Tuesday, June 10, 2014

Os recortes que guardo em mim

 
Guardo recortes de copas do mundo em minha memória. São imagens que fui acumulando através
dos tempos e que permanecem intactas, pristinas, imortais.
Alguns destes recortes eu vi naquilo que aconteceram, em tempo real. Outros, recorri aos arquivos da televisão.
Comecei a coleção na copa da Suécia, em 1958, quatro anos antes de eu nascer.
E o primeiro recorte traz o menino Pelé dando um chapéu, dois chapéus - uma chapelaria - dentro da área sueca e fuzilando o goleiro.
 A segunda traz o mesmo menino chorando, como se tivesse perdido alguém da família, mas era um choro de felicidade.
 Aos 17 anos de idade o menino de Três Corações era campeão do mundo. Ele já era rei.
Guardei também os dribles desconcertantes de Garrincha naquela copa, entortando joões de todas as raças.
Tudo o que veio depois destas imagens é cereja sobre o bolo, é azeitona em meu pastel.
 Como esta recolhida da copa de 1962, no Chile, toda a malandragem de Nilton Santos que, após cometer pênalti sobre o atacante espanhol, dá dois passinhos para fora da área, rápidos e discretos, ludibriando o árbitro, que marcou falta.
 De 1966, na Inglaterra, guardo pouca coisa.
 Guardei a entrada criminosa de Coluna em Pelé. Guardei o antifutebol, a violência daquela caçada em campo, antítese do que deveria ser o futebol.
 Pelé foi retirado do gramado e muitos portugueses comemoram aquele ato de violência como se fosse um gol do título.
 Não era. Não foi. Não é.
 Acabaram perdendo para os ingleses. No raso, achei bom. Nenhuma equipe merece vencer uma competição praticando o antijogo.
 Da copa de 1970 guardo tudo. Guardo os nomes Jalisco e Guadalajara, por exemplo. Guardo até gol que não foi gol. Três gols que não foram gols.
No primeiro deles, Pelé chuta do meio de campo, tentando encobrir o goleiro da Tchecoslováquia, que volta desesperado para a meta, a bola voando insinuante e perigosa, até cair detrás da trave.
No segundo não gol, Pelé dá um drible sem bola no goleiro uruguaio Mazurkiewicz e chuta cruzado, com o gol vazio, a bola caprichosamente passando ao lado.
 No terceiro, uma das defesas mais espetaculares e milagrosas que já testemunhei:
Pelé cabeceia certeiro, no chão, à queima-roupa, mas o legendário arqueiro Gordon Banks se espicha todo, puro reflexo e arrojo, evitando o gol.
Da copa de 1974 ficou a imagem da anarquia disciplinada da laranja mecânica de Rinus Mitchels, quebrando todos os padrões táticos jamais vistos até então.
Ao lado da seleção brasileira de 1982, o escrete de Johan Cruijff e Johan Neeskens entrou para a estória como o time de futebol mais bonito, aquele que convenceu, mas não venceu.
Ficaram na memória as mãos imensas do goleiro Sepp Maier, a elegância de Beckenbauer e a ausência do Rei.
 De 1978 ficou o branco do papel picado salpicado sobre o verde do gramado durante a copa que a Argentina ganhou no grito.
 E o vento que ventava raivoso, patagônico, vento encomendado por generais, como aquele placar dilatado da vitória dos anfitriões sobre o Peru, e que tirou o Brasil da final.
 Ficou a curva da bola no chute de Nelinho contra a Itália, no jogo que valeu o terceiro lugar. Dino Zoff se espichando todo, arqueando como um peixe, mas que de nada adiantou. A curva  feita pela bola foi um fenômeno impossível. Um dos gols mais inesquecíveis de um mundial.
De 1982 ficou tudo, e esta mistura de prazer e dor que ainda hoje me fazem contorcer, ora de gozo, ora de agonia e sofrimento.
 Ficou o frango de Waldir Perez diante da Rússia, as jogadas geniais de Zico e Júnior e os passes de Sócrates, usando o calcanhar.
 Ficaram os três gols de Paolo Rossi, esta eterna viagem a bordo de um trem fantasma, uma ferida aberta que o tempo não curou.
No retorno ao México, em 1986, foi mais do mesmo. Só que menos e menor.
 Principalmente, ficou o pênalti que Zico errou diante da França, minutos após ter entrado no jogo.
Em 1990, foi como se não tivesse havido Copa. Não ficou sequer o gol eliminador de Claudio Caniggia.
Da Copa seguinte, disputada aqui nos EUA, ficou a imagem de Bebeto, marcando gols e comemorando como se embalasse um bebê.
De 1998 guardei a convulsão de Ronaldo a poucas horas da final. E Roberto Carlos ajeitando o meião enquanto a anfitriã fazia 2 X 0.
Em 2002 aconteceu a primeira copa sediada por dois países. Ronaldo inovou com aquele topetinho à moda do personagem Cascão, de Maurício de Souza, e fez uma dupla preciosa com Rivaldo. Mas nada me marcou tanto quanto o jogo contra a Inglaterra.
Galvão Bueno anunciou no intervalo da partida a morte de Roberto Drummond, uma mistura de amigo e mentor meus.
O Brasil virou o jogo com um gol espírita de Ronaldinho, cobrando uma falta de muito longe, descrevendo uma curva de arco-íris e morrendo no fundo das redes de Seaman.
 Até hoje acho que teve uma mãozinha de Roberto Drummond naquela jogada. Quando nada, um sopro de seus pulmões.
Não guardei absolutamente nada da Copa da África do Sul e hoje, quatro anos depois, desta que se inicia em poucas horas pode ser que guarde uma ou outra gema garimpada da grama.
Aconteça o que acontecer, minhas roupas já cheiram a gás lacrimogênio e a alma parece ser feita de chumbo.
Ficarão esta vergonha, os elefantes brancos no norte e centro-oeste, obras inacabadas de cabo a rabo, sorrisos blasés, alguns gaiatos mais ricos e uma mancha perene na nossa história.
Muito mais do que na minha história.
Na história do meu país.

Tuesday, June 3, 2014

A janela mágica


 
A primeira vez que ouvi falar em copa do mundo foi em 1970. Tinha 8 anos de idade e em São Raimundo havia 4 aparelhos de televisão, ou televisores, como chamavam alguns.
Se não me falha a memória, foi o primeiro ano em que se transmitiu alguma coisa em cores no mundo, com aquela Copa  disputada no México.
Nenhum dos quatro aparelhos existentes era em cores, mas estava de ótimo tamanho, mesmo a imagem não sendo lá grande coisa e o vento mudando de vez em quando a qualidade da imagem.
‘Chuviscava’ muito nas telinhas de então.
Na Rua Topázio, na casa de Dona Núbia e seu Noca, passava Bonanza, Forte Apache, Terra de Gigantes, Túnel do Tempo, Perdido no Espaço e Viagem ao Fundo do Mar.
Passava um mundo feito de encantamento e magia, que não consigo descrever em palavras, por mais que tente convencer minhas filhas de que antes do videogame, existiu a televisão.

Não dava para colocar a rua inteira na casa dos Novais e Dona Núbia, generosa, abria a janela, para a molecada assistir, ainda que do lado de fora.
Amontoados uns sobre os outros, na ponta dos pés ou sobre tijolos catados em terrenos baldios, nós nos espremíamos por um pedacinho de tela.
Um cotovelo aqui, um ombro se esgueirando ali, ninguém brigava.
Ninguém reclamava, com medo de perder o lugar no futuro.
Um dia, menino de sorte que sempre fui, fui convidado a entrar e me sentar entre os filhos do casal. E nunca mais saí de lá. E nem aquela sala saiu de mim.
Eu já gostava de futebol, claro.
Jogava com os meninos na rua e queria ser Pelé.
Depois quis ser Tostão e Jairzinho, o Furacão. O time montado por João Saldanha era tão bom, que eu não me importava em ser Clodoaldo, Rivelino ou Gerson, o canhotinha de ouro.
Poderia ser até Wilson Piaza, capitão do Cruzeiro do meu coração.

Apesar de muito menino, lembro-me muito claramente de tudo o que me cercava naqueles dias.
Eu era obviamente muito novinho para entender que o país vivia sob uma ditadura militar e que o futebol, o ópio do povo, era uma eficiente ferramenta do regime para acalmar os ânimos. O futebol tem esse poder, pacifica e inflama.
E, no Brasil, não sei explicar o porquê, ganhou contornos muito diferentes mesmo dos lugares onde a paixão pelo esporte é igualmente inexplicável.

Lembro-me do foguetório a cada vitória, dos relatos no radio e do burburinho na mercearia, os adultos recitando jogadas, cantarolando gols que nem todos viram, mas ouviram pelas ondas do rádio.
A Copa seguinte eu veria em casa, praticamente sozinho, num aparelho preto e branco de segunda-mão, que tinha o auxílio luxuoso de uma tela degradê, que mais se pareciam a uma lasca do arco-íris.
E nunca mais parei de acompanhar o Brasil nas Copas do Mundo.
A de 1982 foi a que mais doeu, mas foi também a que me deu maior prazer.
O Sarriá é meu Maracanazo, mas é também meu estádio Azteca de 1970, palco da primeira vitória.
E é muito mais.
Só não foi a minha primeira. Isto é que não foi.
Quarenta e quatro anos depois daquele momento marcante em minha vida, o Brasil recebe uma Copa do Mundo e eu não vou estar presente.
Não vou por opção. Muito mais do que isto, não vou por convicção.
A janela da sala de Dona Núbia já não existe mais.
Onde um dia existiu uma casa, existe hoje uma loja de material de construção.