Tuesday, March 30, 2010


















Alencar, o rei da mentira

É claro que já menti nessa vida, mas nunca disse um ‘eu te amo’ que não tivesse sido verdadeiro. Cazuza dizia que mentiras sinceras lhe interessavam. Escorados nesse mote, muitos de meu convívio demoraram a acordar para uma realidade melhor. Outros continuaram dormindo.
À medida que fui amadurecendo, passei a evitar os pequenos deslizes. Mentir por mentir, jamais. Mas tem gente que mente por costume e o faz de tal maneira, que as mentiras se transformam em doentias verdades. São os casos patológicos.
Estes não aprenderam ainda que a verdade é tinta permanente.
É cinzel esculpindo na pedra.
Já a mentira é um paliativo.
É o rabisco da vara na areia.
E não apenas o antônimo da verdade.
A verdade pode machucar, é ferro em brasa, que marca para sempre o couro do gado.
Mas a mentira vai mais fundo, tem vocação de punhal.
A verdade pode provocar dor, mas com o tempo traz alívio e luz.
A mentira, não.
Com a mentira vem o rancor, a quebra da confiança e o desprezo.
Que fique claro: mentir e omitir são duas coisas completamente diferentes.
A omissão pode ser uma atitude com resquícios de covardia.
Mas a mentira é 100% covarde.
Conheci muito mentiroso nessa vida. Mas nenhum com a eloqüência e a cara-de-pau de um caminhoneiro de São Raimundo, o Alencar.
Mentia para impressionar, ou para tirar vantagem de situações completamente irrelevantes. A maior parte do que falava era ficção barata.
Segundo seus relatos, havia percorrido o trecho Valadares - Belo Horizonte, 360 quilômetros de estrada esburacada e perigosa em fantásticas três horas. E com o caminhão cheio de bois.
Num outro dia, aparecia no bar, pagava cachaça para todo mundo e dizia que estava comemorando os treze pontos feitos na loteria esportiva. O tempo passava e ele continuava vivendo de aluguel e comprando fiado no armazém de Zé Barbudo.
Segundo Alencar, o pára-choque amassado de seu caminhão era a prova material de que havia atropelado uma onça enorme, quase chegando a São Paulo. “Não deu para aproveitar nem o couro”, fartava-se de repetir.
Se viajava ao Rio, dizia ter almoçado na casa de Roberto Carlos e era amigo de Zico, do Flamengo. Era o rubro-negro, o rapaz. E gostava de música romântica.
Com o passar do tempo, ficou estigmatizado e ninguém mais acreditava nele.
Como começaram a ignorá-lo, resolveu se assumir mentiroso e mandou pintar, com as cores do Mengão, nos dois pára-lamas traseiros de seu caminhão Mercedes 1113, os seguintes dizeres:
Alencar, o rei da mentira!
E foi acolhido de volta.
Em todo lugar onde estivesse, a roda se fechava em torno dele e as estórias fantásticas eram garantia de entretenimento. Afinal, Alencar tinha um tio astronauta que fora à lua duas vezes, um primo que namorara a miss Brasil (uma certa Marta Rocha), e um conhecido que estudara com o ex-presidente Getúlio Vargas.
Não raro, mentia atendendo a pedidos.
Numa destas ocasiões, cruzou com a viatura da polícia rodoviária na entrada de um posto de gasolina. Os dois carros ficaram lado a lado e um patrulheiro pediu:
- Ô Alencar, conta uma mentirinha aí.
Alencar pediu desculpas, mas disse que não podia.
- Estou indo pedir socorro em Valadares. Teve um acidente a 30 quilômetros daqui e tem gente ferida espalhada pelos dois lados da estrada.
Os patrulheiros nem se despediram. Ligaram as sirenes e seguiram, em alta velocidade, na direção do horrível acidente.
Duas horas depois retornaram ao posto de gasolina e lá estava o Alencar, comendo uma picanha e bebendo uma Brahma bem gelada com outros dois caminhoneiros.
Um dos patrulheiros foi até a mesa e, de dedo em riste, mandou o seu recado nervoso:
- Escuta aqui, Alencar! Dessa vez você passou dos limites! Que brincadeira de mau gosto foi essa de dizer que tem um acidente cheio de mortos e feridos perto daqui?!
Alencar deu uma garfada na parte gorda da picanha e respondeu, impávido:
Uai, mas você não pediu para eu contra uma mentira?
E todos caíram na gargalhada.
Ninguém imaginou, no entanto, que Alencar ainda pagaria caro pelo seu estilo de vida.
Numa madrugada, acordou a mulher e disse que estava enfartando. A patroa ajeitou melhor o travesseiro, resmungou qualquer coisa e continuou a dormir.
Dois dias depois ele foi enterrado, humildemente, sem as pompas normalmente reservadas a um rei.

*

A Música Que Toca Sem parar:
a improvável parceria de Ritchie, musicando e cantando Meantime, poema da fase inglesa de Fernando Pessoa.

10 comments:

Lídia Borges said...

A mentira não compensa, nunca. A omissão, às vezes pode até ser caridosa...

L.B.

Jorge Pimenta said...

Pois, a velha história do lobo e do cabritinho.
De tanto o chamar em vão, quando ele veio mesmo... ninguém acudiu.
Quantos Alencares há espalhados por esta terra de mentira, caro Roberto?

Um abraço!

Wilson Torres Nanini said...

Roberto, que texto maravilhoso! Há pelo menos um mentiroso renomado em cada cidadezinha mineira. É sempre uma delícia nos depararmos com figuras como esse Alencar, desde que, sabendo com quem estamos lidando, não o levamos tão a sério.

Forte abraço!

Primeira Pessoa said...

a mentira, o crime e, às vezes, o cheque, não compensam (rs).

bom te ver aqui, lídia.

Primeira Pessoa said...

jorge,
algum tempo depois da publicação desta crônica, recebi um telefonema na redação.
era o fuilho de alencar, que não se queixou da "homenagem"e falou de seu amor pelo pai.

alencar, segundo o filho, "não mentia por mal".

e eu acredito.

abraço verdadeiro do seu amigo
roberto.

Primeira Pessoa said...

Wilson,
esses adoráveis mentirosos, muito mais que parte do flolclore, são parte da "paisagem" de cada cidadezinha não apenas do interior de minas, mas do brasil.

quando ingênua, a mentira chega a parecer um charme brasileiro.

abração, poeta!

R.

Anonymous said...

Já tinha lido esta crónica, mas voltei aproveitar para ler aos meus alunos do nono ano, uma vez que andavam numa de mentira. Obrigada pela (re)leitura!
Beijos
Laura

Primeira Pessoa said...

laura,
foi uma alusão ao primeiro de abril, que se aproximava...rs

ou, para encobrir a verdade de que não tenho conseguido produzir crônicas novas.

mas isto irá mudar.

abração do
roberto.

Fernando Campanella said...

O caso desse mentiroso é até folclórico, mas a mentira em si própria é algo que beira o patológico. Mas existem aquelas mentiras que os outros querem ouvir, rs...e aí como fica?
Boa crônica, um abração, meu amigo.

Primeira Pessoa said...

tipo assim: "você é bonita"?


ah, fernando... mentira é mentira, uai.