Wednesday, September 22, 2010
A verdadeira cidade eterna
Ultimamente tenho tentado me reaproximar de Governador Valadares.
Sempre amei Valadares, cidade em que passei 17 felizes anos de minha vida.
Há muito tempo não apareço por lá.
Meu medo é o de que aquele lugar que cresci amando, já não exista mais.
Algo como um amor da adolescência que você reencontra, muitos anos depois, casada, maltratada, mãe de filhos, esperando a condução num ponto de ônibus.
Ainda não aconteceu comigo.
A Valadares da minha saudade tinha coqueiros beira-rio, ingazeiras, mangueiras onde se colhia frutas de ouro, suculentas e doces.
Em São Raimundo - o bairro que me viu crescer -, as ruas tinham nome de pedras.
Os poetas Abel Costa e Bispo Filho moravam na Esmeralda.
O meu pouso era na Topázio e os amigos de futebol, Marquinhos, Ney e Wellington Mingau viviam na Turmalina.
Joguei bola na Granada, quase namorei uma moça na Ametista, corri da polícia na Safira.
Nada grave, apenas um bando de meninos pulando a cerca de uma chácara alheia para colher carambolas, jambos, jenipapos e pitangas.
Na minha Valadares tinha campinhos de terra batida e os varzeanos Ibituruna, Democrata, Pastoril, Copevale, Covepe, Santa Helena, Everest e o inesquecível Vermelho 27.
O rio, que ainda hoje atende pelo mesmo nome, Rio Doce, tinha margens verdes, prainhas, remansos, corredeiras, e peixes de ouro e prata.
Tinha piau, tucunaré, timburé, corvina, lambari, bagre e tantos outros tipos de peixe, que eu precisaria de uma crônica inteira para tarrafeá-los.
Na cidade que resiste em minha emoção como oitava maravilha do mundo, tinha uma pracinha e uma fonte de onde jorrava uma cascata luminosa que mudava de cor.
Tinha banquinhos de cimento onde casais namoravam sem medo de assalto; tinha ainda um pipoqueiro e meninos sem camisa carregando caixas de isopor entoando o bordão: Aê o picolé! Aê a laranja!
Tinha castanheiras frondosas espalhadas às margens das estradas, ypês amarelos e roxos aos pé da serra e flamboyants que sangravam no verão.
Na Valadares - que não morrerá jamais - existia uma santa que nos abençoava do alto do pico do Ibituruna, braços sempre estendidos, sorriso enigmático anunciando chuvas.
Minha cidade eterna tinha personagens igualmente eternos, como o ceguinho Olé.
Reza a lenda que Olé teria ganho na loteria mais de uma vez, mas que continuava a esmolar pelas ruas por puro prazer.
É a mesma cidade de Adriano Dias da Silva, o Casca Grossa, lenda do radio, uma espécie de celebridade local e que acabaria se elegendo vereador.
Cidade de Beto Tranca-rua, repórter esportivo que também acabaria enveredando pela política, mesmo caminho escolhido por Júlio Tebas Avelar, homem que inventou o colunismo social nos jornais da cidade e que hoje colhe bonanças.
Naquele lugar que não morre nunca, jovens de ambos os sexos se amontoavam nas proximidades do cine Pio XII para tomar sorvete, comer cachorro quente e flertar nas noites calorentas de sábado.
Naquela cidade em que cresci, os vizinhos eram vizinhos de verdade, uma espécie de extensão da família.
Muito mais do que receitas de bolo e fofocas do cotidiano, trocavam gentilezas que iam de um pouco de pó-de-café a uma caneca de açúcar, quando a lata da casa de alguém ficava vazia.
Viravam compadres, apadrinhavam filhos uns dos outros, casavam os filhos de uns com os dos outros, consolavam-se nas tristezas, ficavam felizes nas alegrias.
Láquele lugar encantado tinha leilão de gado e barraquinhas no parque de exposições, festa junina com bandeirolas coloridas, quentão, canjica, batata doce e fogueira no pátio da igreja.
Minha cidade eterna tinha quadrilha, dias de chuva e sol, sol e chuva, e casamento de viúva.
Também tinha quermesse e novena, um padre que nos ‘passava o sabão’ e um serviço de alto-falantes que despejava Roberto Carlos, Wanderléa e Wanderlei Cardoso sobre nós.
Tinha passarinhos nos quintais: tizís, rolinhas, canários do reino, curiós, andorinhas e cuitelinhos, que muitos chamavam de beija-flor.
E tinha muito mais.
Na Governador Valadares do meu coração tinha cantos encantadores em todos os cantos, e tantas outras maravilhas, que acabou fazendo de mim esse homem estranho, que passa o resto de sua vida correndo atrás do menino e do rapaz feliz que foi.
Esse homem que passa seus dias como um cão andando em círculos, tentando morder o próprio rabo.
A Música Que Toca Parar:
Mateus Sartori canta Lamento, uma cantiga que canta a dor de uma mãe que perdeu seu filho para as traiçoeiras águas de um rio.
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38 comments:
Não admira que esse menino, esse rapaz procure a sua sua cidade. Tão linda que é(ra)!
Resta saber que se essa cidade é real ou transfigurada pelos olhos do poeta no qual o menino se transformou.
Um beijo
tua cronica, com todas as devidas diferenças, me lembrou o conto do Aníbal Machado: O retorno aos seios de Duília. é uma história comovente, como a tua, de um homem a procura de um sentido para a vida ou melhor de um reencontro com a vida. a emblemática imagem final do cão a girar, me remete também à figura mitológica da serpente Uroboro, simbolo do círculo imperfeito, da irrealização plena. aliás como todos os homens padecemos de uma plenitude, mas esse é o nosso mister. ter os olhos a procura, as descobertas, e aos redescobrimentos - tarefa ingrata de se postar como lembrança - vivemos diante desses espelhos, sombras rotas, do que somos, do que fomos...
abração
Que saudade linda! Texto de intenso lirismo. Adorei!Acompanhado de Sartori então... Não conheço Governador Valadares, só através de fotos e informações de amigos.Sem contar agora que você falou das peculiaridades da cidade. Muito legal!
Um abraço grande.
Ah Roberto!
Prepare seu coração!
As coisas mudaram!!!!
Bjs.
lídia,
esse ex-rapaz... esse ex-jovem brasileiro...
a cidade em que a gente cresce e que dela se muda, nunca mais é a mesma.
ela fica guardada dentro da gente, vira uma coisa sagrada... ganha um ar de vaticano... sacra, com seus pecados escondidos...
abração,
r.
Lindas palavras que levaram...
para as minhas eternas lembranças...
Beijos
Leca
Beto,
Sua crônica falando de Valadares de repente me lembrou uma canção do Belchior, "Fotografia 3X4", e bateu uma saudade no meu peito, eu que vivo aqui desde que nasci, da minha própria cidade, amigo...
E as mesmas lágrimas nos olhos de ler o Pessoa...
Abraço antigo,
Da rama.
sombras do que jamais seremos, talves, zé de assis... essas incompletudes estão no nosso dna...
nascemos e crescemos com elas...
incompletos morreremos.
num é não?
beijão,
r.
lau,
sou compelido a dizer que toda saudade é linda. a saudade melhor e maior de todas é, no entanto, a do futuro... a deste desconhecido... eu, que vivo meus dias ruminando paisagens já visitadas queria, ainda que de relance, ver o amanhã...
ah, sim, governador valadares que me viu crescer era de tal maneira especial, que era conhecida como princesinha do vale...
quer mais e melhor? rs
tem não...
abração do
roberto.
ah, fátima, e eu não sei? rs
estive lá, recentemente, as distância encurtarem, comprido e distante ficou o menino...
beijão,
r.
leca,
suas lembranças que são as melhores, sim.
todos nós somos, desdeq eue nascemos, protagonistas de um filme.
e você é greta, é marlene, é marilyn... e é, acima de tudo, a leca.
e isto é bonito demais, né?
abração do
r.
ramúcio,
nossas lágrimas são gêmeas e desaguam neste aí, que corre em direção ao espírito santo.
desde menininho é assim. tatuagem, karma... chame do que quiser...
não se desfruta da sombra da figueira impunemente...
beijão deste que te viu crescer, o
r.
Boa noite, Roberto.
É um encanto a cor tropical que habitou a língua portuguesa e a coloriu de ritmos e tons impossível de interromper.
Nos anos oitenta passou na TV portuguesa "O Bem Amado" e o que mais me extasiou e ainda recordo foi a insaciável criatividade linguística dessa figura impagável de Odorico Paraguaçú, vestida pelo saudoso Paulo Gracindo. Até as trapalhadas do "coronel" corrupto tinham cor. (Bem sei que é na metáfora que se escapa à censura
ignorante...)
E a festa continua aqui.
Abraço.
jad,
odorico paraguaçu voltou recentemente, em filme, tendo marco naini no papel de zaca diabo...
lembro-me maravilhado daquela cidade que não conseguia inaugurar o seu cemitério...rs... recentemente, uma cidade do interior de são paulo construiu uma belíssima capela-velório, mas meses depois , ainda não conseguiraram arranjar "cliente" para a grande inauguração...
coisas de brasil.
grande abraço do
roberto.
Vi essa ressurreição de odorico na net.
A história da capela mortuária é um espanto num país espantoso.
Outro Abraço
é verdade, jad...
o brasil é um país "cabeludo"...rs
um assombro de misérias e grandezas, espinho e flor.
abração,
r.
Roberto,
Estou apaixonada e já com saudades da tua Governador Valadares...
Que coisa mais linda é essa música!
"Se eu pudesse eu lascava o azul do céu... se eu pudesse..."
Beijinhos, querido.
pólen,
a canção conta a história de uma mãe que perdeu seu filho para as águas triçoeiras de um rio.
cresci vendo amiguinhos de infância serem tragados pelas águas traiçoeiras do rio doce.
parte da vida do povoado, quero crer.
abração,
r.
O poeta guardou a sua cidade tal qual como ela era. Na sua alma ela não mudou, mas nós sabemos que com o passar dos anos nada fica igual. Gostei muito de o ler. Beijos com carinho
Excelente texto. Contou maravilhosamente.
ah, gerana...
quando você fala que contei direitinho, fico até achando que fiz alguma coisa mais ou menos...rs
sua presença aqui, sempre um presente.
beijão,
r.
moça da rosa branca,
juro: às vezes tenho medo de voltar lá... de não ser mais o mesmo.
e, principalmente, de eu não ser mais o mesmo.
obrigado pela visita.
grande abraço do
roberto.
Da vida muda a dança sempre...
E é belo a saudade do que foi e que é único e que não tornará, mas que fica na lembrança... isto é boa parte da matéria de que é feita a poesia... vontade de eternizar... [e dela fizeste conto-crônica]
Belíssimo, Roberto!
Na minha cidade natal não tem nada, mas ainda assim, de vez em quando, me bate a nostalgia :)
Sempre que leio uma crônica sua falando sobre o passado, fico contagiado por uma nostalgia danada. Não porque sinta falta de minha cidade natal, mas por pensar que o que vivifica a memória é o afeto, esse viajante que ignora o tempo e o espaço. E por acaso sabemos o quanto ele transfigura o hoje em função do ontem?
De Governador Valadares só conheci uma parada rodoviária, coisa impessoal e passageira, quase que um nome apenas; exatamente o oposto dessa sua cidade tão pessoal e que se quer eterna na sua memória e no seu afeto, e tão cheia de detalhes poéticos. Eu me lembrei do Ferreira Gullar:
"e a cidade está no homem
que está em outra cidade
[...]
a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa
[...]
a cidade não está no homem
do mesmo modo que em suas
quitandas praças e ruas"
Uma curiosidade: há um bairro no subúrbio do Rio, Rocha Miranda, que também possui ruas com nomes de pedras preciosas. E por um namoro de adolescência, a Rua dos Topázios me ficou bem conhecida. Rs.
Grande abraço, Roberto!
P.S.: Essa da cidade ganhar ares de Vaticano é sensacional! Estou sempre por aqui lendo, hein.
me encantei pela valadares que está no mapa de teus afetos... beijão, roberto!
Roberto,
da Botelhos que amo, guardo, num ponto de ouro no coração, o cheiro da sala de aula da minha primeira escola. Guardo ainda, como uma alma ao lado da minha alma inata, as pinturas do teto da Igreja Matriz, onde eu passava horas e horas contemplando os desenhos sacros na minha infância. Até que a igreja começou a ruir. Eu comecei a questionar a fé. hoje sou mais espirita que católicoMas aquelas pinturas povoam o céu que eu desenho para mim.
Forte abraço!
Ainda sem poder voltar, vou passando pelos amigos e me encantando com os sentimentos que brotam tão verdadeiros!
beijão, Roberto!
".... tinha cantos encantadores em todos os cantos, e tantas outras maravilhas, que acabou fazendo de mim esse homem estranho, que passa o resto de sua vida correndo atrás do menino e do rapaz feliz que foi.
Esse homem que passa seus dias como um cão andando em círculos, tentando morder o próprio rabo"
E por vezes..., a nostalgia do berço onde fomos felizes!
Sempre escreves maravilhosamente das tuas saudades, Roberto.
Beijo.
Ai Roberto! É tão bom te ler, sentir junto até esta saudade que não tenho.
Deve ser muito bom ter estas memórias de infância feliz. Só um erro encontrei: você pensa que é um homem, mas continua e é este menino aqui descrito para nosso deleite!
Excelente texto!
Beijos
Mirze
ô, mirze...
assustei quando c6e disse que eu "penso ser um homem"...rs
tomei um susto danado... mas me recobrei antes do final do post.
grato pelo carinho,
r.
moça do OutrosEncantos,
a felicidade é a panacéia, a fonte de Ponce de Leon, o Nirvana...
com o tempo, vamos aprendendo que a beleza de tudo está na caminhada.
o destino final conhecemos bem.
abraço grande,
r.
tânia,
ando bem desmotivadinho, pelejando com uns perrengues, e sentindo falta de, eu também, estar aqui.
sinto falta de meus amigos aqui. da camaradagem que se estabeleceu.
mas tudo tem seu tempo, bem o sei.
ando juntando meus caquinhos, na esperança de me ser inteiro um pouco mais adiante.
a vida às vezes arde.
é fato.
beijão do
roberto.
ô, nanini...
cê deveria ser secretário do turismo em botelhos...
c6e escreve assim e dá uma enorme vontade de conhecer o lugar que te viu nascer e crescer.
abraço deste seu amigo,
o r.
os verdadeiros amores não se apagam no tempo; antes apagam o tempo.
um abraço, primeira pessoa de valadares!
carla,
adquiri, recentemente, África, com fotos de sebastião salgado e textos de mia couto.
lindíssimo.
se não tem ainda, adquira.
é de tirar o fôlego.
abração do
roberto.
jorgíssimo, embaixador bracarense no mundo...
amor verdadeiro vira tatuagem.
não sai nem com "caco de telha".
alegria imensa te rever por aqui.
abração do seu amigo,
r.
carla
um amigo me disse ha algum tempo que, tiram-nos da "roça", mas não tiram a roça de dentro de nós.
o que acho muito bom.
grande abraço do
r.
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