Wednesday, March 31, 2010



Numa madrugada de insônia destas eu estava vendo o filme The Pledge, dirigido por Sean Penn e estrelado por Jack Nicholson, e uma cena me arrepiou, pela canção que lhe fazia "pano de fundo".
Numa manhã nublada, o personagem de Jack Nichoson pescava em um lago...
E esta canção soprava com o vento.
















Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia.
Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceitado o que não se entende porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada.
Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios.
Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível.
Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa.
Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada.
Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer pelo menos não fui tolo e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz.
Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

Clarice Lispector

Tuesday, March 30, 2010


















Alencar, o rei da mentira

É claro que já menti nessa vida, mas nunca disse um ‘eu te amo’ que não tivesse sido verdadeiro. Cazuza dizia que mentiras sinceras lhe interessavam. Escorados nesse mote, muitos de meu convívio demoraram a acordar para uma realidade melhor. Outros continuaram dormindo.
À medida que fui amadurecendo, passei a evitar os pequenos deslizes. Mentir por mentir, jamais. Mas tem gente que mente por costume e o faz de tal maneira, que as mentiras se transformam em doentias verdades. São os casos patológicos.
Estes não aprenderam ainda que a verdade é tinta permanente.
É cinzel esculpindo na pedra.
Já a mentira é um paliativo.
É o rabisco da vara na areia.
E não apenas o antônimo da verdade.
A verdade pode machucar, é ferro em brasa, que marca para sempre o couro do gado.
Mas a mentira vai mais fundo, tem vocação de punhal.
A verdade pode provocar dor, mas com o tempo traz alívio e luz.
A mentira, não.
Com a mentira vem o rancor, a quebra da confiança e o desprezo.
Que fique claro: mentir e omitir são duas coisas completamente diferentes.
A omissão pode ser uma atitude com resquícios de covardia.
Mas a mentira é 100% covarde.
Conheci muito mentiroso nessa vida. Mas nenhum com a eloqüência e a cara-de-pau de um caminhoneiro de São Raimundo, o Alencar.
Mentia para impressionar, ou para tirar vantagem de situações completamente irrelevantes. A maior parte do que falava era ficção barata.
Segundo seus relatos, havia percorrido o trecho Valadares - Belo Horizonte, 360 quilômetros de estrada esburacada e perigosa em fantásticas três horas. E com o caminhão cheio de bois.
Num outro dia, aparecia no bar, pagava cachaça para todo mundo e dizia que estava comemorando os treze pontos feitos na loteria esportiva. O tempo passava e ele continuava vivendo de aluguel e comprando fiado no armazém de Zé Barbudo.
Segundo Alencar, o pára-choque amassado de seu caminhão era a prova material de que havia atropelado uma onça enorme, quase chegando a São Paulo. “Não deu para aproveitar nem o couro”, fartava-se de repetir.
Se viajava ao Rio, dizia ter almoçado na casa de Roberto Carlos e era amigo de Zico, do Flamengo. Era o rubro-negro, o rapaz. E gostava de música romântica.
Com o passar do tempo, ficou estigmatizado e ninguém mais acreditava nele.
Como começaram a ignorá-lo, resolveu se assumir mentiroso e mandou pintar, com as cores do Mengão, nos dois pára-lamas traseiros de seu caminhão Mercedes 1113, os seguintes dizeres:
Alencar, o rei da mentira!
E foi acolhido de volta.
Em todo lugar onde estivesse, a roda se fechava em torno dele e as estórias fantásticas eram garantia de entretenimento. Afinal, Alencar tinha um tio astronauta que fora à lua duas vezes, um primo que namorara a miss Brasil (uma certa Marta Rocha), e um conhecido que estudara com o ex-presidente Getúlio Vargas.
Não raro, mentia atendendo a pedidos.
Numa destas ocasiões, cruzou com a viatura da polícia rodoviária na entrada de um posto de gasolina. Os dois carros ficaram lado a lado e um patrulheiro pediu:
- Ô Alencar, conta uma mentirinha aí.
Alencar pediu desculpas, mas disse que não podia.
- Estou indo pedir socorro em Valadares. Teve um acidente a 30 quilômetros daqui e tem gente ferida espalhada pelos dois lados da estrada.
Os patrulheiros nem se despediram. Ligaram as sirenes e seguiram, em alta velocidade, na direção do horrível acidente.
Duas horas depois retornaram ao posto de gasolina e lá estava o Alencar, comendo uma picanha e bebendo uma Brahma bem gelada com outros dois caminhoneiros.
Um dos patrulheiros foi até a mesa e, de dedo em riste, mandou o seu recado nervoso:
- Escuta aqui, Alencar! Dessa vez você passou dos limites! Que brincadeira de mau gosto foi essa de dizer que tem um acidente cheio de mortos e feridos perto daqui?!
Alencar deu uma garfada na parte gorda da picanha e respondeu, impávido:
Uai, mas você não pediu para eu contra uma mentira?
E todos caíram na gargalhada.
Ninguém imaginou, no entanto, que Alencar ainda pagaria caro pelo seu estilo de vida.
Numa madrugada, acordou a mulher e disse que estava enfartando. A patroa ajeitou melhor o travesseiro, resmungou qualquer coisa e continuou a dormir.
Dois dias depois ele foi enterrado, humildemente, sem as pompas normalmente reservadas a um rei.

*

A Música Que Toca Sem parar:
a improvável parceria de Ritchie, musicando e cantando Meantime, poema da fase inglesa de Fernando Pessoa.

Saturday, March 27, 2010

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Cada momento passado juntos
era uma celebração, uma Epifania.
Nós os dois sozinhos no mundo.
Tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
Descias numa vertigem a escada
A dois e dois, arrastando-me
Através de húmidos lilases, aos teus domínios
Do outro lado, passando o espelho.

Pela noite
concedias-me o favor,
Abriam-se as portas do altar
E a nossa nudez iluminava o escuro
À medida que genuflectia. E ao acordar
Eu diria Abençoada sejas!
Sabendo como pretenciosa era a benção:
Dormias, os lilases tombavam da mesa
Para tocar-te as pálpebras num universo de azul,
E tu recebias esse sinal sobre as pálpebras
Imóveis, e imóvel estava a tua mão quente.

Rios palpitantes
por dentro do cristal,
A montanha assomando na bruma, mar enfurecido,
E tu com a bola de cristal nas mãos,
Sentada num trono enquanto domes,
— Deus do céu! — tu pertences-me.
Acordas para transfigurar
As palavras de todos os dias,
E o teu discorrer transbordante
De poder revela na palavra tu
o seu novo sentido: significa rei.
Simples objectos transfigurados,
Tudo — a bacia, o jarro —, tudo
Uma vez de sentinela entre nós
Se torna límpido, laminar e firme.

Íamos, sem saber para onde,
Perseguidos por miragens de cidades
Derrotadas construídas no milagre,
Hortelã pimenta aos nossos pés,
As aves acompanhando-nos o voo,
E no rio os peixes à procura da nascente;
O céu, a nós se abrindo.

Porque o destino seguia-nos o rastro
Como um louco com uma navalha na mão.


Arsenynij Tarkovskij
Poeta e tradutor russo
(Elisavetgrad, 25 Junho 1907 – Mosca, 27 Maio 1989)

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A Música Que Toca Sem Parar:
Antonio Vlleroy, Sinal dos Tempos, dele e de Bebeto Alves

Friday, March 26, 2010

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Um Roqueiro de Ficha Limpa

Preciso parar com a mania de levar revistas masculinas para o banheiro.
Até já tentei, como explicarei a seguir. Mas, juro, não compro essas revistas para ver as moças peladas.
Faz tempo que não as adquiro para esse fim.
Compro pra ler as entrevistas e os artigos, que são muito bons, e pelo excelente trabalho editorial que realizam.
Sim, eu sei. Ninguém acredita. Minha mulher não acredita.
Desde a primeira namorada, esse tem sido um problema sério.
E esse, que julgo salutar, costume, já me fez passar por algumas situações embaraçosas.
Há não muito tempo, eu saía do mais íntimo dos redutos, e esbarrei com um conhecido pastor evangélico.
Na verdade, foi mais que um esbarrão. Foi uma “colisão”.
Ele, um pastor da velha guarda com fama de severo, tinha muita pressa de entrar no banheiro.
E eu tratei de colaborar o melhor que pude, apressando-me, vendo a maçaneta da porta girar nervosamente.
Acho que ali, na saída, ao vê-lo suando nas têmporas, é que matutei pela primeira vez na vida que, assim como qualquer um de nós, pecadores, pastores e padres também freqüentam banheiros.
E, assim como nós, pecadores, dependendo do que tiverem ingerido, estão sujeitos às intempéries intestinais.
Voltando ao episódio, colidimos violentamente, o pastor e eu.
E a revista masculina escorregou de debaixo do meu braço, caindo no chão com as páginas centrais escancaradas.
As páginas, e as pernas de uma conhecida atriz de televisão, que revelava aos homens comuns desse mundo, um tanto bom de sua cobiçada intimidade.
Num flash, recordei-me de ter lido em algum lugar sobre o cachê milionário recebido para posar para a revista.
Mas este detalhe, ali, em nada importava.
E eu e o pastor ficamos com cara de dois cowboys, cada um com sua respectiva arma na mão, olhando nos olhos do adversário, tentando adivinhar o próximo movimento.
Ele portava uma bíblia.
Eu, uma playboy.
Corremos os olhos pela fotografia colorida naquela fração de segundos, que nos pareceu - quero crer, também a ele -, uma eternidade.
Apressado em acertar as contas com sua barriga, ele só teve tempo de me passar um olhar severo, antes de bater a porta firmemente atrás de si.
Segundos depois ouvi o barulho característico de alguém que não estava bem dos intestinos.
Fui para minha sala, refugiei-me detrás da escrivaninha e fiquei naquele estado de espírito que oscilava entre o envergonhado e o já conformado, esperando a bronca dele.
E ele veio, mas não trouxe o sermão para o qual eu tanto me preparara.
Deve ter ficado constrangido com os sons inerentes à “natureza” humana, que ele sabia que eu escutara do lado de fora do banheiro.
Entrou em minha sala, falou de um evento em sua igreja e eu achei melhor não tocar no assunto da revista, ou tentar me explicar.
Estava de ótimo tamanho.
Enquanto ele falava, eu me prometia que, mesmo sendo a título de material de leitura para a duração “do procedimento” cabível (dar uma utilidade extra ao tempo consumido no banheiro), eu nunca mais levaria uma revista masculina comigo.
E durante muito tempo mantive a promessa, até que no outro dia apareceu alguém com uma revista destas na redação, e não resisti.
O entrevistado era Marcos Nasi, o polêmico vocalista do grupo Ira.
Nesta entrevista ele falava de sua trajetória na profissão de músico, gabou-se de ter namorado Marisa Monte e Marisa Orth, chamou o sertanejo Luciano de “anão de jardim” e contou “todas” as suas inconseqüentes rusgas com a polícia. Disse que nunca foi preso.
"Tecnicamente", pensei eu.
Nasi se esqueceu de um episódio ocorrido em Framingham, no início dos anos 90.
Episódio este, que relembro aqui:
Após um show do Ira no Ipanema ele ajudava e desconectar o equipamento da banda, quando se aporrinhou com um fã embriagado.
Pela ira do vocalista do Ira, o moço deve ter insistido para que ele cantasse uma música de Zezé de Camargo e Luciano.
Nasi estava possesso.
O roqueiro desceu do palco e já foi socando o pobre rapaz, que teve sangramento no nariz e não chegou a reagir.
Nocauteado, apenas chorou.
Alguém chamou a polícia e Marcos Nasi foi algemado e colocado dentro de uma viatura.
Carlos Silva, que trazia o Ira ao Ipanema, foi conversar com os policiais, enquanto eu, que nada tinha a ver com o peixe, limpava o nariz do rapaz com um maço de guardanapos de papel e tentava convencê-lo a não prestar queixa.
Na minha ignorância, isto poderia trazer-lhe alguns problemas, pois o agredido era um imigrante indocumentado.
A vítima não prestou queixa e Nasi pode voltar ao Brasil com o grupo no dia seguinte, sem nenhum problema.
Mas naquela noite eu não dormi.
Perdi o sono, arrependido por ter me envolvido na confusão.
No fundo do meu coração eu sabia que Marcos Nasi deveria ter passado a noite na cadeia e sido responsabilizado por sua agressividade. Ele não deveria ter ficado impune.
Em sua entrevista à revista masculina tantos anos depois, eu o vejo alardear que tem a ficha policial limpa. O que talvez seja verdade.
Mas, inocente, eu sei que ele não é.

*

A Música Que Toca Sem Parar:
Barão Vermelho, já não tendo Cazuza nos vocais, Down em Mim (Cazuza e Frejat)

Wednesday, March 24, 2010

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TODAS AS PALAVRAS

As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.


Manuel António Pina
Jornalista e escritor português
(Sabugal, Beira Interior, 18 de Novembro de 1943)



A Música Que Toca Sem Parar:
Roberto Mendes, Flor da Memória, melodia dele, vestindo as palavras de Capinam

Tuesday, March 23, 2010















Isabella Sonhava

Será que ela tinha uma boneca Hello Kitty?
Assistiria Bob Esponja na televisão?
Gostaria de A Bela e a Fera e da Pequena Sereia?
Qual seria a sua fábula infantil favorita?
Será que seu cabelo ficava bonito amarrado por laço de fita?
Usava trancinhas? Tererês?
Será que ela gostava de sorvete de morango?
Será que comia brócolis?
Do que gostava de brincar?
Amarelinha, videogame, bonecas de pano – às quais tratava como pequenas filhas e lhes dava amor e cuidados -, ou esconde-esconde?
Pedra, papel e tesoura?
O que gostava de cantar Isabella?
Ciranda-Cirandinha? Twinkle twinkle little star?
Nos seus sonhos, feitos de inocência e nuvens, será que ela conversava com animais de estimação?
Falaria com anjos?
Teria amiguinhos imaginários, daqueles que só as crianças vêem e que os adultos dizem ser o anjo da guarda?
Nos seus pesadelos, feitos de monstros de outras dimensões e bruxas malvadas, quem era o herói que a salvava?
O Pai? O amiguinho imaginário? Ou despencaria de um precipício até beijar o chão?
Será que Isabella acordava chorando no meio da noite?
Será que sorria?
Quando nasceu o seu primeiro dentinho?
Quando caiu o primeiro?
Gostaria de cães e gatos? Teria um? Gostaria de ter um?
Amaria passear pelo zoológico?
Gostaria de livros, de desenhar? Gostaria de flores?
Qual a flor favorita de Isabella Nardoni?
Cravo, lírio ou jasmim?
O que desenhava Isabella Nardoni?
Os irmãos? Bichinhos? Criaturas como as dos cartoons?
Qual era a sua cor predileta?
Azul? Rosa? Cobalto? Carvão?
Qual o tamanho de seus sapatos? Já teria pintado suas unhas?
Será que algum dia mergulhou no oceano? Teria gostado do carinho das águas deslizando pelo corpo?
Gostaria de mar e brisa, de vento e verão?
Seria fogo ou água, essa menina tão linda?
Qual seria o seu signo no horóscopo chinês?
O que lhe reservaria o futuro?
Na adolescência iria ter acne no rosto? Sardas quando exposta ao sol?
O que estaria escondido nas cartas da cartomante, ou nas linhas desenhadas na palminha de sua mão?
Quando se apaixonaria pela primeira vez? Estaria, em seu futuro, reservado um grande amor?
Que profissão teria a adulta Isabella Nardoni?
Médica-veterinária? Trabalharia num banco? Venderia passagens aéreas para ilhas paradisíacas e pacotes para a Disney? Seria dona de casa?
Se casaria? Teria filhos?
Ninguém sabe. Ninguém saberá.
Isabella Nardoni voou.
Foi atirada do 6º andar do edifício em que vivia com o pai, a madrasta e dois irmãos.
Saiu pela janela e voou. Virou anjo.
Como aqueles com os quais conversava nas noites em que sonhava.
Sim, Isabella sonhava.

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A Música Que Toca Sem Parar:
ancorando um coral de crianças, Milton Nascimento... Benke
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Lugares mal situados
Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar

Daniel Faria

Foto: Sebastião Salgado, gênio do olhar


A Música Que Toca Sem Parar:
Banda Santaren... Ipê e Manacá (Ife/Petrúcio Maia/Manassés/Cândido)... o belo solo de trombone do saudoso ed maciel me emociona até hoje.

Sunday, March 21, 2010











As férias brasileiras de Paul McIntire

Paul McIntire é um americano de quatro costados, tataraneto de irlandeses, daquele tipo que sai vestido de druída na parada do Dia de São Patrício, e é fanático por esportes.
É Yankees no beisebol, Knicks no Basquete, Giants naquilo que os americanos chamam de futebol e, até já se meteu numa briga durante uma partida de hóquei sobre gelo, ao torcer pelo Rangers numa semifinal contra o Devils.
Como a maior parte dos americanos, satisfaz-se por aqui mesmo.
Para ele, o Havaí é o que há de melhor. Já esteve lá quatro vezes.
Conhece as ladeiras de San Francisco como a palma de suas mãos, e seus olhos já foram tocados pela beleza das cataratas de Niagara e do Grand Canyon.
Boston é um banho de cultura toda vez que passa por lá e, aventura de verdade, só nos cassinos de Las Vegas, onde vangloria-se de ter já tirado quase 30 mil dólares de uma máquina caça-níquel.
Os desertos do Arizona não são um mistério para ele. Afinal, fez o trajeto da Rota 66 em mais de uma ocasião. Coisa mais linda!
Mas ele ultimamente andava cabisbaixo.
Estava assim desde o seu divórcio com Diana, uma ruiva que conheceu no primeiro dia de aula do ginásio, e com quem veio a se casar, tão logo tirou o canudo de técnico em computação.
O divórcio, após apenas 3 anos de casamento e nenhum filho foi uma pauleira.
Sem destino ao final das jornadas de trabalho, conseguiu abrigo num Go-Go Bar de Newark.
Foi lá que ele conheceu - entre rodadas de uísque e cerveja -, as inigualáveis meninas do Brasil.
E o mito americano começava a desabar.
No início, relutou um pouco.
Recusava-se a comparar as ondas de Honolulu com as da praia da Joaquina.
Foi nos braços de uma loirinha de Maringá, que passou a acreditar que as extintas Sete Quedas, em Foz do Iguaçu, foram mais exuberantes que as rivais de Niagara.
No movimento dos quadris de uma carioca ele teve a certeza de que o carnaval do Rio de Janeiro era o que os americanos chamam de “The Real Thing”. E que o Mardi Gras de New Orleans era uma imitação barata da folia momesca.
Após uma noite com uma mineirinha de Governador Valadares, Paul passou a contemplar a possibilidade de ir ao Brasil, onde teria as mais belas mulheres do mundo ao alcance de suas mãos.
Passou os meses seguintes estudando o país, e teve até algumas discussões com pessoas de sua família.
Ninguém aceitava esse seu arroubo de paixão e compaixão por um país cuja capital era a Argentina.
“Estão vendo? Vocês são uns tapados!”
E foi assim que Paul Mc Intire classificou de propaganda imperialista aquela matéria de página inteira no New York Times. Nela, o jornalista insensível e tendencioso, chamava São Paulo de Capital Mundial dos Seqüestros-relâmpagos e as favelas do Rio de Janeiro de Nova Medelim.
Feliz e animado, ele partiu de New York para um mês de volúpia, caipirinha, pagode, churrasco a rodízio, praia e sol nos doces trópicos.
A viagem não começou muito bem, é verdade.
Sua bagagem foi extraviada, e ele ficou com a mesma roupa durante quase dois dias no calor abafado do Rio de Janeiro.
O que lhe valeu foi aquela camiseta com a estampa da Ararinha Azul, que comprou ainda no aeroporto do Galeão.
Apesar do abafamento, não fez sol durante os primeiros 5 dias.
Neste período, registraram-se as maiores enchentes de toda a história da cidade. Uma lástima!
Foram dias de tédio e mal-entendidos com os funcionários do hotel, que insistiam em comunicar-se com ele em português.
“Droga, o inglês deveria ser obrigatório no resto do mundo”, resmungou para a camareira de sorriso humilde.
No dia em que a chuva parou, Paul McIntire resolveu sair à caça de mulheres pelo calçadão de Copacabana. Agora, sim, finalmente, chegara a sua vez!
Cinco horas depois e já um pouco desapontado por não querer sucumbir aos encantos de uma garota de programa com um suspeitíssimo pomo-de-adão, resolveu voltar ao hotel.
Eram quase 3 da manhã, quando sentiu o cano frio do revólver encostado em sua nuca.
Mesmo sem falar o português, entendeu direitinho o que os assaltantes queriam.
E foi assim, trajando apenas uma prosaica cueca branca, que Paul McIntire chegou à delegacia do bairro para reportar o crime ao cabo de plantão, mas este também não conseguia captar os detalhes de seu infortúnio.
Uma vez mais, a bendita barreira da língua.
Passou os dias seguintes no quarto do hotel, convalescendo daquilo que pensava ser uma feijoada mal digerida.
Não dava mais.
Uma semana após a sua chegada, desiludido e sem bronzeado (continuou chovendo no Rio), Paul Mc Intire voltou aos States.
Três dias em casa, e ele ainda estava febril, com o corpo dolorido. Acabou no leito de um hospital.
O diagnóstico médico causou surpresa entre seus pares, enterrando de vez o fascínio tupiniquim sobre Paul McIntire:
Ele havia sido picado por um mosquito inofensivo, de nome esquisito, um certo Aedes Aegypti.

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A Música Que Toca Sem Parar:
João Bosco, em seu disco gravado ao vivo para a MTV, recita "E Então, Que Quereis?"(Maiakoviski) e emenda com Corsário, parceria dele com Aldir Blanc.

Saturday, March 20, 2010














É amargo o coração do poema.
A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela,
em baixo a outra mão
mexe num charco branco. Feridas que abrem,
reabrem, cose-as a noite, recose-as
com linha incandescente. Amargo. O sangue nunca pára
de mão a mão salgada, entre os olhos,
nos alvéolos da boca.
O sangue que se move nas vozes magnificando
o escuro atrás das coisas,
os halos nas imagens de limalha, os espaços ásperos
que escreves
entre os meteoros. Cose-te: brilhas
nas cicatrizes. Só essa mão que mexes
ao alto e a outra mão que brancamente
trabalha
nas superfícies centrífugas. Amargo, amargo. Em sangue e exercício
de elegância bárbara. Até que sentado ao meio
negro da obra morras
de luz compacta.
Numa radiação de hélio rebentes pela sombria
violência
dos núcleos loucos da alma.

Herberto Helder

*

A Música Que Toca Sem Parar:
Kleiton e Kledir, parceria de irmãos, Bry.


*

Wednesday, March 17, 2010

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Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
De dormir ao relento entre as tuas mãos.

*

Sem outra palavra para mantimento
Sem outra força onde gerar a voz
Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede
Que cavaste no meu canto, amo-te
Sou cítara para tocar as tuas mãos.
Podes dizer-me de um fôlego
Frase em silêncio
Homem que visitas
Ó seiva aspergindo as partículas do fogo
O lume em toda a casa e na paisagem
Fora da casa
Pedra do edifício aonde encontro
A porta para entrar
Candelabro que me vens cegando.
Sol
Que quando és nocturno ando
Com a noite em minhas mãos para ter luz.

*

Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos
E quero cair em desuso
Fundir-me completamente.
Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo
Os focos celestes que a candeia humana não iguala
Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer.
Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te
Voltado para mim
Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.

*

Daniel Faria nasceu no dia 10 de Abril de 1971 em Baltar, Paredes, Portugal.
Quando faleceu, no dia 9 de Junho de 1999, era noviço no mosteiro de Singeverga.



A Música Que Toca Sem Parar:
Beto Guedes e Caetano Veloso, cantando ao vivo no Rio de Janeiro, Luz e Mistério, de autoria dos dois.













De veroncas, restojos e caçuletas

Tadeu Martins é um grande sujeito das Minas Gerais, mais exatamente de Itaobim, cidadezinha do Vale do Jequitinhonha, fincada às margens da BR-116, a velha Rio-Bahia.
Trata-se de um amigo dos bons, daqueles que a gente coloca na prateleira de cima e que, à mesa, tem lugar cativo do nosso lado direito.
Professor de química em Belo Horizonte, cidade para onde se mudou após completar o ginásio em Teófilo Otoni, fez nome como funcionário da Secretaria de Turismo de Minas Gerais, tendo ajudado a criar vários festivais de música em todo o Estado. Hoje é diretor de operações da Belotur e, entre muitas outras façanhas, transformou Newark e Belo Horizonte em cidades irmãs.
Seu Vale do Jequitinhonha é uma das regiões mais ambíguas de Minas Gerais e do Brasil.
O povo é manso, com vocação para a arte, devotado, seresteiro, escultor do barro, adepto das folias de rei e do congado.
A terra onde pisa, nem tanto.
De suas entranhas ainda hoje saem pedras preciosas e semi­pre­ciosas, mas a riqueza quase que pára por aí.
O Vale é seco, um desperdício de terra árida e intrigantes contrastes.
Cortado pelo leito caudaloso do rio que lhe empresta o nome, o Jequitinhonha é um tremendo mosaico de grandezas e misérias, com sua gente valorosa dando alento ao mundo.
Os cantores Tadeu Franco, Paulinho Pedra Azul e Saulo Laranjeira e os poetas Gonzaga Medeiros e Saldanha Rolin são algumas destas pessoas de grande valor.
O poeta e cordelista Tadeu Martins é outra “onha desse Jequi”.
Lendo seu livro Jogando Conversa Fora - esse delicioso exercício cordelista -, tenho muitas surpresas boas. Numa delas, Tadeu mostra ao mundo o dialeto “jequitinhonhês”, que nada mais é que o jeito de sua gente falar.
De seus versos tirei algumas curiosidades, que divido aqui com vocês:

“Resfriado é difruço
Nome de rã é caçota
Quilo e meio pra nós é prato
E carro de mão é galinhota
Derrancado é estragado
Inginhar é encolher
Crocodilar é trair
Inricar é enriquecer
Conversa fiada é ingrisia
E bater caçuleta é morrer
Zanzar é andar sem rumo
E obrar é defecar
Apurado é caboclo nervoso
E ouvir é assuntar
Trabalho pesado é barrufo
E escrever é assentar
Veronca é uma moeda qualquer
Ana é o apelido de um cruzeiro
Nica também é moeda
E puba quer dizer dinheiro
Doutor é o nome do urinol
E goró é caboclo roceiro
Restojo é o mesmo que resto
E ruir é destiorar
Visage é assombração
E zunir é arremessar
Nascida é nome de furúnculo
E tinir alguém é matar
Gibeira é bolso da calça
Que nunca anda lotado
Ficar pensando é bistuntar
Cubar é olhar de lado
Desinxavido é inexpressivo
E caboclo elegante é espigado
Arrigestir é resistir
Melar quer dizer buzuntar
Ajutório é o mesmo que ajuda
Cobrir o corpo é ribuçar
Fôrgo é o apelido do fôlego
E dar fôrgo morto é roubar
Burriscar quer dizer rabiscar
A leitura é sabedoria
Coxé é quem manca muito
Encheção de saco é livuzia
Pipôco é o mesmo que estrondo
E cartilogência é categoria
Tiçar a mão, picar o tapa
Tudo significa bater
Pêia é caboclo esperto
Incapaz de esmorecer
Deu upoa é ficou difícil
Mas foi fácil você entender”

Entendeu?
Nem eu.



A Música Que Toca Sem Parar:
Paulinho Peadra Azul canta Jequitinhonha de Lery Faria e Paulinho Assumpção

Tuesday, March 16, 2010

A Música Que Toca Sem Parar

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JOSÉ

(Carlos Drummond de Andrade, por ele mesmo)

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,

seu terno de vidro, sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, pra onde?


O pernambucano Paulo Diniz, no momento mais inspirado de sua carreira, musicou José, uma das obras-primas da poesia brasileira. E ficou bom. Muito bom!

Monday, March 15, 2010

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Abraçando Roberto Drummond

Hoje dei um abraço em Roberto Drummond. Um abraço tímido, é verdade, mas ainda assim um abraço.
A silhueta insinuava movimento, mas ele estava em pé, parado, na pracinha em frente ao café onde nos encontrávamos sempre que eu vinha a BH.
Olhei para o rosto de bronze e me recordei muitíssimo bem: era assim que Roberto passeava todas as tardes pelas ruas da Savassi: ligeiro, passo cadenciado, quase um trote.
Para onde estará indo Roberto Drummond? – penso eu parado à sua frente, sem me importar com a cara incrédula dos transeuntes, pouco afeitos a abraços afetuosos entre dois homens.
Coloco a mão sobre seu ombro e ele nada diz.
Estará Roberto indo pra casa onde o aguardam esposa e filha?
Ou estará indo para a livraria da Travessa, onde passava quase todos os dias para um papo com leitores e, não raro, autografar livros.
Algum amigo o aguarda em um bar da Cristóvão Colombo?
Alguma musa o esperará fumando um cigarro de piteira?
Assistir a um treino de seu querido Atlético Mineiro, certamente, não deve ser sua intenção. Roberto desprezava tigres de papel.
O grande cronista de todos os atleticanos não deve andar muito feliz com a campanha do Galo, mas sei que torcerá, por toda a eternidade, contra o vento. Isto, mesmo quando a camisa alvinegra já não estiver mais pendurada no varal.
Pode ser que Roberto esteja indo ao Mercado Central.
Certamente pediria uma limonada de limão capeta antes do primeiro gole de cerveja.
No mercado ele encontrará tipos mineiríssimos, personagens que comporão, em algum momento, uma nova história de sua lavra.
Cumprimentará a todos com a cortesia de sempre. Estudará seus movimentos. Roubará pedaços inteiros de suas almas.
Irá ele escrever uma crônica de costumes?
Estará envolvido com as escrevinhações de algum novo romance?
Será que Hilda Furacão o aguarda para alguma inconfidência sobre Frei Malthus?
Ou estará indo para o apartamento secreto, onde o espera para confidências um certo DJ, recém chegado de Paris?
Será que o encontrarão o poeta Pablo Tierra e a implacável fofoqueira Tia Marocas, figuras constantes em suas histórias?
Será que em seu ouvido canta uma cotovia, aquela mesma cotovia que costumava lhe dar conselhos quando descia a Rua Rio Grande do Norte?
Entrará num táxi?
Viajará num trem?
De avião, certamente ele não irá, seja lá qual for o seu destino.
Roberto tinha aerofobia. E não sabia dirigir automóvel.
Certa vez ganhou um prêmio literário e deveria recebê-lo em Curitiba. Fez as contas, constatou que o dinheiro da premiação seria suficiente para pagar um táxi BH-Curitiba. Ida e volta.
E foi exatamente o que fez.
Foi, recebeu o prêmio, pagou o táxi, e se aquietou à sombra da Serra do Curral.
Mas hoje Roberto Drummond não tem nenhuma premiação para receber. No entanto, ele parece apressado, como sempre pareceu estar.
Pressa, para que? – pergunto eu.
Novo silêncio.
Converso com ele uma vez mais, mas ele não responde.
Diante de sua estátua nesta pracinha da Savassi, sou apenas um amigo saudoso.
E ele, lá de cima, deve estar, certamente, rindo muito de mim.


















estamos encostados a uma roulotte bebemos sangria
conversamos enquanto queimamos a noite
junto ao mar
o vento fresco surpreende-nos com as mãos nervosas
em redor dos copos embaciados a ternura dum olhar
não chega para iludir a embriaguez dos amores imperfeitos
sei que possuis ainda alguma juventude nesse sorriso
eu já só embebedo os lábios viciados pelas palavras
pouco tenho a dizer-te
toco-te no ombro faço promessas e tu ris
enquanto descobrimos no silêncio cúmplice do vinho
treme uma teia de luminoso sal onde a noite cai
sobreviveremos ao desgaste do amor
bebemos mais
para que haja só desejos e não amor entre nós e
o rapaz que tem a mania de espetar uma faca loura
no ombro do mar
La vie est une gare, je vais bientôt partir,
je ne dirai pas où.
calei-me
sabendo que me conduzirias até casa pelo caminho da praia
cambaleantes
e enquanto eu não conseguir abrir de novo os olhos
não partirás tenho a certeza
com a tua jaula cheia de luas mansas
apaziguadas

Al Berto


A Música Que Toca Sem Parar:
Caetano Veloso e Milton Nascimento cantam As Várias Pontas de Uma Estrela, de autoria dos dois.

Sunday, March 14, 2010

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Frágil coração de poeta

Coração de poeta é um objeto frágil, peça de cristaleira que, se cair, pode quebrar. O meu deu um grande susto na semana que passou.
Eu estava deitado, encafifado com um mote qualquer, pintando na tela branca do teto mais um impossível Renoir. Foi quando senti aquela pontadazinha no peito. Ignorei, pensei que fosse prisão de ventre.
Não era.
Fui ficando assustado.
Diante daquela súbita ameaça, dei um salto da cama e fiz a coisa mais sensata que qualquer homem faria num momento desses: gritei por mamãe.
E ela veio.
Dona Rute, de visita, correu pra me socorrer.
Fez massagem, compressa de toalha molhada, rezou para São Judas Tadeu, mas o suadouro não parava.
O jeito foi rumar para o hospital mais próximo, antes que fosse tarde demais.
No hospital, demorou a cair a ficha.
Veio a bateria de exames de coração e a coleta de sangue suficiente para escrever um poema num muro.
O eletrocardiograma indicava que estava tudo bem, mas o exame de sangue não deixava dúvidas: eu havia enfartado.
Enfarte é uma palavra tabu.
Como a brochada, o exame de próstata e a “freada de bicicleta”.
Homem evita tocar nesses assuntos.
E, no entanto, ali estava eu, na contra-mão da história, no branco absoluto da paredes do hospital sofrendo por assuntos periféricos, que não mereciam mais a atenção.
E enfartado.
No escuro do quarto apagado, depois que todos se foram, chorei miúdo. Afinal, quem tem coração e se emociona, costuma chorar.
Pensei nas pessoas que dependiam de meu trabalho para ter sobre suas mesas um pedaço de pão, e nos que verdadeiramente me queriam bem. Pensei até naqueles que não mereciam participar daquele pensamento dolorido na solidão de meu corner.
Custou a amanhecer.
Sabino Torre, um italiano de aproximadamente 50 anos, bigode à Barão do Rio Branco, considerado uma das maiores autoridades em cardiologia em New Jersey, cuidou do caso.
Antes de entrarmos na sala de procedimento cirúrgico, enquanto uma enfermeira filipina muita bonita depilava minha virilha – o que muito me constrangia -, ele chegou ao meu ouvido e cantou a bola:

- “Deixa comigo, meu chapa. Você não poderia estar em melhores mãos. Vai ser uma viagem suave”.

Mais um calafrio.
Que "viagem" seria aquela?
Felizmente, o cateterismo mostrou que não havia bloqueamento das artérias.
Eu não havia, verdadeiramente, enfartado.
Tratou-se de um vírus que se espalhara por várias partes do corpo e tentou, num momento de suprema audácia, se alojar no lugar sagrado onde só deveriam entrar as musas, os familiares, os bons amigos e as letras do alfabeto usadas na composição de poemas e canções.
O músculo da emoção, diante da ameaça de invasão, expele uma enzima que só é dectada através de exame sanguíneo.
Trata-se da mesmíssima enzima que anuncia o enfarte.
Após uma semana sob observação e transformando minha ala do hospital numa Marquês de Sapucaí, fui liberado.
As enfermeiras, acostumadas a lidar com velhinhos descendo a serra, abandonaram por alguns dias a sisudez e o pragmatismo pelos quais elas são conhecidas, e entraram no samba do mineiro doido.
Foi quase uma festa.
Fazia muito que as moças do Saint Barnabas não cuidavam de um paciente tão pirado.
Uma delas chegou a sugerir que eu estaria na ala errada.
A de psiquiatria ficava no outro extremo do grande complexo hospitalar de Livingston, intuí.
Se não deixei saudades, terei deixado alívio.
Vou enviar flores e chocolates qualquer dia destes. Junto com meu pedido de desculpas, obviamente.
Conversando sobre o assunto com Kledir Ramil, recebi algumas recomendações, que deverei seguir à risca.
Para quem não sabe, além de inspirado cronista e cantor, ele é também dublê de proctologista e consultor de informática para leigos de todos os credos.
Usando seu método infalível irei cortar radicalmente o consumo de bebidas alcóolicas, sexo, rapé e alimentos gordurosos, como o torresmo de armazém e o pé-de-porco de botequim.
Passada essa fase de abstenção, entrarei na fase da prática de hábitos saudáveis: caminhada na esteira, um litro de chimarrão por dia e vegetarianismo.
Vegetarianismo vem a ser um tipo de alimentação praticado por antigos povos afeminados, como os espartanos e os pelotenses, que sabidamente desenvolve a resistência das coronárias e a sensibilidade artística.
Com sorte, serei parceiro de Kleiton & Kledir numa penca de canções.
Irei cortar os açúcares, as massas e, em caso supremo, os pulsos.
Se tudo isso não adiantar, instalarei um antivirus no coração.
Segundo Kledir, se dá certo no computador, deve dar certo na gente também.
Pode ser um Norton, um McAfee, ou de uma outra marca qualquer.
Embora eu preferisse, caso já existissem no mercado, os da marca Drummond, Rimbaud ou Baudelaire.
Esses, sim, os antivírus mais adequados para coração de poeta.

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A Música Que Toca Sem Parar: Secos & Molhados, Flores Astrais

Thursday, March 11, 2010



















Sei hoje que ninguém antes de ti
morreu profundamente para mim
Aos outros foi possível ocultá-los
na sua irredutível posição horizontal
sob a capa da terra maternal
Choramo-los imóveis e voltamos
à nossa irrequieta condição de vivos
Arrumamos os mortos e ungimo-los
São uma instituição que respeitamos
e às vezes lembramos celebramos
nos fatos que envergamos de propósito
nas lágrimas nos gestos nas gravatas
com flores e nas datas num horário
que apenas os mate o estritamente necessário
mas decerto de acordo com um prévio plano
tu não só me mataste como destruíste
as ruas os lugares onde cruzámos
os nossos olhos feitos para ver
não tanto as coisas como o nosso próprio ser
A cidade é a mesma e no entanto
há portas que não posso atravessar
sítios que me seria doloroso outra vez visitar
onde mais viva que antes tenho medo de encontrar-te
Morreste mais que todos os meus mortos
pois esses arrumei-os festejei-os
enquanto a ti preciso de matar-te
dentro do coração continuamente
pois prossegues de pé sobre este solo
onde um por um persigo os meus fantasmas
e tu és o maior de todos eles
não suporto que nada haja mudado
que nem sequer o mais elementar dos rituais
pelo menos marcasse em tua vida o antes e o depois
forma rudimentar de morte e afinal morte
que por não teres morrido muito mais tenhas morrido
Se todos os demais morreram de uma morte de que vivo
tu matas-me não só rua por rua
nalguma qualquer esquina a qualquer hora
como coisa por coisa dessas coisas que subsistem
vivas mais que na vida vivas na imaginação
onde só afinal as coisas são
Ninguém morreu assim como morreste
pois se houvesse morrido tudo estava resolvido
Os outros estão mortos porque o estão
Só tu morreste tanto que não tens ressurreição
pois vives tanto em mim como em qualquer lugar
onde antes te encontrava e te possa encontrar
e ver-te vir como quem voa ao caminhar
Todos eram mortais e tu morreste e vives sempre mais

Ruy Belo


* Ruy de Moura Belo (São João da Ribeira, Rio Maior, 27 de Fevereiro de 1933 Queluz, 8 de Agosto de 1978) foi um poeta e ensaísta português.
Apesar do curto período de actividade literária, Ruy Belo tornou-se um dos maiores poetas portugueses da segunda metade do século XX, tendo as suas obras sido reeditadas diversas vezes.

Destacou-se ainda pela tradução de autores como Antoine de Saint-Exupéry, Montesquieu, Jorge Luís Borges e Federico García Lorca.



A Música Que Toca Sem Parar:
Tony Garrido canta O Patrão Nosso de Cada Dia, de autoria de João Ricardo e que fez enorme sucesso com o Secos & Molhados.

Wednesday, March 10, 2010

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Uma canção Para o Seu Despertar

(Para um amigo em coma)


Quando você acordar deste sono e isto não tardará, meu amigo querido, gostaria que encontrasse um novo mundo. Um lugar sem as turbulências de quando adormeceu. E que a queda das bolsas tenha sido um mero pesadelo e a ganância dos homens de gravata, opaca mancha se apagando num passado cada vez mais distante.
Queria que árabes e judeus se entendessem de uma vez por todas, antes de você colocar os pés no chão e caminhar em direção ao banheiro pela primeira vez.
Queria que a palavra guerra tivesse sido abolida. E que o verbo desentender se transformado e conjugado, agora, apenas como 'entender', e se tornado comum a todos os dicionários, todas as línguas, credos e cores.
Que a intolerância tivesse sido proibida por decreto.
E a violência urbana, banida do mapa.
Que ninguém mais precisasse roubar por um pedaço de pão ou uma pedra de crack.
Que as traições de qualquer espécie se tenham extinguido.
Que a lâmina das facas e o aço das armas de fogo de todos os calibres tenham sido derretidos e transformados em brinquedos, espalhados pelos parques das cidades do mundo inteiro, para que neles crianças possam brincar.
Queria preparar um mundo melhor, mais abrangente, mais justo, mais leal, para quando você se levantar da cama e sentir necessidade de tomar um café.
Um mundo sem fome, sem frio e injusta distribuição de riquezas.
Mas sei que não posso te oferecer nada disto. A vida avança no relógio das horas e sei que a qualquer momento escutaremos a sua voz a nos saudar.
Gostamos de quando você nos diz "bom dia". Eu, especialmente, me emociono quando desejas que o Deus que te acompanha me saúde na mesma alegria.
Melhora o meu dia. A minha semana. O meu mês.
Das coisas que posso prometer e cumprir, lhe asseguro, tão logo os seus olhos enxerguem as primeiras luzes da manhã:
Um abraço do seu pai.
O colo quente de sua mãe.
O beijo de sua irmã. De seu irmão.
O amor de sua vida estará esperando por você - ela que não saiu do seu lado um segundo sequer -, para que percorram juntos e de mãos dadas, o percurso que lhes foi traçado por Deus.
Vocês terão filhos, bens materiais, animais de estimação e álbuns de fotografias de momentos que o tempo já levou. E terão o presente e o futuro para desenhar novas páginas. Pintá-las com novos matizes, novos tons. Páginas de felicidade.
Terão uma janela pro mar e uma brisa que sopre do Atlântico ou do Mediterrâneo.
Terão almoços de domingo em família, e tardes de futebol.
Prometo-te um grito de gol, do seu Flamengo. Prometo muitas conquistas do seu Flamengo.
Prometo que a cor vermelha, da sua predileção, não será arrancada do arco-íris.
Prometo-te uma canção de Geraldinho Azevedo. Um poema de Pessoa e a pessoa bonita que é você, refletido no espelho em que for se barbear pela primeira vez, depois de acordar deste sono.
Prometo que terá trabalho. Que terá desafios e projetos para a sua vida.
Prometo que terá vida.
Uma vida longa e feliz.

*

A Música Que Toca Sem parar:
Antony and The Johnsons, Cripple and The Starfish

Tuesday, March 9, 2010

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Não: não digas nada
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já
É ouvi-lo melhor
Do que o dirias
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias
És melhor do que tu
Não digas nada, sê
Graça no corpo nu
Que invisível se vê
Não: não digas nada
Não: não digas nada


A Música Que Toca Sem Parar: Não, Não Digas Nada
Composição de João Ricardo, sobre poema de Fernando Pessoa
na gravação do grupo Secos & Molhados



Monday, March 8, 2010


















Viagem na boléia do tempo

Venho a Minas Gerais por um motivo diferente. Venho dar uma força a meu pai, que há alguns dias teve um derrame cerebral.
Ainda nem aterrisei no aeroporto internacional de Confins, e uma sensação estranha começa a tomar conta de mim. Lá de cima, as montanhas mineiras ganham uma dimensão de beleza para mim, filho da terra, que é impossível descrever em palavras.
O sol brilhante fabrica sombra em árvores, transforma riachos e lagos em espelhos de prata, realça a trajetória de uma caminhonete levantando um poeirão na estrada.
Para onde estará indo essa caminhonete? – pergunto eu.
Durante alguns segundos, pego uma carona e, na boléia da caminhonete, saio "passeando" pelas Gerais.
Minha primeira parada é Ouro Preto, lugar que ocupa a prateleira de cima entre todas as minhas lembranças.
Passear sobre mortos em igrejas pintadas de ouro pode parecer estranho, e é. Mas amo demais esta cidade, que é a minha Paris, minha Pamplona, minha Nova York e minha Quebec, tudo reunido numa só.
Subo e desço ladeiras, as ruas apertadas, o chão de pedras lisas, colocadas ali por mãos escravas.
Entro na casa onde viveu Tomás Antônio Gonzaga e de sua janela quase consigo ver a cabeleira de Marília de Dirceu, crina de égua ao vento. Quero ficar pra dormir, mas a caminhonete da saudade não pode parar.
E é assim que, em alguns instantes, estacionamos na boca de entrada da gruta do Maquiné. Um rápido tour, os olhos cheios de beleza que a natureza esculpiu ao longo de milhares de anos, e já estou pronto para uma visitinha à casa onde viveu um certo João Guimarães Rosa, em Cordisburgo.
Sento-me na cama onde dormiu o criador do Grande Sertão Veredas, bebo café numa caneca de esmalte descascada pelo tempo.
Despeço-me do lugar onde viveu o escritor e já estou na Governador Valadares da minha história, comendo cascudo frito e carne-de-sol - de dois pelos - de Frei Inocêncio (acompanhada de mandioca cozida e manteiga de garrafa), bebendo cerveja estupendamente gelada num bar, enquanto asas-deltas e paragliders fazem um bailado colorido no céu.
Ali, com amigos de infância, bebendo uma boa pinga de alambique, tricoteando brinca­deiras de um tempo que se foi, sou de novo um menino, correndo atrás de uma bola de meia, soltando pipa, levando à tiracolo um embornal cheio de bolinhas de gude.
Muito mais que isto, sou um homem correndo atrás de mim mesmo, como um cachorro rodopiando, tentando morder o próprio rabo. É assim a trajetória do homem, insistente em passar o resto de seus dias correndo atrás do menino que um dia foi.
E amanhecer na Serra do Caraça, passar a tarde num vapor do Rio São Francisco, escutando estórias de pescador.
Anoitecer em Diamantina e participar das serestas das noites de quinta-feira em Montes Claros, quando o mercado municipal se fecha para as vendas, e reabre para receber a população para uma cantoria de respeito.
Violões, cavaquinhos, tambores, pandeiros e flautas: a voz brotando dos pulmões num entusiasmo que te leva a abraçar estranhos, irmãos em outras vidas, e te dá uma indescritível alegria por saber, de cor, a letra de preciosidade como essa aqui:

“A deusa da minha rua
Tem os olhos onde a lua
costuma se embriagar
Nos seus olhos, eu suponho
Que o sol, num dourado sonho
Vai Claridade buscar” (...)

E acordar, nas cercanias de Belo Horizonte, lugar onde vive meu pai.
Sentar-me com ele à mesa, beber queimadinho, comer pão de queijo e biscoito de polvilho e um naco de broa de fubá.
Ver que ele está bem, lúcido, ligeiramente ranzinza, sem acusar nenhum resquício do acidente vascular que quase o levou de nós. Consigo sentir o seu cheiro...
Mas um barulho metálico me traz de volta ao mundo real.
A aeromoça anuncia que pousaremos em segundos. Aperto o cinto de segurança e retorno a poltrona à sua posição inicial.
Viro o rosto e, da janela do avião posso avistar ainda, lá em baixo, a caminhonete sumir no meio do poeira e da minha imaginação.
E o meu coração bate apressado, como o de um menino saudoso, que não vê o momento de abraçar seu pai.

*


A Música Que Toca Sem Parar:
Manequim, palavras de Renato Rocha, melodia de Geraldo Azevedo, na voz do segundo.

Sunday, March 7, 2010


















Como quem escreve
com sentimentos


Estou sujeito ao tempo sou este momento
perguntam-me quem fui e permaneço mudo
o tempo poisa-me nos ombros em relento
partiu no vento essa mulher e perdi tudo

Já não virá ninguém por muito que vier
em vão esperei a rosa da minha roseira
quando um pássaro sai dos olhos da mulher
é porque ela é de longe e não da nossa beira

Resta-me um sonho desconexo e desconforme
Na haste da camélia que o vento quebrou
jamais a vida branca como ela dorme
Eu era essa camélia e nunca mais o sou

A minha vida é hoje um sítio de silêncio
a própria dor se estreme é dor emudecida
que não me traga cá notícias nenhum núncio
porque o silêncio é o sinónimo da vida

O mundo para além dessa mulher sobrava
tudo vida vulgar tumultuária e cega
o brilho do olhar equilibrava a chuva
nas suas costas hoje toda a luz se apaga

Mulher que um golpe de ar me pôde arrebatar.
enfim não existia ou só ela existia
Asas que ela tivesse deixou-as queimar
e tê-la-á levado estranha ventania

Daqueles traços fisionómicos de pedra
não quero já ouvir a voz que às vezes vem
na calma destacada por um cão que ladra
Não há ninguém perto de mim sinto-me bem

Cada casa que roço é escura como um poço
se sou alguma coisa sou-o sem saber
sossego solitário sem mistério isso
talvez tivesse sido o que sempre quis ser

As flores vinham nela e era primavera
mas tanto a nomeei e tanto repeti
erros numa estratégia imprópria para ela
tamanho amor expus que cedo a consumi

A noite quando ao fim descer decerto há-de
ser certa solução. Foi há muito a infância
Ao tempo o que tu tens tu bem o sabes cede
estendo as mãos talvez te fique a inocência

A vida é uma coisa a que me habituei
adeus susto e absurdo e sobressalto e espanto
A infância é uma insignificância eu sei
e apenas por a ter perdido a amamos tanto

Estou sozinho e então converso com a noite
das palavras que nos subjugam nos submetem
As coisas passam e em vez delas é aceite
o nosso sistema de signos onde as metem

Esta minha existência assim crepuscular
devida àquela que é rastos destroços restos
acusa hoje alguma intriga consular
de quem não tem cabeça a comandar os gestos

Foi uma rosa rubra a autora desta obra
aberta e arrogante grácil flor do instante
que triunfante não há coisa que não abra
para ferir quem a viu e morrer de repente

E noite sou e sonho e dor e desespero
mero ser sórdido e ardido e encardido
mas já não tarda a abrir-se na manhã que espero
um arco com vitrais aos vendavais vedado

E embora a minha fome tenha o nome dela
e da água bebida na face passada
não peço nada à vida que a vida era ela
e que sei eu da vida sei menos que nada



Ruy Belo
(27/Fevereiro/1933 - 8/Agosto/1978)

Despeço-me da Terra da Alegria
Todos os Poemas
Assírio & Alvim
2000



***
A Música Que Toca Sem Parar
Lamento Árabe (Godofredo Guedes),
na voz de seu filho Beto Guedes (Montes Claros-MG, 13 de Agosto de 1951)

Friday, March 5, 2010

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A Febre Que Só Eu Sinto

Erasmo Carlos escreveu brilhantemente num de seus grandes sucessos que é uma mentira absurda, a disseminação da informação de que a mulher é o sexo frágil. Concordo com ele e nem me estenderei demasiadamente nesse tema.
Aterei-me ao fato de que as mulheres são mais resistentes à dor, que os homens.
Já imaginaram se homem parisse um filho?
Não consigo sequer imaginar. Entro em pânico.
Eu, que nesse dia plúmbeo e cruel de segunda-feira, sinto-me extremamente fragilizado por uma gripezinha de nada.
Eu, que passei o final de semana no estaleiro, de moleton e pantufas, bebendo chazinho, tomando caldinhos quentes e desejando voltar pra dentro da barriga de minha mãe.
A gripe é uma das coisas mais desmoralizantes que existe.
Retorno à infância, sempre que gripo.
Quanto maior é a gripe, maior é a viagem no tempo. Maior é o inferno portátil, esse inexplicável purgatório de bolso.
Abandono-me ao recolhimento de um edredon de espinhos, construo uma espécie de casulo, quase um cocoon e fico ali, recolhido, encolhido, delirando de febre, desejando que minha genitora apareça pela porta, trazendo um prato de canja de galinha bem quentinho, ou um chá de flor-de-laranjeira, fumegando na xícara.
Escrevo essas mal-traçadas e consigo sentir o perfume do chá, quase queimando a língua, o palato da lembrança.
A febre me queima a face e penetra a pele, impiedosamente.
É sempre assim. Deliro.
Vejo monstros saídos dos lugares mais fundos da minha alma.
Saem dinossauros, dragões, aquela professora primária que tinha uma palmatória implacável, e que aparecia sempre que eu aprontava alguma traquinagem ou desaprendia as lições de tabuada.
Nesses momentos de febre e reminiscências, recolho-me a dias de chuvas intermináveis em que eu ficava na soleira da porta soltando barquinho de papel nas águas da enxurrada.
Dias em que o barulho dos passos das pessoas no assoalho de madeira dos demais cômodos da casa, entravam em meus ouvidos como sinfonias fantasmas.
Dias de arrepios, calafrios, suadouro, pijamas de flanela, cedros escurecidos, mangueiras indecifráveis, caminhos incompletos, a desenvolver o imaginário num traçado incomum.
Dias que se prolongam em longas quarentenas de imagens desenhadas em um oásis amanhecido, num erguer de asas, a face rubra a brasa, o coração em desalinho...
Dias em que tento encontrar no anjo perdido de minha infância, os sorrisos largos, o olhar inocente e iluminado de menino, com a ingênua vontade de entrar na floresta de João sem medo, e não andar espantado por meramente existir, adulto.
E pintar com as minhas cores o momento fugaz de uma experiência nova, fazer-me dono da luneta mágica, construir meu próprio castelo, tocar com as mãos o pote mágico de ouro no final do arco-íris, como quem acaricia um poema.
Mas a febre continua profunda, dominante, esmagadora.
As lágrimas desse abandono correm soltas em algum lugar de mim – homem feito -, num incômodo que me consome a alma, como os áridos campos que clamam pela chuva providencial.
Cai o pano escuro da noite. Descortina-se o sol.
Nesse novo dia de janelas abertas sobre a minha vontade, levanto-me com as cores que uso nas noites claras de quando estou bem e uma canção, uma imagem, saúda-me com as cores inconfundíveis da Primavera.
Sim, é primavera na América do Norte.
É Primavera, de novo, no meu coração.
Raios de sol. Um pequeno milagre.
Renasço das cinzas e do absurdo das febres.
Açucenas bonitas brotam da palma da minha mão.

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Thursday, March 4, 2010

A Música Que Toca Sem Parar

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Panorama Ecológico
(Roberto Carlos e Erasmo Carlos)

Voz: Erasmo Carlos


Lá vem a temporada de flores
Trazendo begônias aflitas
Petúnias cansadas
Rosas malditas
Prímulas despetaladas
Margaridas sem miolo
Sempre-vivas quase mortas
E cravinas tortas
Odoratas com defeitos
E homens perfeitos


Lá vem a temporada de pássaros
Trazendo águias rasteiras
Graúnas malvadas
Pombas guerreiras
Canários pelados
Andorinhas de rapina
Sanhaços morgados
E pardais viciados
Curiós desafinados
E homens imaculados


Lá vem a temporada de peixes
Trazendo garoupas suadas
Piranhas dormentes
Sardinhas inchadas
Trutas desiludidas
Tainhas abrutalhadas
Baleias entupidas
E lagostas afogadas
Barracudas deprimentes
E homens inteligentes

Wednesday, March 3, 2010

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2 poemas de
Sophia de Mello Breyner Andresen



Poesia

Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.



Porque



Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.


Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.


Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.


Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
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Sob a sombra de uma mangueira em flor





Jorge Amado está sentado na varanda de sua casa no céu, olhando na direção do infinito azul à sua frente. Chega o carteiro. Entrega-lhe uma correspondência, que Jorge abre com mãos trêmulas. No afã de ler seu conteúdo, rasga envelope e missiva. Corre para dentro da casa ampla, apanha seus óculos de leitura sobre a escrivaninha e, à medida que os olhos vão percorrendo as linhas, abre-se um sorriso em seu rosto que rejuvenesce:

Salvador, 16 de maio de 2008.

Querido Jorge, de tudo a saudade é a invenção mais triste da qual sou conhecedora, desde o dia em que foi levado de mim, por solicitação dos anjos poetas, para rimar versos de amor no céu. Deixou-me esse céu azul cobalto, que nos dias e noites de dor pela tua ausência, fazia-me sentir um enlaço do tamanho do mar, esse mesmo mar que também me deixou e que ficou a me alimentar a alma dolorida.
De você ficou ainda essa saudade cravada em meu peito, e que eu dizia pro meu coração que tinha o cheiro da maresia, meu inesquecível Capitão de Areia.
Esta saudade, que deixou meu corpo como uma terra sem alma, ressequida, frágil, inflamada em labirintos de desejos e em supostas figuras de tua voz, tuas palavras descritas nos pastores da noite, nas canções melancólicas dos velhos marinheiros, no ABC das primeiras letras cantadas por vozes infantis.
Essa saudade que transborda em cores imagináveis e que até hoje foi a impulsora de minha certeza de te encontrar e me encantar como você sempre fez nas noites em que o Eco perdido pelo teu nome preso em minha garganta reverberava sem rota, sem direção, dentro de um vento forte como a afastar o medo do mais temido pesadelo de não mais te ver.
Parto amanhã.
Sua, sempre
Zélia.

Uma lágrima de alegria resvala o rosto de Jorge. Ele a limpa com as costas da mão. Sente-se feliz.
Abre uma gaveta, apanha caneta e papel, seus dedos deslizam rapidamente e o nanquim azul dá a saber:
Mainha!
Todas as manhãs espero pela sua chegada. Nosso encontro finalmente se avizinha. Esses quase oito anos longe de você foram de ternura e lembranças. Sinto demais a sua falta.
Já que vem da Bahia, queria pedir-lhe que me trouxesse uns grãos da areia de Itapoã. Quem me trouxesse umas gotas de água do Rio Vermelho e me enfrascasse um pouquinho da brisa que sopra do mar em Ondina.
Traga-me a lembrança do gosto de uns acarajés, do aedume dos embus de Vitória da Conquista e o aroma dos cacau de Ilhéus.
Traga-me o som de um berimbau. Traga-me uma água de cheiro e um trancelim, e o frescor que faz debaixo da mangueira de nosso quintal.
Traga-me o cântico das lavadeiras durante a lavagem das escadas do Bonfim. Traga-me um fita do Senhor do Bonfim, já arrebentada, posto que meu desejo maior se realiza amanhã.
Estar com você de novo, mainha, para que continuemos nos cumprindo, é tudo o que esse comunista, ateu, pediu a Deus.
Beijo saudoso desse que é seu.
Jorge.

Ps: Zélia morreu na tarde de sábado (18 de maio), aos 91 anos, em conseqüência de uma parada cardiorrespiratória. Seu corpo foi cremado. As cinzas da escritora serão entregues aos filhos nesta quarta-feira. No mesmo dia as cinzas serão depositadas junto às do marido, Jorge Amado, sob uma mangueira, na casa onde o casal vivia no bairro do Rio Vermelho.
Zélia e Jorge, finalmente, um Destino de amor cumprido a quatro mãos.

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A Música Que Toca Sem Parar
Milton Nascimento e Fito Paez cantam no museu de San Telmo (Buenos Aires), Yo Vengo a Ofrecer Mi Corazon, de autoria de Fito.

Monday, March 1, 2010

A Música Que Toca Sem Parar

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Olhos Profundos



(Renato Teixeira)


Feito um menino que permite ao coração
Sair correndo sem destino ou direção
Que vire vento e sopre feito um furacão
Que nesse fogo por amor eu ponho a mão
E até permito as cantorias da paixão

O velho barco toda vez que vê o mar
Fica confuso, com vontade de zarpar
E ver o mar às vezes bem que é preciso
Pra ter certeza de ainda estar-se vivo
Mesmo que o casco esteja velho e corroído

Como uma estrada que vai dar não sei aonde
Por meu destino o coração é quem responde
Braços abertos pra se ver a luz do peito
Com grande amor que seja puro amor refeito
Olhos profundos não me olhem desse jeito


A Quem Interessar Possa:

Renato Teixeira de Oliveira (Santos, 20 de maio de 1945) é um compositor e cantor brasileiro.

É autor de conhecidas canções, como Romaria (grande sucesso na gravação de Elis Regina), Tocando em frente (em parceria com Almir Sater, gravada também por Maria Bethânia), Dadá Maria (em dueto com Gal Costa) e Frete (tema de abertura do seriado Carga Pesada, da Rede Globo, além de Amanheceu, entre outros.

Em 1990, apresentou o programa Tom Brasileiro na Rede Record, onde além de cantar, apresentava artistas que valorizavam a música nacional.

Recentemente, Renato Teixeira compôs a música Rapaz caipira, como crítica à atual música sertaneja de consumo, fazendo renascer a expressão música caipira. É um defensor aberto da música de raiz, caipira, que ainda sobrevive apesar dos desvios da música sertaneja.

Fonte: Wikipédia
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Um céu e nada mais

Um céu e nada mais - que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul - como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
eram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais - que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.



Ana Luísa Amaral