁ HOMENS QUE JÁ MAIS SE ARREPENDEM
PORQUE SE CONFESSAM
REZANDO PADRE NOSSO, ASSASSINO NÃO RESSUSCITA
AQUELE QUE MATOU
JESUS MEUS IRMÃOS É VERBO, NÃO SUBSTANTIVO

JESUS NÃO DESÇA A TERRA E FIQUE POR AÍ
OS QUE PENSAM COMO VOCE
JÁ NÃO ESTÃO MAIS AQUI
OS HOMENS E AS PALAVRAS PASSAM
MAIS NÃO MORRE SEUS IDEAiS
PARTIRAM COM SORRISO NOS LÁBIOS
PORQUE FORAM VERBO E NÃO SUBSTANTIVO.


Feliz Natal a todos.

Monday, December 20, 2010

Tertulianos IV













há fronteiras realmente ou tua asa é muito rasa?

armadilha
o aço não é suave: translúcida,
a vidraça despedaça o
vôo rápido do pássaro incauto

fatalidade
de repente, a pedra – e a asa não
terá mais
passagem

infantil festim cruel
o pássaro (presa) jaz a-
pedrejado
aos pés solenes

poetave
eu, antes adaga, agora a-
ve para que onde houver fronteira
haja asa

poetave II
passo a catástrofe da passagem
de um a outro instante me indagando:
“derivo de que ave?”


Um Relance Para Líria Porto

redemunho

circum-arisco vento célere
– que fico o sigilo do
chão de um rio –
em plena empoeirada rua

o sol me cega me sega o sol o sol me seca
o tato e sinto a sede tanta
de um mar interno

e para que meu cerne se reensolare
– poesia não duela afagos
(meço apaziguamentos
peso ausências)
– você me traz alumbrado mar

me relenta me
cataventa

me estende versos em lamparina
adivinhando enfim onde é
mais noite em mim



Aos Sóis Que Se Apagam

alcatéia

de fauna cataclísmica
(aves bélicas
borboletas de rapina)

pervagam avessos pastores

– dentro deles há
um céu vasto
despenhadeiros
a lua alumbradora
e um abismo sobre o qual
adeja o caos que lhes medita –

à fome intensa
à sede indelével
poetas (lobos) todos
comem/bebem até as
vísceras da presa

depois
lambem o focinho
e se vão
como se nada
houvesse acontecido


Wilson Torres Nanini, policial militar de minas gerais por ofício, poeta por extravio, nasceu em Poços de Caldas/MG, em 25/01/1980. Casado, reside com a mulher Carolina em Botelhos. Cursou Letras na Unifeob, de São João da Boa Vista/SP, contudo, abandonou o curso antes de se formar. Seu primeiro livro de poemas, ainda não publicado, intitula-se Quebrantos, Relances e Abismos ao Relento.


A Música Que Toca Sem Parar:
a imortal Nina Simone gorjeia Don't Let Me Be Misunderstood.

Thursday, December 16, 2010

Frágil Coração de Poeta
















Coração de poeta é um objeto frágil, peça de cristaleira que, se cair, pode quebrar.
O meu deu um grande susto na semana que passou.
Estava deitado, encafifado com um mote qualquer, pintando na tela branca do teto mais um impossível Renoir.
Foi quando senti aquela pontadazinha no peito.
Ignorei, pensei que fosse prisão de ventre.
Não era.
Fui ficando assustado.
Diante daquela súbita ameaça, dei um salto da cama e fiz a coisa mais sensata que qualquer homem faria num momento desses: gritei por mamãe.
E ela veio.
Dona Rute, de visita, correu pra me socorrer.
Fez massagem, compressa de toalha molhada, rezou para São Judas Tadeu, mas o suadouro não parava.
O jeito foi rumar para o hospital mais próximo, antes que fosse tarde demais.
No hospital, demorou a cair a ficha.
Veio a bateria de exames de coração e a coleta de sangue suficiente para pichar um soneto num muro.
O eletrocardiograma indicava que estava tudo bem, mas o exame de sangue não deixava dúvidas: eu havia enfartado.
Enfarte é uma palavra tabu. Como a brochada, o exame de próstata e a “freada de bicicleta”.
Homem que é homem evita tocar nesses assuntos.
No entanto, ali estava eu na contra-mão da história, sofrendo por assuntos periféricos que não mereciam mais a atenção.
E absolutamente enfartado.
No escuro do quarto de hospital depois que todos se foram, chorei miúdo. Afinal, quem tem coração, costuma chorar.
Pensei nas pessoas que dependiam de meu trabalho para ter sobre suas mesas um pedaço de pão, nos que verdadeiramente me queriam bem e nos que não mereciam participar daquele pensamento dolorido na solidão de meu corner. Custou a amanhecer.
Sabino Torre, um italiano de aproximadamente 50 anos, bigode à Barão do Rio Branco, considerado uma das maiores autoridades em cardiologia em New Jersey, cuidou do caso.
Antes de entrarmos na sala de procedimento cirúrgico, enquanto uma enfermeira filipina muita bonita depilava minha virilha – o que muito me constrangia -, ele chegou ao meu ouvido e cantou a bola:
- “Deixa comigo, meu chapa. Você não poderia estar em melhores mãos. Vai ser uma viagem suave”.
Mais um calafrio.
- Viagem?
Felizmente, o cateterismo mostrou que não havia bloqueamento das artérias.
Eu não havia, verdadeiramente, enfartado.
Tratou-se de um vírus que se espalhara por várias partes do corpo e tentou, num momento de suprema audácia, se alojar no lugar sagrado onde só deveriam entrar as musas, os familiares, os bons amigos e as letras do alfabeto usadas na composição de poemas e canções.
O músculo da emoção, diante da ameaça de invasão, expele uma enzima que só é dectada através de exame sanguíneo.
Trata-se da mesmíssima enzima que anuncia o enfarte.
Após uma semana sob observação e de ter transformado minha ala do hospital numa Marquês de Sapucaí, fui liberado.
Conversando sobre o assunto com Kledir Ramil, recebi algumas recomendações, que deverei seguir à risca.
Para quem não sabe, além de inspirado cronista e cantor, ele é também dublê de proctologista e consultor de informática para leigos de todos os credos.
Usando seu método infalível irei cortar radicalmente o consumo de bebidas alcóolicas, sexo, rapé e alimentos gordurosos, como o torresmo de armazém e o pé-de-porco de botequim.
Passada essa fase de abstenção, entrarei na fase da prática de hábitos saudáveis. Caminhada na esteira, um litro de chimarrão por dia e vegetarianismo.
Vegetarianismo vem a ser um tipo de alimentação praticado por antigos povos afeminados, como os espartanos e os pelotenses, que sabidamente desenvolve a resistência das coronárias e a sensibilidade artística. Com sorte, serei parceiro de Kleiton & Kledir numa penca de canções.
Irei cortar os açúcares, as massas e, em caso supremo, os pulsos.
Se tudo isso não adiantar, instalarei um antivirus no coração.
Segundo Kledir, "se dá certo no computador, deve dar certo na gente também".
Pode ser um Norton, um McAfee, ou de uma outra marca qualquer.
Embora eu preferisse, caso já existissem no mercado, os da marca Drummond, Rimbaud ou Baudelaire.
Estes, sim, os antivírus mais adequados para coração de poeta.


A Música Que Toca Sem Parar:
Caetano Veloso e Nicinha, Alguém Cantando.

Friday, December 10, 2010

Tertulianos III


















separação

aquele homem
era a minha rotina

eu cerzia suas roupas
limpava seus sapatos

ele fazia do meu corpo
um caminho só de ida


***

afinação

há que se aprender a tirar silêncio
das coisas

quando uma coisa produz silêncio
ela está
pronta

* Nascida no Vale do Jequitinhonha, a jovem Mariana Botelho escreve poemas delicados, com frases curtas, em que a leveza vai de par com a condensação. A natureza é um de seus temas preferidos; os espaços e os sons da terra natal reverberam em seus poemas. Outro tema essencial é o corpo, em comunhão com a natureza, cantado com contida sensualidade. O Silêncio Tange o Sino é seu primeiro livro.

A Música Que Toca Sem Parar:
ela acaba de publicar O Silêncio Tange O sino, pela Ateliê Editorial.
Escreve bonito e com alma.
De meus colegas tertulianos é, talvez, uma das mais "prontas" para ser publicada.
E, esta semana, consegui até encontrar uma canção com o seu nome.
Minha colega tertuliana - tão jovem e já tão "entrada na vida"- tem uma canção com seu nome (rs) e alma... Mariana, letra e música do paraense Celso Viáfora, de quem (também) sou (muito!) fã.
Espero que a escolha agrade a gregos e goianos.
*

Mariana


Mariana
vê que vento doce o cheiro que saiu da cana
Mariana
vê que imenso verde que se abriu sobre a savana
Vê que lindo o sal da terra sob o mel da cana
Vem ver que bonito a terra despertando o broto

Mariana
vem olhar o brilho no olhar do nosso garoto
Mariana
vem olhar a terra grávida do broto
Vem molhar teus olhos na seiva da cana
Vem ver que bonito o chão que eu trabalhei

Mariana
tem que ver o tanto do verde da paina
Mariana
tem que ver o vento dançando na rama
Mariana
eu fui que plantei
pra que a terra, um dia
possa estar sadia
pro menino que eu te semeei

*

Wednesday, December 8, 2010

Tertulianos II (Líria Porto)











Respingos

e quando a chuva caía
eu ia com a enxurrada
ia beirando a calçada
descia junto com a flor
e ria a risada d'água
aquela alegria d'água
brincava que era a flor
mas depois sentia frio
lembrava-me então do rio
da flor que o rio levou
e os meus olhos choviam
eu era como a enxurrada
fui ficando poça d'água
que o tempo choveu
chorou


Insônia

a boca escancarada da noite
os urros do silêncio
as teclas mudas

não tilintam os cristais
não estilhaçam a vidraça
os amantes não sussurram
não há sinos de igreja
o mundo acabou
o relógio dorme
o tempo não passa

onde estão os latidos
os galos os gritos
os olhos do sol?

na cama imensa
o corpo exausto
o vazio da tua ausência
e os mil anos dessa noite
que me engole
que me vomita

líria porto - nasceu em outubro de 45 em araguari - triângulo mineiro - mora em belo horizonte.
dois livros publicados em portugal - borboleta desfolhada e de lua - tem poemas nas agendas da tribo (2009/2010/2011) e espalhados em vários sites da internet .


A Música Que Toca Sem Parar:

porque sei que Líria Porto gosta de escutá-lo, Renato Braz... e a delicada Anabela, composição de Mário Gil e Paulo César Pinheiro.

Monday, December 6, 2010

Um Tertuliano, Uma Canção...


















Esta semana postarei poemas de meus colegas da Tertúlia do Pão de Queijo.
Todos Os dias mostrarei um poema de um tertuliano e uma canção que escolherei a dedo, associando-a ao poema ou ao autor.
Espero que curtam.

"vou me casar com maria"
(romério rômulo)

o meu sono de poeta
o meu banho de água fria
minha vida de asceta
meu punho feito alquimia
meu estado de alerta
a minha pele arredia
minha veia toda aberta
meus delírios, meus tormentos
grito aos 4, aos 7 ventos
vou me casar com maria!

* Romério Rômulo nasceu em Felixlândia, Minas Gerais, e mora em Ouro Preto, onde é professor de Economia Política da UFOP. Prefaciou a primeira edição assinada das poesias eróticas de Bernardo Guimarães, “O Elixir do Pajé” (Dubolso, 1988), mais de 100 anos depois da edição original. Já publicou diversos livros, como “Só pedras no caminho pedras pedras só pedras nada mais” (Lemi, BH, 1979), “Anjo Tardio” (Edição do Autor, Ouro Preto, 1983), “Bené para Flauta e Murilo” (Edições Dubolso, Sabará, 1990) e a caixa “Tempo Quando” (contendo 4 livros em 2 volumes, Dubolso, 1996). Seu último livro é “Matéria Bruta” (Altana, SP, 2006). Atualmente, prepara um livro de poemas sobre o amor.


A Música Que Toca Sem Parar:
de Recife-PE fui buscar a saudosa Banda de Pau e Corda, com esta canção da autoria de Waltinho e Roberto Andrade: Flor D'água.



Maria tomando banho
Nas águas claras do rio
Seu corpo jovem moreno
Não sente o rigor do frio

Boiando a flor d’água vai
Embalando os sonhos seus
E eu olhando alimentando
Os sonhos que são bem meus

Hei de casar com Maria
Na festa da Padroeira
Deixar morrendo de inveja
As moças namoradeiras (2x)

Já vejo o corpo moreno
De rendas brancas vestido
E botões de laranjeira
Pondo o cabelo florido

Maria, minha Maria
Vou dar-te tudo que tenho
Meus canaviais tão lindos
Minha senhora de engenho

Hei de casar com Maria
Na festa da Padroeira
Deixar morrendo de inveja
As moças namoradeiras

Saturday, November 27, 2010

.






















Limando o Lima

Fosse aqui nos Estados Unidos, alguém com o sobrenome Lima iria procurar quem inventou a expressão “Mandar o Lima” e processá-lo. O bordão é sinônimo de descaso e é usado toda vez que alguém não quer ir a algum compromisso, e resolve mandar o Lima em seu lugar. Dizem que Tim Maia mandou o Lima a muitos de seus shows, e que teria sido ele o cunhador do mote.
Estivesse vivo e morando nos Estados Unidos, algum distante parente meu arranjaria um jeito de processá-lo, demandando milhões. Aqui se processa por tudo. Teve uma dona que ganhou uma grana porque uma lanchonete McDonalds serviu-lhe um café quente. Já no carro, o copo de café caiu-lhe sobre o colo, queimando parte das coxas. Isto talvez explique o cafezinho morno que andam servindo por aí.
Nos anos noventa, “Bráulios” do Oiapoque ao Chuí bem que poderiam ter se manifestado em tribunal. Foram injustamente estigmatizados.
Fosse o Brasil os Estados Unidos, o processo teria sido movido contra o ministério da Saúde, que na campanha de prevenção contra a aids, sugeriu que se plastificasse, encapuzasse, encamisasse os suscetíveis a doenças sexualmente transmissíveis, Bráulios de todo o país.
Os imprudentes burocratas da Saúde teriam facilitado as coisas sem traumatizar ou ofender ninguém, tivessem escolhido um nome que não quisesse dizer outra coisa, que não o próprio dito-cujo. Qualquer slogan simpático resolveria:
“Não corra riscos desnecessários! Na hora da transa, plastifique o seu Bilau”.
Não conheço ninguém com esse nome. Bilau da Silva; Bilau Osório; Bilau de Andrade.
Essa de mandar o Lima é uma bossa relativamente nova. Mas existem registrados alguns casos bem antigos. Dizem que o Lima fez muitos dos exames anti-dopings de Diego Maradona, quando este jogava no Napoli. Aliás, era o Limone quem fazia o xixi no lugar do baixinho.
Aldir Blanc narra em seu livro Rua dos Artistas & Arredores, uma preciosidade, que conto aqui com algumas “adaptações”.
Um rapaz do bairro havia combinado de fazer uma serenata junto à janela de uma moça. Seria uma serenata em que pediria a mão da beldade em casamento, e para a qual já estavam confirmados alguns dos melhores músicos da região.
Os preparativos corriam dentro dos conformes e houve até quem consultasse a folhinha Mariana para ver se seria noite de lua cheia. Afinal, serenata e lua cheia ficam perfeitas juntas.
A uma semana da grande serenata, no entanto, o candidato a noivo classificou-se para as semifinais de um campeonato de sinuca no bairro vizinho. A partir daquele momento criou-se um impasse. E ele teria que tomar uma decisão importante.
Uma decisão que denotasse responsabilidade e bom senso.
Foi assim que ele acabou em terceiro lugar no campeonato, sem fazer feio na serenata.
Um amigo dele – provavelmente de sobrenome Lima – fez um emocionado discurso, declamando versos românticos e pedindo a mão da noiva em nome do ausente, informando que este tivera um “compromisso inadiável”.
Foi muito aplaudido e o pai da moça não só permitiu o namoro, como ainda abriu uma garrafa de uísque, que guardara durante muitos anos para uma ocasião especial.
Se aconteceu, verdadeiramente, eu não sei, mas o certo é que todos estamos sujeitos a levar um bolo. E muitos destes bolos são involuntários. Aconteceu, muito recentemente, comigo.
Kiko Sales descobriu que seria aniversário de César Augusto, amigo querido de ambos. Precisávamos homenageá-lo.
Combinamos com outros amigos comuns de sairmos juntos, e celebrarmos a data magna do jornalista. Só que César e a esposa Luciana estavam de viagem marcada para as Bahamas naquele dia, e não poderia participar. Na ausência deles, remarcamos para a volta.
Quando ligamos novamente para avisar da nova farra, ficamos sabendo que na data escolhida, eles estariam a trabalho em Boston.
Não desanimamos.
Saímos, jantamos, festejamos e ligamos para ele na hora do parabéns, com todos soltando a voz em desafinado uníssono. Até os garçons ajudaram a engrossar o coro ligeiramente alcoolizado.
No dia seguinte, logo pela manhã, encontro no celular uma mensagem do aniversariante:
- Foi minha melhor festa de aniversário de que não participei. Muito obrigado!
Espirituoso, César Augusto não perdeu a piada e nem os amigos.
E ainda ganhou, de presente, esta crônica aqui.

A Música Que Toca Sem Parar:
porque César Augusto (foto) é fã de Vander Lee, uma canção do último disco (Faro) do cantor e compositor do bairro Olhas d'Água, em Belo Horizonte.
De Vander Lee, a delicada e melódica Farol.

Você é meu farol
Meu talismã, meu sol
Meu dia, meu dial

Você é meu astral
Meu mapa virtual
Meu raio-x emocional

Você é minha foz
metade de nós
Meu adubo meu sal

você é minha e só
E nunca vai ser só
nem de fulano de tal

Quando caminho no escuro
É por você que procuro
Somando tudo é tão raro
Meu paladar e seu faro

Monday, November 22, 2010










há dias em que acordamos e percebemos tudo
o recorte das cidades no horizonte
a distância que há nos caminhos que rasgam os corações
como se fossem searas de trigo
o nome de certas coisas que só sentimos num abraço

depois percorremos a mão pelo granito
como se fossemos o tempo
e como se a vida não fosse mais do que uma claridade
que invade pela frincha da porta o quarto escuro

é então que descobrimos
num desses rostos com que cruzamos o olhar
que a vida podia ser outra
e que seríamos felizes num outro sorriso
se lhe entregássemos inteiros os nossos lábios

há dias assim
em que acordamos e percebemos tudo
como se tudo nos estivesse imensamente próximo
como se cada dia nascesse e morresse num abraço
como se a vida coubesse num poema

José Rui Teixeira

* José Rui Teixeira nasceu no Porto, em 1974. É licenciado em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa e mestre em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É professor no colégio Luso-Francês e teólogo do Centro Catecumenal da Igreja do Porto.
É autor de Vestígios (2000), Quando o Verão Acabar (2002 - Quasi Edições), Para Morrer (2004 - Quasi Edições), Melopeia (2004) O Fogo e outros utensílios da Luz (2005 - Quasi Edições) e Assim na Terra (2005 - Quasi Edições). Participou ainda na antologia Poesia à Mesa (Quasi Edições).

A Música Que Toca Sem Parar:
de Leo Masliah e Clara Sandroni, este manfesto... Guardanapos de Papel, na voz especialíssima de Milton Nascimento.



Na minha cidade tem poetas, poetas
Que chegam sem tambores nem trombetas
Trombetas e sempre aparecem quando
Menos aguardados, guardados, guardados
Entre livros e sapatos, em baús empoeirados
Saem de recônditos lugares, nos ares, nos ares
Onde vivem com seus pares, seus pares
Seus pares e convivem com fantasmas
Multicores de cores, de cores
Que te pintam as olheiras
E te pedem que não chores
Suas ilusões são repartidas, partidas
Partidas entre mortos e feridas, feridas
Feridas mas resistem com palavras
Confundidas, fundidas, fundidas
Ao seu triste passo lento
Pelas ruas e avenidas
Não desejam glorias nem medalhas, medalhas
Medalhas, se contentam
Com migalhas, migalhas, migalhas
De canções e brincadeiras com seus
Versos dispersos, dispersos
Obcecados pela busca de tesouros submersos
Fazem quatrocentos mil projetos
Projetos, projetos, que jamais são
Alcançados, cansados, cansados nada disso
Importa enquanto eles escrevem, escrevem
Escrevem o que sabem que não sabem
E o que dizem que não devem
Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas
Como se fossem cometas, cometas, cometas
Num estranho céu de estrelas idiotas
E outras e outras
Cujo brilho sem barulho
Veste suas caudas tortas
Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas
Esvaindo-se em milhares, milhares, milhares
De palavras retrocedendo-se confusas, confusas
Confusas, em delgados guardanapos
Feito moscas inconclusas
Andam pelas ruas escrevendo e vendo e vendo
Que eles vêem nos vão dizendo, dizendo
E sendo eles poetas de verdade
Enquanto espiam e piram e piram
Não se cansam de falar
Do que eles juram que não viram
Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas
Como se fossem lunetas, lunetas, lunáticas
Lançadas ao espaço e ao mundo inteiro
Inteiro, inteiro, fossem vendo pra
Depois voltar pro Rio de Janeiro

Wednesday, November 17, 2010



Há Mais de 20 anos não escrevo um único poema. Foi como se a poesia tivesse desertado de mim. Da última vez que fui a Belo Horizonte, no entanto, vi que em um canto mais reservado da casa, meu pai rezava. Murmurava de olhos fechados - no ouvido de Alguém -, seus pequenos e grandes segredos, inconfidências...
Eu, que saí de casa aos 21 anos de idade sem sabê-lo temente.
Eu, que, tinha absoluta certeza de que meu pai era ateu.
Eu, que emocionei-me tremendamente com a visão que se repetiria todas noites, durante todo o tempo que ficaria em BH.
Foi desta imagem reveladora que nasceu um poema.
Esta miudeza, aqui:



REZA
meu pai
nasceu
cresceu
e viveu
ateu.

no que envelheceu,
deu de cochichar
todas as noites
no ouvido
de Deus.

(12 de novembro de 2010)

A Música Que Toca Sem Parar:de Fernando Brant e Tavinho Moura, Paixão e Fé, na voz inconfundível de Milton Nascimento.


Já bate o sino, bate na catedral
E o som penetra todos os portais
A igreja está chamando seus fiéis
Para rezar por seu Senhor
Para cantar a ressureição

E sai o povo pelas ruas a cobrir
De areia e flores as pedras do chão
Nas varandas vejo as moças e os lençóis
Enquanto passa a procissão
Louvando as coisas da fé

Velejar, velejei
No mar do Senhor
Lá eu vi a fé e a paixão
Lá eu vi a agonia da barca dos homens

Já bate o sino, bate no coração
E o povo põe de lado a sua dor
Pelas ruas capistranas de toda cor
Esquece a sua paixão
Para viver a do Senhor

Sunday, November 14, 2010















Com um salutar pedido de desculpas

Adorava o som de Kleiton e Kledir, a então jovem dupla gaúcha que enchia auditórios de todo o Brasil.
Era início dos anos oitenta e eu respirava música. Eu os vi pela primeira vez abrindo um show do MPB4, no ginásio Arnóbio Pitanga, em Valadares. Eu devia ter uns 16 anos e fiquei encantado com a energia dos guris.
Saí de lá falando "bah"e "tchê", doidinho para beber chimarrão. Encantei-me.
Adotei um ritual - quando servia o exército em Juiz de Fora -, de todas as vezes que ia visitar meus pais em Valadares, deixar tocando na vitrola, no momento da saída, a música Deu Pra Ti.
Era como se dissesse aos meus pais que, assim que baixasse o astral na caserna, estaria de volta ao convívio familiar.
Curiosamente, deixei essa canção tocando na vitrola no dia 9 de abril de 1984, dia em que embarquei para a capital mineira e de lá para Nova York, definitivamente.
Lembro-me claramente de minha mãe enxugando os olhos com as costas da mão, enquanto os guris enchiam de som o ar da casa da Rua Topázio.
Desde então, essa canção ficou reverberando dentro de mim, como um daqueles tangos-fantasma, que nunca deixam de tocar dentro da cabeça e do coração da gente.
Passaram-se os anos, tornei-me um operário da notícia e eles construíram uma carreira sólida, interrompida por um hiato que nos deixou, fãs, muito decepcionados.
Eu não conseguia conceber o Kleiton sem o Kledir e vice-versa.
Sabe aquela coisa de quando dois são um?
Felizmente, soprou um minuano lá pelas bandas de Paris - onde Kleiton se exilou estudando música -, e ele resolveu voltar ao Brasil e retomaram a dupla.
Há algum tempo, juntamente com os empresários Kiko Salles e Fábio Portugal, criamos o MPB Club, projeto que trouxe aos palcos americanos muitos artistas brasileiros de primeira grandeza. Kleiton e Kledir foram incorporados e, não apenas fizeram espetáculos inesquecíveis, como acabaram se tornando grandes amigos e parceiros.
Sim, parceiros, pois os guris musicaram Água e Vinho e A Outra Metade, dois poemas meus.
Hoje nos frequentamos, a gente dá sempre um jeitinho de se ver e o Kledir escreve (bem!) para o Brazilian Voice.
Paralelamente à música, ele editou dois livros que foram sucesso de publico e crítica no Brasil (Tipo Assim - um fenômeno na Internet - e O Pai Invisível).
Kledir costuma dizer que sou padrinho de sua carreira literária, o que me enche de orgulho, embora não seja verdade.
Kledir já era um escritor feito quando nos conhecemos.
Estava apenas esperando o momento certo de sair da casca.
Em julho passado estivemos juntos no Rio de Janeiro. Hospedei-me uns dias na bela casa na Joatinga.
Enquanto ele tentava me converter ao vegetarianismo, levei-o para a noite, tentando convencê-lo a freqüentar o meu mundo: o da esbórnia.
Durante um breve período, ele chegou mesmo a cheirar rapé, um hábito mineiro que ainda não abandonei, e que o seu médico desaconselhou peremptoriamente.
O doutor diz que dá taquicardia.
Não sei se é verdade.
Afinal, meu coração sempre desafinou.
Sempre bateu fora do tom.
Desnecessário dizer que ninguém convenceu ninguém.
Quando saí de sua casa para o aeroporto, parei numa churrascaria e ataquei um rodízio. Sem o menor remorso.
Sabe lá o que é ficar cinco dias numa casa onde jamais se fritou um bife?
E ele não deve estar com saudade da cerveja sem álcool, que praticamente o obriguei a beber enquanto me escoltava pela noite carioca. Não devo ser boa companhia.
E eu ainda o provocava, dizendo que beber cerveja sem álcool é o mesmo que dançar com a irmã. Quando Julia (sua primogênita) veio fazer um intercâmbio nos EUA, tomou o primeiro porre da vida, e o Kledir entrou em desespero.
Ligou-me, todo aflito, pedindo conselhos ao cara que ele diz ser a "maior autoridade em pileques fora do Brasil". Não é bem assim.
Mas o tranqüilizei.
Ressaca não mata ninguém.
E Julia sobreviveu lindamente.
Começo a falar dos guris e acabo me perdendo em recordações.
Essa crônica iniciou-se, na verdade, com o propósito de ser lida como um envergonhado pedido de desculpas.
Kledir aniversariou semana passada e esqueci completamente desse que, desde que nos tornamos amigos, é sempre um dos primeiros a ligar para os nem sempre merecidos parabéns.
Portanto, Kledir, que você seja muito feliz nessa nova idade.
E que continue sendo esse sujeito fantástico que é.
E que nunca se esqueça desse meu amor por você.
Aceite meus atrasados, mas sinceros parabéns. E uma pitada exagerada de carinho desse seu irmão, nascido estranhamente do ventre de uma outra mãe.

A Música Que Toca Sem Parar:
aquela canção-fantasma que ficava tocando quando eu saía de casa no início dos anos 80 e que nunca mais deixou de tocar dentro do meu coração. De Kleiton e Kledir, Deu Pra Ti.

Friday, November 12, 2010

Três Poemas de Manoel de Barros (e um dele é dito)

.
















Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada
(I)


Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.


Glossário de transnominações em que não
se explicam algumas delas (nenhumas) - ou menos


Poesia, s. f.
Raiz de água larga no rosto da noite
Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã
Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de um homem
Designa também a armação de objetos lúdicos com empregos de palavras imagens cores
sons etc. geralmente feitos por crianças pessoas esquisitas loucos e bêbados

Poeta, s. m. e f.
Indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu
Espécie de um vazadouro para contradições
Sabiá com trevas
Sujeito inviável: aberto aos desentendimentos como um rosto

Boca, s. f.
Brasa verdejante que se usa em música
Lugar de um arroio haver sol
Espécie de orvalho cor de morango
Ave-nêspera!
Pequena abertura para o deserto

Sol, s. m.
Quem tira a roupa da manhã e acende o mar
Quem assanha as formigas e os touros
Diz-se que:
se a mulher espiar o seu corpo num ribeiro florescido de sol, sazona
Estar sol: o que a invenção de um verso contém

Árvore, s. f.
Gente que despetala
Possessão de insetos
Aquilo que ensina de chão
diz-se de alguém com resina e falenas
Algumas pessoas em quem o desejo é capaz de irromper
sobre o lábio, como se fosse a raiz de seu canto

Apêndice:
Olho é uma coisa que participa o silêncio dos outros
Coisa é uma pessoa que termina como sílaba
O chão é um ensino.



Manoel de Barros
Gramática Expositiva do Chão
Editora Civilização Brasileira, 1990

In, O Guardador de Águas


A Música Que Toca Sem Parar:
Pedro Paulo Rangel
recita Matéria da Poesia, de Manoel de Barros.

Tuesday, November 9, 2010

Chico Buarque recebe o Prêmio Portugal Telecom de Literatura


















Chico Buarque ganha mais um prêmio com 'Leite Derramado'


Na noite desta segunda-feira (8), o cantor, compositor e escritor Chico Buarque de Holanda levou mais um prêmio com seu último livro Leite Derramado. Depois do Prêmio Jabuti, conquistado na semana passada, Chico Buarque recebeu agora o Prêmio Portugal Telecom de Literatura - troféu e R$ 100 mil, recebidos das mãos de Pilar del Rio, viúva do escritor José Saramago.

Em segundo lugar, e com um prêmio de R$ 35 mil, ficou Rodrigo Lacerda, com o livro Outra vida. Armando Freitas Filho conquistou a terceira posição e um prêmio de R$ 15 mil com seu livro Lar.


A Música Que Toca Sem Parar:
na voz de Chico Buarque escolhi Sinal Fechado, que é da autoria de Paulinho da Viola.

- Olá! Como vai?
– Eu vou indo. E você, tudo bem?
– Tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro... E
você?
– Tudo bem! Eu vou indo, em busca de um sono tranqüilo...
Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é, quanto tempo!
– Me perdoe a pressa - é a alma dos nossos negócios!
– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!
– Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí!
– Pra semana, prometo, talvez nos vejamos...Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é...quanto tempo!
– Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das
ruas...
– Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança!
– Por favor, telefone - Eu preciso beber alguma coisa,
rapidamente...
– Pra semana...
– O sinal...
– Eu procuro você...
– Vai abrir, vai abrir...
– Eu prometo, não esqueço, não esqueço...
– Por favor, não esqueça, não esqueça...
– Adeus!
– Adeus!
– Adeus!

Saturday, November 6, 2010

Na tela do teto
















Durante muito tempo tive o costume de avaliar o dia quando me deitava para dormir. Desnecessário dizer que muitas vezes perdi o sono, dependendo de uma ação errada minha, ou de alguém para comigo.
Perdoar é uma dádiva.
E não ser dadivoso com alguém pode pesar tanto quanto não o terem sido com você.
De uma forma ou de outra, as consequências são sempre cruéis. Exercitar o perdão deveria ser uma obrigação. E não uma opção.
E foi assim que o perdão foi, muitas vezes, o meu calcanhar de Aquiles, motivo de grande frustração.
Preciso aprender a perdoar.
E a exercitar um monte de outras virtudes, que deveriam fazer parte da cartilha de toda pessoa do bem.
Mas eu falava do costume de avaliar as ações ao fim de cada dia, hábito que deixei de praticar.
Tão logo me deitava, projetava uma tela no teto do quarto e esmiuçava as últimas 24 horas com o compenetramento de um legista que disseca um cadáver:
Fui ríspido com alguém? Sim ou não?
Mas abri a porta para uma senhora bem velhinha no correio. E paguei sozinho a conta do restaurante.
Comprei ingressos para um show que só vai acontecer daqui a seis meses.
Estarei vivo até lá?
Morrerei?
De que morrerei eu?
Ficarei doente no dia?
Darei os ingressos antecipadamente a algum amigo?
Hoje fiquei triste porque meu time perdeu.
Fiquei feliz demais com a vitória de meu time.
Não deu os 15% de gorjeta ao garçom.
Emprestei o carro a um amigo. Sorri para uma criança na rua.
Não disse eu te amo a quem de direito.
Não fui afetuoso o suficiente.
Fui rude nesta ou naquela situação.
Mostrei o dedo médio - sim, aquele infame dedo médio! - a alguém no trânsito? Passei uma luz amarela? Andei acima do limite de velocidade?
Dei a vez a uma pessoa no trânsito, apesar de ser minha a preferência.
Fui gentil com alguém. Fui atencioso. Fui dócil e doce com quem de direito.
Fiz que não vi um antigo desafeto na rua, apesar de ele ter me cumprimentado com cara de quem queria fazer as pazes.
Dei dinheiro a um veterano de guerra, que esperava no frio pessoas de coração generoso.
Mesmo não possuindo coração tão generoso e fraterno, enfiei a mão no bolso e colaborei, impressionado, talvez, com as pernas mutiladas e o estado precário de suas roupas.
Mas dei. E dei de bom grado. Mas ainda preciso amolecer meu coração.
No trabalho, a crônica não saiu boa. Agredi a gramática com erros grotescos, por pura desatenção?
Ou, não, hoje a crônica saiu dentro dos conformes. Não preciso me envergonhar dela.
Exagerei no chope? No macarrão e no açúcar? Extrapolei no uísque?
Prolonguei o horário do almoço jogando conversa fora no restaurante?
Deixei de retornar um telefonema? Deixei de retornar vários telefonemas?
Não respondi ao e-mail de fulano ou fulana?
Não fiz caminhada pela manhã?
Telefonei para Minas Gerais e disse à minha mãe da saudade que sinto de todos? Há quantas semanas não ligo para Minas Gerais, deixando a impressão de que não sinto saudades de ninguém? Nem de pai, nem mãe...
Deixei de ir a este ou aquele lugar?
Adiei para o futuro esta ou aquela ação? E por aí a fora...

Era assim que tratava de buscar soluções para situações cotidianas antes da chegada do sono. Dependendo do tamanho da encrenca ou da dúvida, o sono não aparecia e eu ficava ali, rolando de um lado para o outro, penitenciando-me por este ou aquele pecado, independente de seu calibre ou teor.

O medo de me tornar um zumbi e não conseguir mais dormir fez com que eu interrompesse o hábito de pesar os prós e os contras do meu dia, adiando para o futuro a possibilidade de me tornar uma pessoa melhor. E de fazer, assim, a minha parte para um mundo melhor. Afinal, a paz do indivíduo é a paz do mundo.


A Música Que Toca Sem Parar:
passei o dia inteiro com Vítor Ramil tocando dentro do meu coração. De seu disco A Paixão de V Segundo Ele Próprio retirei Satolep (Pelotas, lugar que o viu nascer, de trás para a frente), porque tudo o que eu queria hoje era estar em paz. Eu, e o mundo.

Sinto hoje em Satolep
O que há muito não sentia
O limiar da verdade
Roçando na face nua
As coisas não têm segredo
No corredor dessa nossa casa
Onde eu fico só com minha voz
A Dalva e o Kleber na sala
Tomando o mate das sete
A Vó vem vindo da copa
Trazendo queijo em pedaços
Eu liberto nas palavras
Transmuto a minha vida em versos
Da maneira que eu bem quiser
Depois de tanto tempo de estudo
Venho pra cá em busca de mim.

E o céu se rirá d'amore
No olho azul de Zenaide
Outrora... lembras flam(ingos)
Jê ne se pá, singulare
Yê na barra uruguaia
E letchussas no Arroito
Marfisas gemerão de paz
No The Lion!
La Jana torpor vadio
Cigarra sem horizonte
Lia, Alice e a lua
Num charque sem preconceito
O CISNE NEGRO APRISIONA
O bélICo AmoR perdidO
E a Esma num bissaje só
Cativa alguém
Nessa implosão de signos e princípios
Eu guardo o Joca e ele a mim.

O teu nome, Ana, escrito
No braço da minha alma
Persiste como uma estrela
Nas horas intermináveis
Chuva, vapor, velocidade
É como o quadro do Turner
Sobre a parede gris da solidão.
So-to-me-lo te verás-me
Como-lho-me verte-ás-nos
Solo te quiero dizer-te
Que me sinto mui contento
Porque vou na tua casa
E lemos cousas bonitas juntos
No silêncio eu pego em tua mão
Tu do meu lado e eu no teu quarto quieto
Teu ser se confunde no meu.

Vitorino de La Mancha
Minha luta se resume
No compasso de um tango
Na minha triste figura
Meu piano Rocinante
A YOGA e o chá no fim da tarde
E depois a noite e meu temor.
Eu converso com o Kleiton
Na mesa da casa nova
Sobre a vida após a morte
Sobre a morte após a vida
Vencedor é o que se vence
E a falta do Kleber é dura
O que a gente quer é ser feliz
A paz do indivíduo é a paz do mundo
E viva o Rio Grande do Sul!

Só, caminho pelas ruas
Como quem repete um mantra
O vento encharca os olhos
O frio me traz alegria
Faço um filme da cidade
Sob a lente do meu olho verde
Nada escapa da minha visão.
Muito antes das charqueadas
Da invasão de Zeca Netto
Eu existo em Satolep
E nela serei pra sempre
O nome de cada pedra
E as luzes perdidas na neblina
Quem viver verá que estou ali.

Tuesday, November 2, 2010

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solta-te
como se ainda fosses
um peixe a fugir da morte
e houvesse
por entre os dedos da noite
uma escada
de sereno veneno
por onde pudesses
mentir ao medo
e acordar numa hora
possível de dizer sim
um luminoso sim
e as marés
te olhassem nervosas
como se a palavra
ou o segundo
que tudo pode secar
te roesse a mão nua
e esse fosse
o instante da dor
ou o momento
de partir

deixa
que te durmam nos lábios
os velhos tambores
que te queimem os pés
as nuvens gastas
e que um outro lugar
rompa a areia do tempo
e rasgue o coração
como o céu do deserto
um lugar
que fosse como o ventre
dos sinos
e soasse almas sem lama
olhos sem raiva
que poisassem no mundo
sem o cegar



gil t. sousa


A Música Que Toca Sem Parar:
do recém-lançado cd/dvd Papo de Passarim, Zé Renato e Renato Braz cantam Ponto de Encontro, da autoria de Zé Renato e Milton Nascimento.


Corro ao portão
Que esperança
Correio já passou e não deixou nada
Segura essa coração
Vamos ver se amanhã a coisa...muda
O telefone diz
A voz é outra...
Fala do trivial
Não faz mal. Agrada...
Olhar não mente e se mostrou
Narrando uma ansiedade
Quase louca
É muito amor que se viveu
Pra se apagar na sombra
Da saudade... Que saudade

Onde se perdeu...
Onde se esqueceu...

Tudo tem seu momento, é tudo ou nada...
E lá no fundo sei talvez seja tarde
Só a imagem que ficou
Virá me visitar o pensamento
Virá me embriagar de fantasia
O teu perfume então estará na vida
A hora certa já passou
E o tempo não curou essa ferida
O muro cresce já subiu
E corro atrás da porta de saída...
A saída...

De te respirar...
De reconquistar...
De te respirar...
De reconquistar...

Corro ao portão, que esperança.
Correio já passou e não deixou nada
Segura essa coração, vamos ver se amanhã a coisa muda.

Jorge Amado e Paulo Coelho são os autores brasileiros mais traduzidos na Alemanha
























Na Alemanha, os autores brasileiros mais reconhecidos pelo público são Jorge Amado e Paulo Coelho. Ambos têm vários títulos traduzidos do português para o alemão. O cônsul-geral do Brasil em Frankfurt, embaixador Cézar Augusto de Souza Lima Amaral, disse à Agência Brasil que é necessário ampliar o leque de opções a ser oferecido em alemão.

O diplomata lembrou que na Feira do Livro de Frankfurt são vendidos cerca de 100 milhões de exemplares a cada edição do evento. “Infelizmente, as nossas projeções de pensamento ainda não estão bem apresentadas na Alemanha, uma das dificuldades é o idioma. Há casos, como Os Sertões [de Euclides da Cunha, publicado em 1902], cuja tradução demorou três anos”, disse.O embaixador afirmou que a feira atua em várias frentes, como o apoio às editoras e aos autores, assim como no suporte para negociações mundiais relativas à questão dos direitos autorais. Amaral disse que o fato de o Brasil ser homenageado na feira facilita a penetração das editoras e autores no cenário internacional. Isso vale para as publicações literárias, técnicas e nas áreas de ciências sociais, além de literatura infantil.Durante a Feira do Livro de Frankfurt ocorrem vários eventos paralelos, como ciclo de leituras com autores, oficinas de tradução, debates e mesas-redondas, além de festivais de cinema. Pelo acordo assinado entre o Ministério da Cultura e a organização da feira, será criado um comitê – com integrantes do Brasil e da Alemanha – para definir as atividades que serão apresentadas em outubro de 2013.

Saturday, October 30, 2010

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As hortênsias estendidas num outro tempo decoram a estância
mais acima do meu corpo.

Senti o grito dos faisões encurralados nos ramos de agosto.
Um animal invisível rói as madeiras que também estão para lá dos
meus olhos
e assim se aumenta a serenidade e prevalece o cheiro da mostarda
que foi derramada pela minha mãe.


Eu convalesço em lençóis limpos que me preservam dos insectos
e os cristais da minha infância são causa da imposição de uma
luz que os antecede em muitos dias desde que existiu a soleni-
dade e a pureza.


Neste espaço reuni-me com a tua doçura, a que traíste diante dos
meus olhos.
Agora és obsequioso e pacífico como o óleo que se reserva para os
agonizantes;
agora conténs-me com as tuas mãos
e descobres-me todos os gestos do teu rosto:


tantas vezes puseste a boca sobre as feridas, tantas te desdisseste
como uma lebre tenebrosa...
Assediado por enxofre que não podias suportar nos alimentos,
tantas me recebeste no teu olhar e me participaste uma escrita de
carmins abrasados,
tantas te desplumaste na minha existência...!
Foi uma época danificada.


Tu invocavas o chamariz e fazias com que as árvores se inclinas-
sem sobre nós nas tardes imóveis enquanto a polícia escrevia
os nossos nomes.
Noutros dias cantavas possuído pelo álcool, que transbordava
azul sobre as mesas gastas pela lixívia.


Uma senda de tojo conduzia até à tua casa onde era sempre inver-
no. Ah como sentia os teus dentes e quanto tempo te escutava,
como esperava o teu desaparecimento amando-te!


Não me deixaste outro sinal que o teu rosto celebrado pelo pranto
das mulheres.
Perante a tua beleza inclinava-se a serenidade, viúva tua desde há
muito tempo, viúva expulsa dos teus lençóis.
Isto foi quando, atraído pelo acónito, penetraste nas suas câmaras;
isto foi quando começou o esquecimento.


Tu distribuías a nostalgia de quanto é honrável e concertado com
a pulsação dos ovos.
Não quiseste ser louvado por isso mas sim pelo rancor, tua cida-
dania naquele tempo.

A cinza das tuas unhas refugiava-se nas escrituras e naqueles templos

cujas madeiras estão marcadas a golpe de faca e com a
gordura dos animais torturados.

Tu, mais autêntico que eu porque me excedias em vigilância,
conduzias-me aos lugares onde é possível saborear o verdete e o aço.
Durante um instante visitou-me um crepúsculo cuja profundidade
não me pertence.

Regressei. Regressei até onde os pais são cuidadosos e perseguidos
nos seus ossos,
mas não é este o armistício que eu comprei sobrevivendo-te.

Repito que agora és obsequioso e que me acompanhas ao espaço
onde as hortênsias são persistentes.
Mais adiante, nos desvãos, sinto um bramido de pombas: é um
país nupcial. Conheces tu a virtude das pombas pelos seus excrementos?


Naquele e neste tempo te recebo e só assim, olhando-me no teu
rosto, aquele que se manifesta através de uma membrana incorruptível,
não no furor que predicavam os teus dentes, embora me amasses
dentro de minha mãe.
Naquele e neste tempo te recebo e o meu desejo é alimentar-me
com a tua metálica bondade mas também dos aromas que te sobrevivem.

Senta-te no meio das ruínas, senta-te com doçura no meio ou à
beira das ruínas.
São nossas única propriedade e eu começo a distinguir algumas sementes e láudano e certos coágulos obedientes ao exercício da luz.




Desta paixão, dos provérbios posteriores à tua vertigem, do animal que chora e a sua piedade está sobre nós,
tu deduzirias lacre e colocá-lo-ias nos meus olhos, ou quiçá limaduras de níquel e outras matérias intoleráveis.
No entanto tu amavas a sumptuosidade das bandeiras no azul, por cima das tabernas.

Sabes o que é o esquecimento? que encontraste tu na reserva do
esquecimento?
Todos os ensinamentos se extinguiram como um carbureto no
fundo das galerias inacabadas;
todos os ensinamentos menos a palpitação do bosque e alguns vestígios teus nas minhas mãos.
O rio desce ainda e eu não sinto nada agora a não ser o cheiro da
água.
Os teus filhos e as minhas filhas submergem-se no rio e os que nao
esqueceram não se aproximam nunca porque seriam recebidos
e talvez entrassem nos seus corpos e morreriam.


Pensaste na paciência, pensaste na paciência semelhante a ónix, na
paciência escavando tumbas no som, abandonando teias aos ven-
tos que um dia chegarão, que chegarão depois das expulsões?


A cidade não está limpa; nos baldios há irritação e o cornelho e o
centeio coabitam e cresce um alimento que será comida dos
nossos filhos.

Eu não tenho esperança mas uma paixão cujo nome tu não me dirás.
Eu não tenho esperança mas uma paixão cujo nome não tocará os
teus lábios.


Cruzei a minha infância e países de morfina e largos bosques nos
quais descansei e grandes asas passaram sobre os meus olhos.
Nos lugares a que eu acudo ao entardecer há frutos muito espessos
dos quais faço colheita e os meus dedos são abrasados pelos
pirilampos porém eu faço colheita e demoro-me a acudir a outros lugares,
às alcovas onde minha mãe envelhece para lá da minha velhice.


E as palavras, febre debaixo das tégulas, grumos retrocedendo, fel
que enlouquecia debaixo do disfarce do sonho,
o que são, o que fazem em mim quando se extingui já a verdade?

Da verdade nada ficou mais que uma fetidez de notários,
uma lêndea lasciva, lágrimas, urinóis
e a liturgia da traição.

As hortênsias entendidas noutro tempo decoram a estância mais
acima do meu corpo.

Que lugar é este, que lugar é este? como estás ainda no meu co-
ração?



Antonio Gamoneda
Descrição Da Mentira
Quasi Edições, 2007
Tradução de Vasco Gato


A Música Que Toca Sem Parar:
do disco Trilhas, em que Zeca Baleiro dá a saber de suas composições geradas para adornar trilhas sonoras de filmes e peças teatrais, esta composição de Geraldo Espíndola: Cunhataiporã.

Onde você quer ir meu bem?
Diga logo pra eu ir também
Você quer pegar aquele trem

É naquele trem que eu vou também
É pra Ponta Porã
Cunhataiporã cherô rai rô

É pra Corumbá
É lá que eu vou pegar um barco
E descer o rio Paraguai cantando as canções
que não se ouvem mais (1X)

Pra onde você quer ir meu bem?
Diga logo pra eu ir também
Você quer pegar aquele trem

E naquele trem que eu vou também
É pra Ponta Porã
Cunhataiporã cherô rain rô

É pra Corumbá
É lá que eu vou pegar um barco
E descer o rio Paraguai cantando as canções
que não se ouvem mais (1X)

Pra onde você quer ir meu bem?!

Wednesday, October 27, 2010













Se terminar este poema, partirás. Depois da
mordedura vã do meu silêncio e das pedras
que te atirei ao coração, a poesia é a última
coincidência que nos une. Enquanto escrevo
este poema, a mesma neblina que impede a
memória límpida dos sonhos e confunde os
navios ao retalharem um mar desconhecido

está dentro dos meus olhos – porque é difícil
olhar para ti neste preciso instante sabendo que
não estarias aqui se eu não escrevesse. E eu, que

continuo a amar-te em surdina com essa inércia
sóbria das montanhas, ofereço-te palavras, e não
beijos, porque o poema é o único refúgio onde
podemos repetir o lume dos antigos encontros.

Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,
que apenas escreva até ao fim mais esta página
(que, como as outras, será somente tua – esse

beijo que já não desejas dos meus lábios). E eu, que
aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade
nos faz adultos para sempre, sei que te perderei

em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;
e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á
a última coincidência que nos une.



Maria do Rosário Pedreira


A Música Que Toca Sem Parar:
letra de Francisco Vianna e melodia de Luís Represas, que divide a canção com Pablo Milanés, um ídolo meu: FEITICEIRA.

De que noite demorada
Ou de que breve manhã
Vieste tu, feiticeira
De nuvens deslumbrada

De que sonho feito mar
Ou de que mar não sonhado
Vieste tu, feiticeira
Aninhar-te ao meu lado

De que fogo renascido
Ou de que lume apagado
Vieste tu, feiticeira
Segredar-me ao ouvido

De que fontes de que águas
De que chão de que horizonte
De que neves de que fráguas
De que sedes de que montes
De que norte de que lida
De que deserto de morte
Vieste tu feiticeira
Inundar-me de vida.




.

Tuesday, October 19, 2010























Uma Crônica Para Isabella

Ela tem poucos minutos de vida, mas já realizou o que quase quatro décadas de experiências, euforias, conquistas, e pequenos desastres não conseguiram.
Ela ainda aprende a respirar fora da barriga da mãe, mas já mudou a vida de um homem cético, petrificado por casuísmos de uma existência marcada pelas mazelas da luta cotidiana.
Com apenas alguns minutos de vida ela o faz redescobrir um gosto pelo ofício de existir. E resgata nele o desejo da imortalidade.
Ela acaba de transformá-lo em pai.
Durante os nove meses de espera e inquietações esse pai a imaginou de tantas maneiras, menos desta com que veio.
Ela não tem os lábios dele, e nem o contorno do queixo da mãe.
Não se sabe a cor de seus cabelos – ainda envoltos em líquido amniótico –, e seus olhos permanecem fechados, estranhando a luz artificial do mundo exterior.
O médico diz que ela tem saúde perfeita. E isto é motivo de júbilo, de despreocupação.
A enfermeira que testemunhou seu nascimento reafirma o que ele registrou desde o primeiro momento em que a viu: sim, ela é linda.
Seu corpinho franzino, de face rosada e mãos minuciosas, ainda se espreguiça no berço estufa do Hospital St. Barnabas e ela não sabe do milagre que acaba de operar.
Ela chora pela primeira vez, e ele preocupa-se imediatamente, sem entender que esse choro foi despertado pela mudança súbita de universos.
Há menos de cinco minutos, estava protegida pela fortaleza do ventre materno.
Agora, está nua, fragilizada diante de um mundo simbolizado pela expressão confusa de seu pai.
E o choro novo que enche o ar da sala de parto é um aviso firme:
Preste bem atenção em mim, papai! Cheguei para te povoar!
Seus olhos abertos iluminam a encruzilhada existencial deste marinheiro de primeiríssima viagem, com a potência de um farol mostrando destinos a um barco no meio de uma tempestade.
Numa ordem inversa de coisas, é a filha que chega ensinando o pai.
É ela quem indica a estrada a seguir e sabe-se, de antemão, que já não existirá um atalho para o futuro.
Mudou tudo num segundo.
Encantamento, magia, esperança e responsabilidade substituem palavras de um dicionário que jamais será o mesmo.
E o pai também chora, tentando esconder detrás dos óculos de grau o inocultável.
Ele que não chorou na última derrota de seu time numa final de campeonato.
Ele que não se emocionou na perda de um tio, recentemente.
Ele que evita filmes melodramáticos por não lhes reconhecer serventia.
Ele que, consumido pela luta do pão de cada dia, às vezes se esquece de ligar regularmente para seus pais e pedir-lhes a necessária benção.
Ele, o auto suficiente.
Ele, o rei de um reino que gira em torno de seu umbigo.
Impassível, até aqui, esse senhor.
Incólume, imperturbável, esse cidadão.
Diante dos olhos deste homem impenetrável, revolve-se uma trajetória que está prestes a entrar num novo período de sua história.
E esta metamorfose vai tomando força, acontecendo lentamente, como uma borboleta saindo do intransponível casulo.
Esse homem, sou eu.
E Isabella, acaba de me fazer pai.
Não cabe em mim a alegria imensa que ela trouxe.
Trata-se de algo indescritível, por mais que eu tente colocar tudo em palavras.
Ainda estou na sala de parto e um turbilhão de indescritíveis emoções vai ganhando, cada vez mais, terreno em meu coração.
Não sei se rio ou se choro. E é tudo de alegria.
Um frenesi diferente de um grito de gol.
Um eu te amo mais profundo do que todos que eu já disse a qualquer mulher.
A meu pai ou a minha mãe.
Ou a quem quer que seja, ser animado ou inanimado.
Na noite de 27 de outubro de 2001, escrevi – a quatro mãos com Fabianne – minha grande crônica até aqui.
Meu melhor poema.
Minha grande letra de canção.
Na expressão serena desta criança que nasceu também de mim, sinto-me lívido, pacificado, a um passo de Deus.


A Música Que Toca Sem Parar:
Milton Nascimento, Benke... e um coral de curumins.















É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão
Sem a febre de tantos lábios,
Sem nenhum rumor de lágrimas
Nas pálpebras acesas.

Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

(Eugénio de Andrade )


A Música Que Toca Sem Parar:
dele e de Ronaldo Bastos, Celso Fonseca esmiúça a belíssima e triste O Tempo Não Passou.

Vou te escrever pra falar de new york
Não vim aqui esperar pelo fim do mundo
Estou feliz no postal de new york
E tudo mais e a saudade cortando o fundo
Quando acordo lá pra as três da madrugada
Sinto um anjo vir rondar meu cobertor
Colo a boca sobre a pele da vidraça
Sinto as mutações do tempo a meu favor
Não sou ninguém sem voçê em liverpool
Ou numa ilha dos mares do sul
Olho o relógio e as horas não passam por mim
Num cartão postal o tempo estacionou
Parou seu carro no drive-in
Pra nós o tempo não passou!

Friday, October 1, 2010



















Antes a vida que estes prismas sem espessura mesmo se as cores são mais
puras
Antes ela que esta hora sempre enevoada estas terríveis carruagens de
labaredas frias
Estas pedras sorvadas
Antes este coração engatilhado
Que este charco de murmúrios
Este pano branco a cantar ao mesmo tempo na terra e no ar
E esta benção nupcial que une o meu rosto ao da total fatuidade
Antes a vida

Antes a vida com os seus lençóis de esconjuro
As suas cicatrizes de fugas
Antes a vida antes esta rosácea no meu túmulo
A vida da presença só da presença
Onde uma voz diz Estás aí outra responda Estás aí
Eu pobre de mim não estou
E mesmo quando jogarmos ao que fazemos morrer
Antes a vida

Antes a vida antes a vida infância venerável
A faixa que parte dum faquir
Parece o escorregadouro do mundo
Não importa que o sol não passe de um destroço
Por pouco que o corpo da mulher se lhe compare
Pensas tu ao contemplar a extensão da trajectória
Ou tão-só ao fechar os olhos sobre a tormenta adorável que se chama a tua
mão
Antes a vida

Antes a vida com as suas salas de espera
mesmo sabendo não ir entrar nunca
Antes a vida que estas estâncias termais
Onde o serviço é feito por coleiras
Antes a vida adversa e longa
Quando aqui os livros se fecharem sobre estantes menos suaves
E lá longe fizer mais que melhor fizer livre sim
Antes a vida

Antes a vida como fundo de desdém
A esta cabeça já de si tão bela
Como antídoto da perfeição aspirada e temida
A vida a maquilhagem de Deus
A vida como um passaporte virgem
Ou uma vilória como Pont-à-Mousson
E como tudo foi dito já
Antes a vida

André Breton


A Música Que Toca Sem Parar:
de Gero Camilo e Kleber Albuquerque, na voz goiana de Rubi, Astrolábios.

Arde-me o siso
Coração ungido a ferrolho
Arde-me entorpecido
Vil vão
Novamente novo

Como nunca pode ser um outro
Uma lágrima na lapela
Paz de espírito
Ontem eu lamentei demais
Por mãos que me jogaram
Nesse espaço de astrolábios
Hoje aprendi como
Se voam as mãos
Como se vão
Como carvão nos lábios

O homem tem de voar
Enquanto cai
Tem de alcançar
E vai

Wednesday, September 29, 2010

Borracharias viram bibliotecas em Sabará




Criada há oito anos, a Borrachalioteca cresce e inaugura novas unidades, inclusive o Espaço Libertação, no presídio municipal. Projeto desenvolve oficinas de poesia e percussão



Fundar uma Borrachalioteca, ou seja, uma biblioteca dentro de uma borracharia. Essa ideia começou a andar pela cabeça do então estudante Marco Túlio Damascena há 10 anos, quando ele, com 22 anos, passou a trabalhar com seu pai, o borrracheiro Joaquim Escolástico Damascena, numa pequena borracharia na Praça Paula de Souza Lima, no Bairro Caieira, periferia de Sabará. Fica a menos de 30 metros metros do poluído Rio das Velhas. Como era de se esperar, o “velho”, a princípio, não achou nenhuma graça naquele projeto, pois onde já se viu uma coisa daquelas, misturar livros com pneus? É claro que não daria certo. Mas Marco Túlio, que é tão cabeça dura quanto o pai, continuou insistindo. Coração mole, Joquim acabou cedendo.

Estava nascendo, a partir desse pequeno embate familiar, um dos projetos culturais mais originais de Minas, a Borrachalioteca de Sabará, que hoje, oito anos depois da sua fundação, além de ser reconhecida em todo o país, se transformou numa associação: o Instituto Cultural Aníbal Machado. O nome foi dado em homenagem ao escritor, filho da terra, autor de obras-primas como Tati, a garota. Atualmente conta com mais três unidades: a Sala Son Salvador, que funciona no Bairro Cabral; o Libertação pela leitura, dentro do presídio municipal de Sabará; e a Casa das Artes, também no Bairro Caieira. Recém-inaugurado, este novo espaço abriga, além da Cordelteca Olegário Alfredo, uma biblioteca infanto-juvenil, com cerca de 5 mil títulos, doados pelo Centro de Educação, Leitura e Escrita, da Faculdade de Letras da UFMG, e ainda os grupos Arautos da Poesia e Tambores Gerais, com mais de 40 integrantes.

Na Borrachalioteca, que continua funcionando no local de origem, estão em fase de catalogação quase 10 mil livros, dos mais diversos gêneros, à disposição da comunidade de Sabará. Ali, às quartas-feiras, ocorrem as Tardes culturais, voltadas para as escolas da região, quando são realizadas sessões de leitura, declamação de poemas e contação de histórias com as professoras Aguida Alves, Lourdinha Reis, Márcia Reis e Izabela Cristina. Ao lado, vendo tudo “com bons olhos”, ‘‘seu’’ Joaquim continua remendando os pneus e fazendo seus negócios.

“Nada mal para quem, como nós, começamos aqui na borracharia com apenas 70 livros, que nos foram doados pela Biblioteca Pública Municipal Joaquim Sepúlveda, de Sabará. Ver tantos títulos hoje, de autores brasileiros e estrangeiros, lotando essas estantes e sendo lidos pelo pessoal da nossa comunidade me dá uma alegria muito grande e vontade de continuar sempre com o trabalho”, comemora Marco Túlio Damascena. Além de ter criado a Borrachalioteca, ele conseguiu realizar outro sonho: o de se formar na Faculdade de Letras. Leitor contumaz desde a adolescência, quando começou a ter contato com a poesia de Lêdo Ivo, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles, Túlio afirma que seu maior orgulho, hoje, é ver as crianças da comunidade, seus “clientes” mais assíduos, buscar livros na Borrachalioteca.

Entre os garotos e garotas que frequentam o espaço estão as amigas Ana Beatriz Silva de Oliveira, de 9 anos, e Raíssa Vitória, de 11, ambas alunas da Escola Estadual Paula Rocha, em Sabará. Olhos atentos, boas de conversa, e muito interessadas na leitura, elas fazem parte do grupo Arautos da Poesia, que funciona na Casa das Artes. Bons companheiros, outros que estão sempre presentes na Borrachalioteca e na Casa das Artes são os pequenos João Vitor Batista, de 9, e Henrique Policarpo da Costa, da mesma idade. Como Beatriz e Raíssa, também estudam na Paula Rocha. Eles participam também do Grupo Tambores Gerais, onde são alunos do escritor e percussionista Jorge Dikamba. “Desde o início colaboro com o Marco Túlio e tenho orgulho do nosso trabalho, pelo fato de proporcionarmos às crianças da nossa comunidade a oportunidade de ter contato com a cultura. Já nos apresentamos em Belo Horizonte, algumas cidades do interior e também em São Paulo”, diz o percussionista. Coordenador da Casa das Artes, Dikamba é autor do livro infanto-juvenil Amani, publicado pela Com Arte Edições.

Todo o esforço, aliado à vontade de continuar levando adiante os projetos, já rendeu à Borrachalioteca alguns prêmios importantes, como o Viva Leitura, em 2007, e Ponto de Leitura, em 2008, concedidos pelo governo federal. “Tudo isso nos incentiva, e só nos faz querer seguir adiante”, diz Marco Túlio. Com orgulho, mostra convite que acaba de receber do Ministério da Cultura para, em 19 de agosto, participar do 3º Seminário Internacional de Bibliotecas Públicas e Comunitárias e do 3º Fórum Nacional do Livro e Leitura, em São Paulo. Na ocasião, falará da sua experiência e do trabalho que vem realizando, não só na Borrrachioteca, como nos outros espaços criados pelo Instituto Aníbal Machado.


Carlos Herculano Lopes

Tuesday, September 28, 2010

Fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado recebe prêmio em Madri


O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, 66 anos, recebeu nesta terça-feira (28), em Madri, prêmio da Fundação Salve as Crianças por seus trabalhos em favor dos pequenos. Trata-se de mais um entre vários prêmios já recebidos pelo profissional, como o Príncipe de Asturias das Artes (1998), Eugene Smith de Fotografia Humanitária e Unesco, que lhe foram concedidos pelo trabalho humanitário que realiza desde o início da carreira.

Além do brasileiro, de Minas Gerais, foram premiados a atriz norte-americana Mira Sorvino, que é Embaixadora das Nações Unidas, o tenor catalão José Carreras, presidente da Fundação José Carreras de Luta contra a Leucemia, e a advogada e ativista dos direitos humanos iraniana Shirin Ebadi, Prêmio Nobel da Paz de 2003.

Na lista dos premiados, também está Danielle Mitterrand, viúva do ex-presidente francês François Mitterrand. Presidente da Fundação France-Libertés, a ex-primeira-dama de 85 anos não compareceu ao evento.

Wednesday, September 22, 2010


















A verdadeira cidade eterna

Ultimamente tenho tentado me reaproximar de Governador Valadares.
Sempre amei Valadares, cidade em que passei 17 felizes anos de minha vida.
Há muito tempo não apareço por lá.
Meu medo é o de que aquele lugar que cresci amando, já não exista mais.
Algo como um amor da adolescência que você reencontra, muitos anos depois, casada, maltratada, mãe de filhos, esperando a condução num ponto de ônibus.
Ainda não aconteceu comigo.
A Valadares da minha saudade tinha coqueiros beira-rio, ingazeiras, mangueiras onde se colhia frutas de ouro, suculentas e doces.
Em São Raimundo - o bairro que me viu crescer -, as ruas tinham nome de pedras.
Os poetas Abel Costa e Bispo Filho moravam na Esmeralda.
O meu pouso era na Topázio e os amigos de futebol, Marquinhos, Ney e Wellington Mingau viviam na Turmalina.
Joguei bola na Granada, quase namorei uma moça na Ametista, corri da polícia na Safira.
Nada grave, apenas um bando de meninos pulando a cerca de uma chácara alheia para colher carambolas, jambos, jenipapos e pitangas.
Na minha Valadares tinha campinhos de terra batida e os varzeanos Ibituruna, Democrata, Pastoril, Copevale, Covepe, Santa Helena, Everest e o inesquecível Vermelho 27.
O rio, que ainda hoje atende pelo mesmo nome, Rio Doce, tinha margens verdes, prainhas, remansos, corredeiras, e peixes de ouro e prata.
Tinha piau, tucunaré, timburé, corvina, lambari, bagre e tantos outros tipos de peixe, que eu precisaria de uma crônica inteira para tarrafeá-los.
Na cidade que resiste em minha emoção como oitava maravilha do mundo, tinha uma pracinha e uma fonte de onde jorrava uma cascata luminosa que mudava de cor.
Tinha banquinhos de cimento onde casais namoravam sem medo de assalto; tinha ainda um pipoqueiro e meninos sem camisa carregando caixas de isopor entoando o bordão: Aê o picolé! Aê a laranja!
Tinha castanheiras frondosas espalhadas às margens das estradas, ypês amarelos e roxos aos pé da serra e flamboyants que sangravam no verão.
Na Valadares - que não morrerá jamais - existia uma santa que nos abençoava do alto do pico do Ibituruna, braços sempre estendidos, sorriso enigmático anunciando chuvas.
Minha cidade eterna tinha personagens igualmente eternos, como o ceguinho Olé.
Reza a lenda que Olé teria ganho na loteria mais de uma vez, mas que continuava a esmolar pelas ruas por puro prazer.
É a mesma cidade de Adriano Dias da Silva, o Casca Grossa, lenda do radio, uma espécie de celebridade local e que acabaria se elegendo vereador.
Cidade de Beto Tranca-rua, repórter esportivo que também acabaria enveredando pela política, mesmo caminho escolhido por Júlio Tebas Avelar, homem que inventou o colunismo social nos jornais da cidade e que hoje colhe bonanças.
Naquele lugar que não morre nunca, jovens de ambos os sexos se amontoavam nas proximidades do cine Pio XII para tomar sorvete, comer cachorro quente e flertar nas noites calorentas de sábado.
Naquela cidade em que cresci, os vizinhos eram vizinhos de verdade, uma espécie de extensão da família.
Muito mais do que receitas de bolo e fofocas do cotidiano, trocavam gentilezas que iam de um pouco de pó-de-café a uma caneca de açúcar, quando a lata da casa de alguém ficava vazia.
Viravam compadres, apadrinhavam filhos uns dos outros, casavam os filhos de uns com os dos outros, consolavam-se nas tristezas, ficavam felizes nas alegrias.
Láquele lugar encantado tinha leilão de gado e barraquinhas no parque de exposições, festa junina com bandeirolas coloridas, quentão, canjica, batata doce e fogueira no pátio da igreja.
Minha cidade eterna tinha quadrilha, dias de chuva e sol, sol e chuva, e casamento de viúva.
Também tinha quermesse e novena, um padre que nos ‘passava o sabão’ e um serviço de alto-falantes que despejava Roberto Carlos, Wanderléa e Wanderlei Cardoso sobre nós.
Tinha passarinhos nos quintais: tizís, rolinhas, canários do reino, curiós, andorinhas e cuitelinhos, que muitos chamavam de beija-flor.
E tinha muito mais.
Na Governador Valadares do meu coração tinha cantos encantadores em todos os cantos, e tantas outras maravilhas, que acabou fazendo de mim esse homem estranho, que passa o resto de sua vida correndo atrás do menino e do rapaz feliz que foi.
Esse homem que passa seus dias como um cão andando em círculos, tentando morder o próprio rabo.


A Música Que Toca Parar:
Mateus Sartori canta Lamento, uma cantiga que canta a dor de uma mãe que perdeu seu filho para as traiçoeiras águas de um rio.